O Tanoeiro da Ribeira

quinta-feira, abril 25, 2013

Faz o bem e não olhes a quem

Para fazer memória enquanto o “Primeiro de Dezembro” ainda teve honras de feriado. Já lá vão uns anos, fui conhecer o Paço de Lanheses no vale do Lima. Recebeu-me o seu proprietário que se apresentou simplesmente como Luís. Agradeci e informei-o que buscava resposta para três perguntas: por que razão aquele solar tinha o título de paço? Como se explicava a presença dos Almadas em terras do Minho? Se a história do Zé do Telhado era verdadeira? Simpaticamente, começou por contar que, numa 6ª feira, o Zé do Telhado veio pedir à senhora condessa o seu diadema de brilhantes para sua filha levar no casamento e que o devolveria na 2ª feira seguinte. Os dias foram passando e quando a condessa já dava como perdida essa joia de família, o temido salteador veio entregá-la com um enigmático pedido de desculpa pela demora. Só depois é que a condessa reparou que ele tinha mandado colocar um brilhante que, há muito, faltava no diadema. Zé do Telhado também sabia agradecer… Esclareceu, ainda, que o título de paço foi atribuído ao solar por ter acolhido D. António, Prior do Crato, a caminho do exílio, depois de derrotado por Filipe de Espanha. Pode conhecer-se o percurso de D. António, seguindo os solares onde dormiu: Paço de Anha - Paço de Lanheses - Paço Vitorino - Paço Vedro. Disse também que os Almadas advêm de um lorde inglês que recebeu a Vila de Almada por ter ajudado Afonso Henriques a conquistar Lisboa aos Mouros e sua casa-mãe era em Lisboa. Foi por casamento que vieram para o Minho e o paço de Lanheses passou a ser dos Almadas. No ano seguinte, tive como aluna, no Porto, a sua filha R.. Quando soube desta inesperada coincidência, o pai veio falar comigo e, ao cumprimentar-me, disse com um sorriso: “Bem me ensinou minha mãe: faz o bem e não olhes a quem. Quando o recebi, quem poderia imaginar que iria ser professor da minha filha?” Achei interessante fazer esta evocação porque fala duplamente da causa da independência que o “ Primeiro de Dezembro” celebra. O solar acolheu D. António, Prior do Crato que foi aclamado rei pelo povo de Santarém em 1580 e, até 1583, reconhecido como tal nos Açores que se orgulham de ter vencido a armada espanhola, na célebre “Batalha da Salga”. Há historiadores que o consideram o último rei da dinastia de Avis e lamentam que a História oficial o silencie. Mais, foi na casa de D. Antão de Almada em Lisboa, hoje Palácio da Independência, que se planeou a revolução que restaurou a independência perdida, com o derrube da dinastia filipina e a aclamação de D. João IV como rei de Portugal, no dia 1 de dezembro de 1640. Na memória se radica e dela se alimenta a identidade das pessoas e dos povos. Mal vai um Estado, se não engrandece a sua História.

País de brandos costumes?

Ao ouvir um cd para crianças, duas letras me chamaram a atenção. Trata-se do muito popular “Sebastião come tudo, tudo, tudo (…) E depois dá pancada na mulher”. Este verso tem uma nova versão: “E depois dá beijinhos na mulher”. Alteração similar se encontra na canção “O mar enrola na areia”. O verso “ ai bate nela quando quer” é substituído por “pode vê-la quando quer”. “Mea culpa”. Quantas vezes, cantei aqueles versos sem qualquer abalo da consciência! Nem me apercebia das barbaridades que estava a dizer, tal a força da tradição. Quando me congratulava com esta benéfica mudança de mentalidades, fui abalado pela notícia do JN (23/11): “Violência doméstica já matou 30 mulheres só neste ano. (…) O número já é superior ao total do ano passado, mas as participações às forças de segurança estão a baixar. Quer por medo de represálias do agressor e desilusão com o sistema, quer por efeito da crise económica, do desemprego e dos cortes nos apoios que aumentam a vulnerabilidade das mulheres”. Um massacre que nos revolta e interpela. Está em marcha uma ”campanha nacional de sensibilização contra este flagelo”. O Advento é propício à introspeção, à coragem e à mudança de vida. Denunciar as injustiças é também missão dos cristãos. E não se podem ignorar outras formas mais sub-reptícias de violência: - Ameaçar que irá matar ou provocar lesões a si mesmo ou ao outro, cortar na mesada, abandonar o lar; - Destruir os objetos do outro ou da casa, maltratar os animais de companhia, estragar os momentos festivos, atemorizar com palavrões, murros na mesa e outros gestos agressivos; - Fazer com que o outro se sinta mal consigo mesmo e mentalmente diminuído ou culpado, humilhá-lo, inferiorizá-lo junto de amigos, obrigá-lo a tomar atitudes que, por cobardia, não quer assumir, fazer-se de vítima, ser violento ou fazer chantagem de índole sexual; - Controlar o outro, as suas amizades, com quem fala, o que lê, as deslocações, o que veste, dificultar contactos com a família, obrigá-lo a cortar com velhos amigos, usar o ciúme como justificação, simular doenças; - Fazer o outro sentir-se culpado relativamente aos filhos, usá-los para passar mensagens, ameaçar levá-los de casa, denegrir o outro junto dos filhos ou amigos, aliciá-los em seu favor; - Tratar a mulher como criada, mesmo quando convida amigos para casa, tomar sozinho as decisões mais importantes da família, exigir “ser tratado como um senhor”, não reconhecer a violência dos seus atos; - Evitar que o outro tenha um emprego; forçar o pedido de dinheiro; apossar-se do dinheiro do outro. “Mas somos bons homens” diz o “silva” do romance a máquina de fazer espanhóis de Valter Hugo Mãe. Assim, não. Estes não pertencem, certamente, aos apregoados brandos costumes.

Da origem ao exercício do Poder

No dia 2 de dezembro, ao chegar à igreja da Trindade, deparei-me com três polícias a guardar a entrada do parque que se encontrava vazio de carros. Que se passaria? Uma manifestação violenta se avizinhava? Aconselharam-me a ler o JN desse dia que noticiava: “Serenos foram os crentes ontem, ante a proibição de estacionamento frente à igreja da Trindade (…) Um agente da Polícia Municipal chegou para demover todos os que tentaram deixar o carro onde habitualmente o faziam. (…) Um pilarete móvel (…)está na origem de um diferendo entre a Câmara Municipal do Porto e a Celestial Ordem Terceira da Santíssima Trindade, que há muito abre o espaço para que os frequentadores da igreja tenham onde estacionar, durante as celebrações. Algo que a Câmara considera ilegal. (…) O presbítero foi o primeiro a querer entrar, mas, alertado pela proibição, retirou-se tranquilamente”. Se, na véspera, bastou um polícia, porquê este aparato do aparelho repressivo do Poder? Assim surgiu esta breve reflexão sobre ciência política. Mais que um “animal social” como as abelhas e as formigas, o homem é, no dizer de Aristóteles, um “animal político”. E o que carateriza a sociedade política é a organização do poder que regula os conflitos entre os indivíduos, de modo a possibilitar uma convivência que ultrapasse a “lei da selva” ou seja, a lei do mais forte. Por isso, mal iríamos se os órgãos do poder, abusando da força, se tornassem fatores de perturbação em vez de construtores da paz, Quando o poder não resulta da eleição popular instaura-se a autocracia. O seu detentor está acima do povo e, por isso, não lhe presta contas. Sente o poder como propriedade sua e o território sua quinta privada. Os habitantes são súbditos que só existem para lhe obedecer e servir. Numa democracia, o poder reside na nação que o exerce através dos seus representantes livremente eleitos. Os seus órgãos têm um poder que lhe foi delegado pelo povo e, por isso, devem prestar-lhe contas e atuar em sua conformidade. Os habitantes são cidadãos e as suas instituições devem ser respeitadas. O autocrata exerce o poder de forma absoluta e reprime quem se lhe oponha. Lembremos antigas monarquias e modernas ditaduras de índole marxista ou fascista. Já o democrata sabe que há outros projetos políticos com que se confronta e respeita. E a sua existência só se compreende num sistema pluripartidário. O perigo surge quando há um partido dominante que vence as eleições com maioria absoluta. Aí, pode gerar-se um poder despótico em que os tiranetes esquecem a sua função de mandatários do povo. Julgam-se donos do poder, e como os autocratas, desprezam quem não pertença ao seu cortejo de “súbditos”. O ideal é que um regime político seja democrata na origem e pluralista no exercício.

Té lholho papabo, abiabo!

“Da boca das criancinhas de peito tirastes o vosso louvor”.(Mt, 21,16) Meses atrás, meu neto, ao ver os autocarros no Campo 24 de Agosto, acenou-lhes com a mãozita e disse a frase que dá título a este texto e que traduzo: Até logo autocarro, obrigado! Logo a seguir, numa passadeira perigosa e sem semáforos, várias pessoas aguardavam que alguém lhes desse passagem. Ao aperceber-me, parei e fiz sinal para atravessarem em segurança. E ninguém fez um mínimo gesto de agradecimento. Bastava um braço, um inclinar de cabeça. Eu sei: os peões têm prioridade nas passadeiras. É verdade, mas o contraste foi chocante. O meu neto saudou os autocarros e agradeceu a sua presença como se pessoas fossem. E naquelas pessoas não houve ninguém a reparar que foi “um seu semelhante” que lhes acenou a dar passagem. Estavam no seu direito, dir-se-á. Este é o problema. Vivemos numa sociedade em que os direitos (mais do que os deveres) foram elevados à categoria de norma única do agir. “Eu tenho direito”, ouve-se repetir constantemente. De fato, o respeito pelos direitos é infraestrutura imprescindível numa sociedade democrática. Mas nem por isso a humaniza. Também a rede de esgotos é uma infraestrutura essencial numa cidade e nem por isso a torna mais bela. O que lhe dá beleza é a relva e as flores dos jardins que cobrem as canalizações. Também viver é bom, mas saber apreciar a vida é bem melhor. O mesmo acontece com a sociedade. Os direitos são fundamentais mas o que a torna humana, o que lhe dá perfume é a simpatia, a gentileza, a atenção ao outro. Sem isso, torna-se uma sociedade fria onde não dá gosto viver. Em outubro, o teatro Carlos Alberto encenou ”Porto-S. Bento” - uma estação de partidas e chegadas onde se cruzam viajantes, a caminho uns dos outros, no caminho uns dos outros. É o retrato da nossa sociedade onde as pessoas têm, obrigatoriamente, de se encontrar mas se ignoram e se evitam. Pelo átrio da estação, passavam as mais variadas personagens, umas voando na leveza dos sonhos, outras acabrunhadas sob o peso das angústias. Mas cada um permanecia só, fechado no seu mundo. Até que a personagem mais idosa começou a provocar os outros com brincadeiras de criança. De início, relutantes, todos acabaram por aderir. Voltaram à infância. E foi, de mãos dadas e a dançar em roda, que partilharam palavras e sorrisos. A solidão tinha acabado. Nascia a comunhão. A verdadeira solidariedade conjuga-se na primeira pessoa: Eu-Nós. Quão fácil é exigi-la aos outros… Praticá-la é bem mais difícil. A solidariedade e a gentileza darão mais luz a esta nossa sociedade ameaçada por nuvens escuras de egoísmo e solidão. Sejamos gentis e solidários e o Menino Jesus nos dirá: “abiabo!”. “Se não fordes como crianças…” (Lc 18,17)

A nostalgia do Absoluto

Neste início de ano, vivemos tempos de medos e incertezas. Onde encontrar sentido para a vida, nas horas de sofrimento? A religião tem uma envolvência social, mas também um lado moral, também nos ajuda a lidar com a dor. Somos péssimos a lidar com a dor fora da religião, diz-nos Alain de Botton, autor do best-seller Religião para Ateus. Perante a dor e, especialmente, perante a morte, duas questões nos assaltam: “porquê?” e “para quê?”. Se para responder à primeira basta invocar a fragilidade humana, já a segunda abre a horizontes para além da finitude. Que sentido têm a dor e a morte para quem traz em si o desejo de viver e ser feliz? Se não aceito a orientação para Deus como sentido norteador da vida, como poderei responder a estas questões, sem me deixar cair no vazio? A apregoada “morte de Deus” conduz-nos a uma sociedade desumanizada. Com ela, diz o filósofo neomarxista alemão, Horkheimer, “eliminar-se-á o aspeto teológico, desaparecendo com ele do mundo aquilo a que chamamos “sentido”. Dominará, sem dúvida, uma grande comercialização, mas carente de sentido ”. O filósofo João Duque acrescenta que temos de “ regressar à questão de Deus, exigida pela questão do absoluto que nos salva. Falharam os substitutos e o ser humano continua, com razão e por amor de si mesmo, nostalgicamente à procura de um sentido absoluto, que não encontra no mundo que o rodeia, nem em si mesmo”. A atualidade procurou esse “ absoluto” na atividade crítica, mas, continua João Duque,” a crítica absoluta transforma-se em algo corrosivo, que acaba por se moer a si mesma, originando apenas o niilismo total”. Procurou-o na ciência mas, apesar da sua excelência, “a ciência é limitada”, dizia o grande Einstein. Procurou-o na arte mas “o absoluto da arte exige um absoluto em que se integre o próprio artista”, diz Vergílio Ferreira. Procurou-o na política mas, diz Horkheimer, “a política que não contenha teologia não passará, no fim de contas, de um negócio, por mais hábil que seja”. Procurou-o na ética, mas, continua o mesmo autor, ”O positivismo não encontra nenhuma instância que transcenda os seres humanos, para poder distinguir entre a bondade e a crueldade, a avareza e a entrega de si meso… Tudo o que tem relação com a moral fundamenta-se, em definitivo, na teologia”. A divinização dos substitutos de Deus faz-me recordar a estátua de Nabucodonosor, com cabeça de ouro e pés de barro. (Dan, 2, 31). Razão tinha Einstein ao afirmar que “o primeiro dever da inteligência é desconfiar de si mesma”. Donde nos vêm esta necessidade do “sentido absoluto” que a todos inquieta? Só Deus, porque Absoluto, pode ser o seu autor. Como diz Santo Agostinho, “criaste-nos para Vós, Senhor…”. Deus é a raiz mais profunda do sentido e da beleza da vida.

Sei de um país…

Em outubro, um pároco afirmava que a Voz Portucalense, ao contrário de outros jornais, só fala de “coisas bonitas”. A confirmá-lo, quero, neste início de 2013 e com base num texto do jornalista Nicolau Santos, partilhar convosco uma boa notícia. Conheço um país… . que, em 30 anos, passou de uma das piores taxas de mortalidade infantil para a 4.ª mais baixa taxa a nível mundial; em 8 anos, construiu o 2.º mais importante registo europeu de dadores de medula óssea; é líder mundial no transplante de fígado e está em 2º lugar no de rins. . que lidera no sector da energia renovável e é o 4º maior produtor de energia eólica do mundo. . que inventou e desenvolveu o primeiro sistema mundial de pagamentos pré-pagos para telemóveis; tem um dos melhores sistemas de multibanco e desenvolveu um sistema inovador de pagamento nas portagens (via verde). . que calça cem milhões de pessoas em todo o mundo; fabrica lençóis inovadores onde dormem, por exemplo, 30 milhões de americanos; é líder mundial da tecnologia de transformadores de energia e o maior produtor mundial de caiaques para desporto. . que tem o prémio nobel da literatura (José Saramago) e o da medicina (Prof. Egas Moniz); dois prémios Pritzker da arquitetura (Sisa Vieira e Souto Moura). . que tem um sol maravilhoso, uma luz deslumbrante, praias fabulosas e uma gastronomia que apaixona quem o visita. . que o portal internacional de viagens Globe Spots classificou como o melhor destino turístico do Mundo para 2013. . que, com 1 727 408 km2, possui a 3ª maior Zona Económica Exclusiva da União Europeia e a 11.ª do Mundo. . onde a Solidariedade dá emprego a 226 mil pessoas e o setor cooperativo emprega 56 mil trabalhadores. Mais ainda. Que dizer do nosso peixe que é importado pelos melhores restaurantes americanos de sushi? E da excelência do nosso azeite? E do nosso “vinho do Porto”? E do nosso Douro, o “reino maravilhoso” de Torga? E dos nossos artefactos de cortiça? E do nosso riquíssimo “património mundial”? E dos nossos cientistas que têm ganho dos mais prestigiados prémios mundiais? E dos muitos jovens, como os que conheci em Genebra, a ocupar lugares cimeiros em multinacionais e organizações mundiais? E dos milhões de emigrantes que, com o seu trabalho, honram a sua pátria, em todo o mundo? E dos luso-descendentes eleitos para lugares públicos importantes nos seus países? E do nosso Aristides Sousa Mendes que salvou do holocausto mais de 30 000 pessoas? E desta língua que, com 280 milhões de falantes, é a 5ª língua mais falada no mundo, a 3ª no hemisfério ocidental e a mais falada no hemisfério sul? E das suas gentes que sabem acolher como ninguém? … E este país é Portugal. É tempo de olharmos o futuro, de cabeça erguida, sem chauvinismos bacocos mas também sem derrotismos asfixiantes.

Criadores de beleza

Fazem-se coisas bonitas na minha cidade. “Podemos sentir na contemplação uma espécie de alegria interior, essa mesma que procuramos e que se nos oferece na arte como êxtase”, escreveu Denis Huisman. Quem não se emocionou ao ver o pôr do sol? Ao cheirar uma rosa? Ao ouvir um fado de Amália ou uma sinfonia de Beethoven? O homem tem esta capacidade única de se extasiar. Mas, mais que apreciador, é ele próprio fazedor de beleza. Ao assistir na Casa da Música, ao “Concerto de Reis da Academia de Música de Costa Cabral”, nasceu em mim um cântico de ação de graças a Deus por estes dons que deu ao homem e de louvor aos artistas que fazem o mundo mais belo. A Sala Suggia vestiu-se de gala não para ouvir os acostumados músicos de renome mundial, mas para se curvar silenciosa perante os jovens talentos que a iriam enriquecer. No início, os cinquenta e sete jovens da Orquestra de Sopros da Academia interpretaram obras de Percy Grainger, Ralph Vaughan Williams e Gustav Holst. Foram trinta minutos de encantamento, não só pela qualidade das composições escolhidas mas, principalmente, pela sensibilidade e técnica postas na sua execução. Quando fechava os olhos, parecia ouvir uma das orquestras consagradas que já ali me emocionaram. Na segunda parte, foi dado lugar às vozes que, apoiadas por 62 jovens instrumentistas da Orquestra Clássica da Academia, cantaram a “Missa das Crianças”. Nesta missa, Jonh Rutter seguiu o texto latino da ”Missa Brevis” a que juntou textos poéticos em inglês. Fiquei encantado ao descobrir como, em 2003, um compositor encontrou na música gregoriana inspiração para apresentar, com nova roupagem, melodias que, ao longo dos séculos, encheram mosteiros e catedrais. Tem razão quem considera o canto gregoriano a matriz da música europeia. Foi uma ternura poder ouvir e admirar a postura e a interpretação dos 106 pequenos cantores. O branco das camisas e o vermelho das gravatas contrastavam com o negro que vestia o coro dos adultos, formado por centena e meia de coralistas do Orfeão de Rio Tinto, do “Encantus Corus” e do Coro dos Pais da Academia. A estas 252 vozes juntaram-se, ainda, a soprano Patrícia Silva e o barítono Pedro Telles. Foram trinta e sete minutos de puro gozo espiritual. No final, foi a apoteose quando todas as vozes se uniram para, em uníssono, cantar o Adeste Fideles - “Vinde, adoremos o Senhor”. Merecem elogios todos quantos nos ofereceram estes momentos de inesquecível “alegria interior”. Quão difícil terá sido ensaiar tão grande número de cantores na diversidade de grupos, vozes e idades... Está de parabéns a Academia de Música de Costa Cabral que ajuda a germinar a semente que faz dos seus alunos criadores de beleza. A cultura é alma de um povo. Que não o esqueçam os responsáveis políticos…

“Maria fazia meia”

Foi bom assistir, na véspera de Reis, ao XI Encontro de Cantares “Do Natal aos Reis”, organizado pelo Rancho Folclórico de Paranhos. O tom foi dado, logo no início, com a oferta da imagem do Menino Jesus às entidades presentes. Estava apresentado o “rei da festa”. O pai-natal é um desvio publicitário. Deixemo-nos de farsas… O rancho organizador fez-nos reviver a ruralidade do Porto de antigamente. O cântico “Lachinga, laminga”(?) associa o mistério da Encarnação ao Eucarístico: “Eu sei que estais na Hóstia como no Céu verdadeiro”. O Grupo de Cantares de Azurara da Beira, com genuínos trajes beirões, fez-me evocar os autos pastoris de Gil Vicente que terá nascido perto de Mangualde, em Guimarães de Tavares. A frescura das vozes, moldadas pela suavidade dos instrumentos, trouxe-nos a beleza da beira-serra e as tradições das suas gentes que o grupo recolhera em cuidado trabalho de pesquisa. Pela delicadeza da música e pelas reminiscências da minha infância, encantou-me o “Maria fazia meia/ Com linha feita de luz./O novelo é lua cheia,/Quem teceu a teia/Foi o bom Jesus”. Os “Reis de Gandufe” são uma verdadeira catequese natalícia: ”Quem são os três q’além vêm/Além ao longo do mar./São os Reis do Oriente/Q’a Jesus vem adorar./Os três Reis do Oriente/Sonharam sonho profundo./Sonharam q’era nascido/O Supremo Rei do Mundo./Foram a casa d’Herodes/Perguntaram de repente./Se Jesus era nascido/Nós somos do Oriente./Herodes lhes respondeu/Q’a verdade não sabia./Esperai mais um momento/Q’eu vou ler a profecia./A profecia dizia/Tinha nascido em Belém./Visitai o Deus Menino/Q’a Virgem Senhora tem”. O Grupo Folclórico da Escola Infante D. Henrique, com antigos e atuais professores, funcionários, alunos e pais, mostrou como, à volta da cultura, se pode criar uma verdadeira comunidade educativa. O Grupo Etnográfico de Lorvão apresentou os cantares que, ao longo dos séculos, se cantaram e cantam no seu mosteiro, fundado antes da invasão árabe e que os muçulmanos sempre respeitaram como diz o texto.”Um rei mouro, Alibracem, por uma decisão de 734, concedeu aos monges de Lorvão a isenção dos tributos que pesavam sobre os outros, permitia-lhes a ida à vontade a Coimbra, e dava licença para comprar e vender sem pagar impostos”. Os cânticos, de cariz piedoso e litúrgico, alguns “à capela”, a lembrar “cantaréus” e “cramóis” da beira-douro, revelam influência do canto gregoriana: “Ó Infante suavíssimo,/Ó meu amado Jesus/Vinde alumiar a minha alma/Vinde dar ao mundo luz.” e “Do varão nasceu a vara/Da vara nasceu a flor/Da flor nasceu Maria/ De Maria o Redentor”. No final, o grupo paroquial, com o pároco a tocar cavaquinho, veio mostrar-nos como, ainda hoje, se cantam as janeiras pelas ruas de Paranhos. E foi em festa que tudo terminou. Parabéns.

Ecos da Semana Social - Porto 2012

O tempo passa e, na sua voragem, esbate factos e ideias cuja memória importa reavivar. Está neste caso a “Semana Social – Porto 2012” a que o Jornal Notícias deu grande relevo. Dele, respiguei alguns pensamentos de que, agora, faço eco. “O Estado social só se garantirá no futuro, internacionalmente também, se as sociedades forem de facto muito mais solidárias”.”Nestes tempos difíceis é preciso pensar e abrir rasgões de luz e esperança a tanta gente sofrida ou ameaçada no que mais importa à sua existência e dos seus”. - D. Manuel Clemente - “O povo português merece e precisa de mais”. ”Os dramas são mais que muitos e as soluções não as podemos colocar no acumular de impostos e restrições salariais”. - D. Jorge Ortiga, responsável máximo pela Pastoral Social - “As raízes da crise financeira e económica que temos está no agravamento das desigualdades”. ”Ninguém pode ficar preservado dos direitos fundamentais e da dignidade”. “Os défices do Estado não podem ser imputados aos gastos sociais”. - Guilherme d’Oliveira Martins, coordenador das Semanas Sociais - “Se o Estado não servir para promover uma melhor justiça social e um futuro melhor e mais harmonioso para todos, não serve para nada”. O desafio da crise é substituir austeridade por sobriedade”. - P. Lino Maia, presidente da CNIS - “A origem da pobreza está nas desigualdades sociais. As medidas de austeridade provocam um país desigual”. - Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Nacional - “A vida dos pobres é demasiado séria para andarmos às experiências e teimosias”. “A sociedade está marcada por individualismos e egoísmos”. - Alfredo Bruto da Costa, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz “Passar da vida de consumo para uma vida que não desiste de se consumar”. “Os modelos de vida adotados até aqui não são caminho único para a felicidade”. - P. Tolentino de Mendonça “Não é altura de enterrar o talento, mas de fazer apostas. Não se pode ignorar a redescoberta da espiritualidade”. - Filipe Pinto, dos Leigos para o Desenvolvimento Foi bom este descer à terra. É que a missão profética da Igreja não se esgota no anúncio dos grandes princípios da Justiça Social mas exige a denúncia dos casos concretos que infernizam a vida das pessoas e das sociedades. E nós? É importante denunciar os erros mas importa também que todos assumam as suas próprias responsabilidades. O Santo Padre escreveu “A solidariedade consiste primariamente em que todos se sintam responsáveis por todos e, por conseguinte, não pode ser delegada só no Estado”. Não basta exigir que o Estado cumpra o seu dever. É preciso que cada um ajude a construir a sociedade solidária, porque, como disse D. Manuel Clemente, “antes do Estado social está a sociedade social que o precede, alimenta e extravasa”.

Em três dias seguidos…

… Três vivências diferentes, a mesma conclusão. Os factos. O primeiro deu-se no sábado, 19 de janeiro, em Milheirós de Poiares, onde um casal falou a pais e adolescentes sobre a vida em família. As situações gravitaram em torno de três perícopes retiradas da mensagem de Bento XVI no dia da Sagrada Família: 1 -“os pais se preocupem seriamente com o crescimento e educação dos filhos, para que maturem como homens responsáveis e cidadãos honestos”; 2 - ”a fé é um dom precioso a alimentar nos próprios filhos também com o exemplo pessoal; 3 - “cada criança seja acolhida como dom de Deus, apoiado pelo amor do pai e da mãe”. No final, uma síntese em quatro palavras: solidariedade entre todos (pais, filhos, irmãos) e em todos os momentos; gratidão para com Deus e uns para com os outros; osmose, o exemplo dos pais deve fazer com que os filhos absorvam, quase sem dar conta, os valores humanos e cristãos que lhes informarão a vida; confiança, com a certeza de que, se semearmos, os frutos, mais cedo ou mais tarde, irão aparecer, quem não semeia é que nada colherá. O segundo aconteceu no domingo em Vila Real. Foi a celebração do 100º aniversário de uma amiga. Na Eucaristia, na Sé Catedral, D. Amândio, muito humano nas atitudes e nas palavras, realçou que a vida é dom de Deus. E acrescentou: “Deus tem sido generoso com D. Anaíza e ela tem sabido cuidar bem desse dom, pondo-o ao serviço da família, da comunidade e da Igreja”. No almoço, com uma centena de amigos, era visível a alegria da homenageada, do marido e da filha que de tudo fizera o seu enlevo. Foi um momento de gratidão por uma vida longa cuja fecundidade extravasou as paredes da casa e frutificou em gestos de bondade junto de amigos e vizinhos. Deu gosto ver a sua jovialidade e ouvi-la agradecer com um “até para o ano”… O último teve lugar no mosteiro de Leça do Balio, na 2ª feira, onde um irmão presidiu às exéquias da irmã que “foi uma espécie de mãe para todos os irmãos”. Momento de forte comunhão espiritual e de sentida amizade com a tristeza a contrastar com a Fé na Ressurreição. A dor transparecia na emoção que embaciava a voz e os rostos de quantos participavam naquela cerimónia íntima, quase familiar. A Fé, bem presente na homilia, atingiu o auge quando o celebrante, no final da Eucaristia vivida em profundo silêncio, espontânea e inesperadamente começou a cantar “Ressuscitou, Aleluia! Onde está, ó morte, a tua vitória? E um coro de vozes emocionadas encheu a majestosa igreja gótica: Ressuscitou, ressuscitou, ressuscitou, Aleluia! Conclusão. Estas vivências, embora diversas na sua expressão, convergem na afirmação da família como comunidade de amor e fé. Com os retalhos do nosso quotidiano, Deus e a família tecem a unidade que motiva e dá sentido à vida.

Marcas na paisagem

Há dias, ao ver lojas encerradas num centro comercial, dei comigo a pensar que é possível estudar a história de um povo lendo as grandes pegadas que cada geração vai deixando na paisagem. Recuei até aos “castros” nos cimos dos montes que os romanos substituíram pela “vilas” nos vales férteis. Seguiram-se os castelos que perderam a utilidade e os habitantes. Alguns mantêm-se como evocações históricas enquanto outros não passam de amontoados de ruínas. A Idade Média povoou-se de catedrais e mosteiros que, com o tempo, se foram esvaziando. Muitos são os que não passam de testemunhos decrépitos de um passado glorioso. E as catedrais que se mantêm raramente se enchem. No século XVIII, com o ouro do Brasil, multiplicaram-se majestosos santuários barrocos que, hoje, atraem mais turistas que peregrinos. E solares sumptuosos, alguns dos quais se democratizaram como “turismo de habitação”. A revolução industrial do século XIX criou os “coutos mineiros” e grandes complexos industriais. Com a desindustrialização do século XX, as aldeias mineiras transformaram-se em povoações fantasmas e as fábricas em enormes manchas negras a desfear a paisagem. Com a terciarização da economia, na 2ª metade do século XX, surgiram as torres para escritórios e habitações. Construíram-se bairros habitacionais na periferia das grandes cidades para onde também se deslocaram muitos serviços públicos. Os centros históricos ficaram sem pessoas e sem vida, originando as chamadas “cidades donuts”. Já no nosso tempo, a civilização do lazer levantou estádios de futebol, alguns dos quais não passam de monstros vazios e sorvedouros do erário público. Pavilhões e piscinas municipais, várias encerradas por falta de utentes e verbas que as sustente. Multiplicaram-se “centros comerciais” que arruinaram o “comércio de rua” e criaram necessidades despesistas, geradoras de frustrações. Também eles estão em crise. O que lhes irá acontecer? Com o “dinheiro fácil” dos empréstimos, exacerbou-se o novo-riquismo e a megalomania de famílias e políticos. Época de contradições: a casa cresce quando a família se torna mais pequena; aldeias enchem-se de “parques de merenda” quando falta gente para merendar, de praias fluviais mas rareiam veraneantes; nas vilas, abundam chafarizes mas sem jatos que os embeleze, parques infantis mas escasseiam crianças que os animem, luxuosos “centros educativos” e ficaram silenciosas as “escolas primárias” que alegravam aldeias; o país povoou-se de autoestradas do “lá-vem-um”… Amontoaram-se as dívidas que nos asfixiam. E nós que marcas deixamos na paisagem? Ruas esventradas, autoestradas interrompidas, viadutos e túneis por acabar, edifícios e bairros com esqueletos de cimento a bradar contra o desvario dos decisores políticos? Desejo bem que não.

A lembrar João XXIII

Aconteceu que, inesperadamente, a coragem, o calor humano, o bom humor e a bondade de João XXIII conquistaram o afeto de todo o mundo católico e a estima dos não-católicos. (…) Tinha uma fé inabalável em Deus, na presença contínua do Espírito Santo como guia da Igreja e uma abertura total ao diálogo com todos, sem dilações nem condições”. Estas palavras do meu primo Manuel Oliveira na palestra inaugural da “celebração do quinquagésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II”, no Colégio Português de Roma, referem-se ao bom Papa João, mas poderiam aplicar-se ao Papa Francisco. O novo papa tem gestos que me fazem recordar o que, na mesma comemoração do Colégio Português, disse monsenhor Crispino Valenziano: “vivemos então o novo Pentecostes”. Para o comprovar, contou dois episódios a que chamou as “intuições” de João XXIII. O primeiro aconteceu em 11 de setembro de 1962 em São João de Latrão. “Começou por dizer: daqui a um mês, reunir-nos-emos em Concílio e virão muitos… mas, repentinamente, num salto de pensamento sem nexo algum, disse: Lumen Christi e todos cantam: Deo gratias. Mas não só Lumen Christi, também Deo gratias, lumen ecclesiae. Deo gratias, lumen gentium… O que estava o papa a dizer? Não havia sintaxe. Tive a impressão clara de que estava a profetizar. Lumen Christi – lumen ecclesiae – lumen gentium. Depois retomou o discurso, como se estivesse a sair dum transe”. O segundo foi em 10 de outubro, na véspera da inauguração do Concílio. “Monsenhor Capovilla, secretário de João XXIII, conta que, quando surgiu a procissão das velas, o papa estava lá e observava tranquilamente. Então, disse-lhe: “Santidade, veja o que está na praça” ao que ele respondeu: “Não, não, não. Acabei. Acabou-se.” Depois, levantou-se, foi olhar no outro lado do apartamento que não dava para a Praça de S. Pedro, mas para o castelo de Sant’Angelo. De repente, abriu a janela: ”Filhinhos, filhinhos!” E recomeçou novamente este discurso sem sintaxe, um discurso sem sentido: Estamos. Nesta manhã. Irmão. Eu sou vosso irmão, mas um irmão que também se tornou pai. E verdadeiramente queiramos agradecer… devemos… mas fraternidade, paternidade e tudo em conjunto. E olhai também para a Lua, nesta noite, apressou-se… Entre estes dois sem-sentido, percebeu-se para onde o papa queria levar a Igreja”. O profeta anuncia novos horizontes de esperança mas nem sempre tem consciência do alcance das suas palavras e gestos. O Papa João, ao convocar o Concílio, certamente não previu os seus caminhos e o Papa Francisco nunca imaginaria a repercussão que iriam ter a sua apresentação e a saudação “Irmãos e irmãs, boa noite!”, após ser eleito. São intuições. Que os “ricos” da Igreja e do Mundo não impeçam esta “passagem do Espírito”...

quarta-feira, abril 24, 2013

“O bispo dos pobres”

No “Dia da Voz Portucalense”, fez-se memória e rezou-se pela beatificação de D. António Barroso, o bispo que D. Manuel Clemente, no livro D. António Barroso Memórias de um Bispo Missionário, apresenta como “ figura altamente inspiradora do que um prelado há de fazer na sociedade contemporânea e em tempos de “nova evangelização”. “A participação de Portugal na Primeira Grande Guerra provocou o aumento dos impostos e a subida dos preços. Isto degradou muito o nível de vida dos portugueses e generalizou o descontentamento”. (A Grande Viagem). Nesses tempos de miséria, no dealbar do século passado, D. António Barroso agigantou-se como “pai dos pobres”. Quando faleceu, toda a imprensa nacional e regional lamentou a morte do “bispo dos pobres”. Ele sabia que, antes de dar a cana e ensinar o pobre a pescar, é preciso ajudá-lo a ter forças para segurar na cana. D. António Barbosa Leão, seu sucessor no Porto, disse que “Em sua casa faltaria talvez na mesa até o necessário; o seu vestuário muitas vezes denunciava pobreza (…) mas para os pobres havia sempre: esmola e palavras amigas”. A mãe ofereceu-lhe o seu cordão de ouro. Mais tarde, ele confessou que o cordão já não existia porque o foi partindo aos bocadinhos para dar, quando nada mais tinha, aos pobres que lhe batiam à porta. Dele escreveu Raul Brandão, “o Bispo é uma grande figura de bondade. Dá tudo o que tem”. Além disso, dinamizou várias instituições de assistência, como a Oficinas de S. José, Asilo de Vilar, Recolhimento das Meninas Desamparadas, Recolhimento do Ferro, Irmãzinhas dos Pobres. Fez renascer o Círculo Católico Operário. E criou a Associação de Proteção à Infância. Mais ainda. Em 1918, escreveu uma carta pastoral em que, diz José Gomes Campinho, começa por constatar a crise das subsistências, que se manifesta num quadro confrangedor em que a miséria “se reflete na vida familiar, na ordem pública, na paz social”. Afirma que o trabalho, enquanto “nobre meio de se ganhar o sustento de cada dia” deve ser valorizado e tratado não como uma mercadoria mas como expressão da vida humana; que os salários devem ser proporcionais com as necessidades dos trabalhadores, e lembra aos patrões que “brada ao céu o pecado de se não pagar a quem trabalha o jornal merecido e juso”; que os trabalhadores, para não ficarem à mercê do arbítrio dos patrões, têm o direito de se organizarem em sindicatos e federações, mas que as reivindicações se devem fazer sem sedições nem violências; a luta de classes não resolve a “questão social” porque esta só poderá ser resolvida “pelo princípio da solidariedade humana e da fraternidade cristã”. Que atualidade! Era a aplicação da “Rerum Novarum” de Leão XIII. Hoje, clamaria com D. Manuel Clemente “Não apertem de mais, precisamos de respirar”. João Alves Dias No “Dia da Voz Portucalense”, fez-se memória e rezou-se pela beatificação de D. António Barroso, o bispo que D. Manuel Clemente, no livro D. António Barroso Memórias de um Bispo Missionário, apresenta como “ figura altamente inspiradora do que um prelado há de fazer na sociedade contemporânea e em tempos de “nova evangelização”. “A participação de Portugal na Primeira Grande Guerra provocou o aumento dos impostos e a subida dos preços. Isto degradou muito o nível de vida dos portugueses e generalizou o descontentamento”. (A Grande Viagem). Nesses tempos de miséria, no dealbar do século passado, D. António Barroso agigantou-se como “pai dos pobres”. Quando faleceu, toda a imprensa nacional e regional lamentou a morte do “bispo dos pobres”. Ele sabia que, antes de dar a cana e ensinar o pobre a pescar, é preciso ajudá-lo a ter forças para segurar na cana. D. António Barbosa Leão, seu sucessor no Porto, disse que “Em sua casa faltaria talvez na mesa até o necessário; o seu vestuário muitas vezes denunciava pobreza (…) mas para os pobres havia sempre: esmola e palavras amigas”. A mãe ofereceu-lhe o seu cordão de ouro. Mais tarde, ele confessou que o cordão já não existia porque o foi partindo aos bocadinhos para dar, quando nada mais tinha, aos pobres que lhe batiam à porta. Dele escreveu Raul Brandão, “o Bispo é uma grande figura de bondade. Dá tudo o que tem”. Além disso, dinamizou várias instituições de assistência, como a Oficinas de S. José, Asilo de Vilar, Recolhimento das Meninas Desamparadas, Recolhimento do Ferro, Irmãzinhas dos Pobres. Fez renascer o Círculo Católico Operário. E criou a Associação de Proteção à Infância. Mais ainda. Em 1918, escreveu uma carta pastoral em que, diz José Gomes Campinho, começa por constatar a crise das subsistências, que se manifesta num quadro confrangedor em que a miséria “se reflete na vida familiar, na ordem pública, na paz social”. Afirma que o trabalho, enquanto “nobre meio de se ganhar o sustento de cada dia” deve ser valorizado e tratado não como uma mercadoria mas como expressão da vida humana; que os salários devem ser proporcionais com as necessidades dos trabalhadores, e lembra aos patrões que “brada ao céu o pecado de se não pagar a quem trabalha o jornal merecido e juso”; que os trabalhadores, para não ficarem à mercê do arbítrio dos patrões, têm o direito de se organizarem em sindicatos e federações, mas que as reivindicações se devem fazer sem sedições nem violências; a luta de classes não resolve a “questão social” porque esta só poderá ser resolvida “pelo princípio da solidariedade humana e da fraternidade cristã”. Que atualidade! Era a aplicação da “Rerum Novarum” de Leão XIII. Hoje, clamaria com D. Manuel Clemente “Não apertem de mais, precisamos de respirar”.

Vivências quaresmais

No Eucaristia do “domingo gordo”, o celebrante, ao lembrar o jejum e abstinência na “quarta-feira de cinzas”, acrescentou: “Esta linguagem pode não dizer muito ao nosso tempo, mas se não somos capazes de observar estes mínimos, como poderemos viver o espírito quaresmal?” Isto levou-me a consultar o YOUCAT – catecismo jovem da Igreja Católica - para ver o que dizia sobre este tema. Depois de elencar os “cinco preceitos da Igreja”, o 4º dos quais é “Guardar abstinência e jejuar (na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa”), explica que eles “pretendem recordar, com as suas exigências mínimas, que não se pode ser cristão sem esforço moral, sem concreta participação na vida sacramental da Igreja e sem solidariedade”. Mais do que esmiuçar casuisticamente formas rituais de observância, este “catecismo em linguagem juvenil”, realça o seu simbolismo centrado na necessidade do “esforço moral” e da “solidariedade”. Esta explicação fez-me contrapor duas vivências passadas. A primeira aconteceu quando, de passagem por Caminha, aproveitei para visitar uma amiga. Como a noite se aproximava, disse-me que gostaria que jantasse com a família, mas, porque era sexta-feira da quaresma e tinha pouco peixe em casa, o que poderia preparar era uma lagosta que lhe haviam oferecido. Anui e agradeci a generosidade. E assim se cumpriu o rito que diz: “a abstinência consiste em não comer carne nem comida temperada por ela”. Obedecer à letra poderá ser um mínimo com valor de símbolo de pertença e fator de lembrança das exigências quaresmais, mas não basta… Como diz S. Paulo “a letra mata e o espírito vivifica”(II Cor 3,6) A segunda deu-se em Lisboa na paróquia de Santa Isabel onde passei uns dias em casa de amigos. Era quaresma. Na sexta-feira, o jantar foi apenas sopa. Explicaram-me que o pároco pedira que, durante a quaresma, comessem apenas sopa no jantar de sexta-feira e o dinheiro que poupassem nessas refeições bem como noutras privações, como cigarros, cafés, bebidas, chocolates, cinemas, seria entregue no ofertório de Domingo de Ramos para a colónia de férias da paróquia. O sacrifício não era valorizado como um fim em si mesmo mas como instrumento ao serviço da Caridade. Que bom seria se este espírito informasse a nossa vivência quaresmal… Esta é a vontade expressa pelo Bispo de Angra de Heroísmo na mensagem para a Quaresma deste ano. Depois de salientar “que o melhor jejum e penitência que os católicos podem fazer é socorrer quem precisa”, lembra “que cada cristão tem de sentir a obrigação de concretizar o amor ao próximo no ambiente em que vive e trabalha, promovendo a solidariedade de proximidade”. “O jejum que me agrada não será antes este: quebrar as cadeias injustas … repartir o teu pão com o pobre? (Is, 58,1-9)

Cuidado com os vigaristas!

São mesmo vigaristas e da pior espécie. Sem moral, sem escrúpulos e sem coração. Peço desculpa por voltar mais uma vez ao tema. Mas dói muito ver pessoas, que trabalharam toda a vida, ficar sem o ”pé-de-meia” que foram amealhando, sabe Deus com que sacrifício, e que lhes dava alguma segurança para o resto dos seus dias. Ainda em 9 de fevereiro, os jornais noticiavam: ”Idosa entregou 7 500 euros e ouro a falsos doutores da Segurança Social” Com a devida vénia, quero ser caixa-de-ressonância do JN de 3 de fevereiro que abria a primeira página com o título “POLÍCIAS TEMEM VAGA DE BURLAS CONTRA IDOSOS – Novas notas de 5 euros potenciam trocas fraudulentas”. Em duas páginas do interior, sobressaía um “ALERTA CONTRA BURLAS A IDOSOS COM NOVA NOTA”. Polícias, freguesias, associações previnem o aumento de ataques com a chegada da “série Europa” de 5 euros. Campanha em todo o país”. Depois de avisar que ”todos os dias há idosos burlados”, acrescentava que “o cenário piora com o anúncio da chegada das novas notas de 5 euros, em maio. É mais uma oportunidade para os que se dedicam a vigarizar pessoas de idade. Apresentam-se como funcionários da Segurança Social ou de outras instituições, usam o argumento de que as notas do euro vão perder validade e convencem as vítimas a entregar para “troca” todo o dinheiro que guardam em casa”. Realçava que “são indivíduos bem vestidos (muitas vezes de fato e gravata) e persuasivos. Normalmente atuam em duo e dizem ser funcionários da Segurança Social, CTT, bancários, médicos e até familiares dos idosos”. E fazia-se eco da informação do Banco de Portugal: “não haverá qualquer troca de notas para já” e, a haver, será ao nível dos bancos, “ninguém poderá apresentar-se junto de pessoas e dizer que realiza essa troca”. “As atuais notas de 5 euros não perdem a validade em maio. Serão retiradas de circulação gradualmente e só deixarão de ter curso legal em datas a anunciar pelo Banco de Portugal. Assim, serão emitidas em paralelo com as novas durante vários meses e poderão ser trocadas nos bancos “por um período ilimitado”. “Ambas têm valor e devem ser aceites pelas pessoas”. Gostaria de ver a Igreja –“mestra em humanidade”- associar-se, de forma pública e organizada, a esta campanha nacional, informando os idosos e prevenindo-os contra possíveis burlões. Este ato de caridade pode ser feito pelos sacerdotes nas missas e também pelos funcionários dos centros de dia e lares, vicentinos, ministros extraordinários da comunhão, catequistas e outros organismos que contactem com gente de idade. Caro leitor, se esclarecer e acautelar as pessoas das suas relações, prestar-lhes-á um bom serviço. Não podemos ficar indiferentes perante este flagelo que atinge os mais fragilizados pela idade e pela solidão.

“Terra de heróis e santos” - I

Esta exaltação patriótica foi-me inculcada nos primeiros bancos da escola. De santos, eu conhecia o S. João de Sobrado com bugios e mourisqueiros, S. Martinho a cuja “Pia” se subia, em prece, nas secas extremas, Sant’Águeda de Recarei com afamado concurso de gado bovino, S. Jerónimo e Santa Bárbara invocados em dia de trovoada, Santa Justa cuja capela se via de minha casa, Santo António a quem minha mãe encomendava as vacas para parir, S. Simão de cuja festa sempre me traziam rosquilhas. De heróis, bastava D. Afonso Henriques que derrotou os Mouros com a ajuda de Nosso Senhor que lhe aparecera antes da batalha de Ourique. Depois, veio a desilusão ao aperceber-me que, destes santos, só António era português e que D. Afonso Henriques andou à guerra com a mãe. Com a idade, tomei consciência que, sem complexos nem chauvinismos, devemos honrar-nos dos nossos heróis e santos que o foram no anonimato das suas vidas. Quanto mais conheço a biografia de D. António Barroso mais me convenço da heroicidade dos seus atos e da santidade da sua vida. O mesmo se diga da vida e obra do nosso P. Américo. No final do filme O Cônsul de Bordéus que recorda “a enorme coragem do diplomata Aristides de Sousa Mendes”, surpreendi-me a bater palmas ao herói que, nesta hora de acabrunhamento nacional, me deu a alegria de ser português. No filme, transparece o seu humanismo e a força do seu caráter perante a angústia de milhares de judeus ameaçados pelo terror nazi. Só lamento que este filme não fosse dirigido por Spielberg para correr o mundo como a “Lista de Schindler” que exalta a coragem dum empresário que salvou do Holocausto cerca de mil judeus. É que o nosso Sousa Mendes salvou trinta mil refugiados de todas as nacionalidades, quando os primeiros aviões alemães já descarregavam bombas sobre Bordéus. E, para o fazer, desobedeceu a Salazar que decretou a sua aposentação e lhe proibiu o exercício da advocacia. ”. Em 1954, morreu na miséria, “pobre e desonrado”. Em 1966, o “Memorial do Holocausto” de Jerusalém consagrou-o como “Justo entre as nações”. Mas seu País só o reabilitou em 1986 com a “Ordem da Liberdade”. E de que valeu este gesto se a casa onde nasceu continua em ruinas e ele permanece um ilustre desconhecido para os portugueses? Dos manuais escolares que consultei, só um lhe consagra um texto com o título “Um Homem com H grande” em que afirma “Portugal compreendeu que é em pessoas como esta que “repousa a esperança do futuro da humanidade”. Desejo que sim, mas, infelizmente, continua a ser verdade que “ninguém é profeta na sua terra”. Nem Sousa Mendes é honrado como merecia na sua Pátria, nem D. António Barroso é lembrado como devia na sua Diocese. E mesmo o “Pai Américo”, como é esquecido na cidade que tanto amou e ajudou…

“Terra de heróis e santos”- II

Em 23 de dezembro, o Público apresentou uma reportagem, de António Marujo, com o título: “O padre que foi de Leiria para Roma salvar judeus”. Na capa, dizia “Joaquim Carreira abrigou refugiados judeus e antifascistas nos longos meses de ocupação italiana pelas tropas nazis, nos anos 40”. - Quantos? – Cerca de meia centena. - Onde? - No Colégio Português de Roma de que era reitor. Fora um hipotético escândalo e as televisões tê-lo-iam dissecado até ao tutano. Assim... Para que se faça memória, a minha homenagem a este padre que confessou ter concedido “asilo e hospitalidade no colégio a pessoas que eram perseguidas na base de leis injustas e desumanas”. Salvou judeus da morte, como testemunhou um judeu italiano, “Estou-lhe muito grato e recordo sempre o facto de ele me ter salvo a vida”. Mereceria, por isso, o título de “justo entre as nações”, no Memorial de Jerusalém. O historiador D. Carlos Azevedo afirmou que “ele pode colocar-se ao lado de quem desobedeceu às autoridades desumanas por grandeza de alma, por obediência à consciência, correndo graves riscos”. Roma “via cada dia mais serem consumidas as suas reservas alimentares”. O P. Carreira, para que alunos e refugiados não passassem fome, ia à procura de comida, recorrendo aos moleiros que conhecia nos arredores de Roma: “o milho, cozido em grão, valia um bom bife”, conta ele. Apesar do espetro da fome, um refugiado recorda que “nunca faltou nada na mesa dos hóspedes clandestinos, graças ao sacrifício do padre Carreira”. Outro descreve o Colégio como um “oásis de serena espiritualidade, de alta intelectualidade e de afetuosa hospitalidade”. E quem eram estes refugiados? Um deles fala de “professores, estudiosos, comerciantes, militares, estudantes, judeus” que puderam experimentar o espírito altruísta do padre Carreira que “desafiou as ferozes leis de guerra alemãs e fascistas para ajudar os que estavam em perigo”. Termino referindo o testemunho do professor Mário Jacopetti. Num poema sobre a sua presença como refugiado no colégio português, menciona um nome que me despertou a atenção:“ Domingos de Pinho Brandão”. “Era ele que ensinava português (“a sonante língua de Camões”) aos refugiados”. É uma dimensão nova que desconhecia em D. Domingos e que muito me alegrou. Não é fácil resumir uma reportagem com 7 páginas de revista. Espero não ter desvirtuado o seu espírito. Acima de tudo, aconselho vivamente a leitura do texto integral. Valorizemos o que é nosso. Há dias, o embaixador português na Alemanha afirmou que “o único lugar do mundo em que se diz mal dos portugueses é em Portugal” e D. Manuel Monteiro de Castro confessou que o presidente do governo francês lhe disse “Olhe, aqui melhor gente que a portuguesa não temos”. Honremos os nossos heróis.

Morte – último dos tabus

Tempos atrás, um companheiro de longa data falou-me dos comentários que, aquando do seu casamento, os amigos teceram à sua nova casa. Um pedopsiquiatra, na sala, que de jantar tinha o nome mas não mobília, disse-lhe: “parabéns por estes espaços vazios. Estou cansado de tratar mães angustiadas com os filhos que se magoam nos móveis e lhes partem os bibelôs. Os adultos não pensam nas crianças quando atafulham as casas”. O outro foi dum tio que vivia na aldeia. Enquanto percorriam a casa, começou a medir o corredor e, no fim, disse: “muito bem, quando alguém morrer não precisais de desarrumar nenhum quarto, tendes aqui um bom espaço para pôr o caixão”. Era assim, antigamente. Em casa se nascia e vivia. E também se morria e partia para a última morada. Desde cedo, as crianças habituavam-se a conviver com a vida e a morte. Desconheciam donde vinham os meninos, mas sabiam que o bebé era dom sagrado a ser batizado. E também sabiam que, quando alguém morria, ia para o Céu para junto de Deus. O sentimento religioso bebia-se com o leite materno. Hoje, a sociedade é bem diferente. Em casa não se nasce, quase não se vive e raramente se morre. Explica-se às crianças os mecanismos biológicos da reprodução, mas nada se diz sobre o mistério da vida e do amor. Porque a morte denuncia a fragilidade humana e o “pós-morte” não tem explicação científica, procura-se ocultá-la às crianças. Sem uma referência à transcendência, como falar-lhes do avô que se fez cinza ou foi enterrado no cemitério? Tenta-se varrer a morte para debaixo do tapete. Faz-se dela o último dos tabus. Estas reflexões surgiram-me na sexta-feira santa quando a “morte de cruz” é celebrada como caminho de Vida. E fizeram-me lembrar a afirmação do Cardeal Ravasi, a propósito do “Átrio dos gentios”: “há hoje um ateísmo onde domina a indiferença: é igual que Deus exista ou não, é marginal que haja ou não uma moral transcendente”. Ao expulsar Deus da família e da sociedade, a Europa fez-se alfobre deste ateísmo prático, fechado ao diálogo e sem qualquer inquietação metafísica; ao procurar silenciar a voz da morte que fala do além, pretendeu aniquilar o último reduto da sacralidade. Recordei, ainda, aquela criança que, ao chegar da catequese, disse: “a minha catequista é mentirosa, disse que Cristo morreu e ressuscitou. Ó mãe, tu já viste alguém voltar a viver depois de estar morto?” Como catequisar crianças que, embora batizadas, não têm o sentido do sagrado e a quem os símbolos cristãos pouco dizem? Ensinar-lhes a doutrina não basta, é preciso iniciá-las numa vivência que lhes é estranha, sem a qual, a catequese é água que não penetra na terra e cedo se evapora. É este o mundo em que celebramos a Páscoa. Também para ele a Páscoa é apelo à mudança e convite à esperança.

Na “costa negra”

Noite de tempestade. Um transatlântico com 211 passageiros a bordo. Emigrantes que rumavam à América do Sul. Navegava junto à “costa negra” ou ”costa muda” de Leça, assim chamada por, então, não ter iluminação nem sinalização. Às quatro da madrugada do dia16 de janeiro de 1913, um rochedo rasgou-lhe o ventre. Encalhou perto da capela da Boa Nova, onde veio a afundar-se. Foi há 100 anos. O JN descreveu então o naufrágio do “Veronese”: “As vagas uivam e rugem furiosamente. O nevoeiro é cerrado, espesso, mal se divisando da praia. Aos gritos dos náufragos juntam-se a ira do mar e as vozes comovidas de milhares de pessoas que de terra assistem àquela agonia lenta”. Os Bombeiros de Matosinhos-Leça mobilizaram todos os meios possíveis de socorro. Foram três dias de angústia. Umas 15 mil pessoas terão assistido às operações de salvamento. Os bombeiros começaram por usar “boias-calções” que, num cabo de vaivém, trouxeram para terra 89 náufragos. A fixação do cabo só foi possível ao fim da tarde. Mas, como o tripé da praia estava muito baixo, pessoas houve que não conseguiram vencer a fúria do mar. Os relatos são dramáticos. Um fala de “uma mãe que, carregando dois filhos, perde um deles arrebatado pela violência das ondas” . No dia 17, o tripé foi levantado com a ajuda de três pinheiros. No dia 18, o mar acalmou e permitiu que os botes salvassem as 102 pessoas que ainda permaneciam no navio. Ao todo, morreram 38 pessoas, grande parte delas nas primeiras horas do naufrágio quando, aflitas, fugiram para o convés e foram varridas pelas vagas. A Invicta Film produziu um documentário que percorreu o mundo e, ainda hoje, nos permite visionar esta tragédia. O capitão foi o último a abandonar o navio e fê-lo numa boia-calção, num gesto de gratidão aos bombeiros que, ainda hoje, se revive nas muitas peças do Veronese que, com fotografias e pinturas, enriquecem o Museu dos Bombeiros Voluntários de Matosinhos-Leça. Este museu, criado em 1943, está recheado com um valioso espólio de mais de 800 peças que ganham alma nas palavras do comandante Carlos Oliveira. Para além do núcleo central com o material dos primórdios da Corporação no século XIX, merece especial atenção o núcleo dos salvados de incêndios e naufrágios com realce para as boias de salvação e rodas de leme dos muitos barcos naufragados. É digno de uma visita. À sua entrada, uma placa diz-nos: Bombeiro, Este Museu representa parte da tua Vida. Testemunho de tantas tragédias, tanto desespero, tanta emoção e quantas lágrimas derramadas na tristeza e na alegria. Tantas vidas salvas e quantas histórias para contar aos teus filhos. E sempre a bem da Humanidade”. Neles, a minha homenagem a todos os bombeiros. E peço uma oração pelos que perderam a sua vida a salvar a vida dos outros.

Exemplos de fidelidade

Quando penso na história da Igreja do Porto, recordo como D. António Ferreira Gomes enaltecia a coragem do seu clero na 1ª República. Falo disto a propósito do livro, recentemente editado, “As Igrejas e Capelas das freguesias de Oliveira de Azeméis esbulhadas dos seus bens pelo Governo da República, em 1911”, de Samuel de Bastos Oliveira, com o subtítulo “Os Párocos que, solidários com o Bispo do Porto destituído, recusaram a pensão do Estado”. Nele se afirma que “só 17 párocos aceitaram receber a pensão do regime republicano”, enquanto 468 a recusaram. Estes padres, ao afrontar o “aliciamento” provocatório do Governo, corriam graves riscos, de prisão inclusive, por suspeita de serem contra a República. Mas, acima de tudo, que jeito lhes daria essa pensão quando se viram privados das fontes tradicionais de subsistência!... Espoliados dos rendimentos e bens da igreja, proibidas as doações e legados, extintas as oblatas e outras prestações com que os paroquianos socorriam o seu pároco, proibidas as procissões, ficaram, ainda, privados dos registos paroquiais e outros direitos, especialmente os relacionados com funerais. Humilhados, passaram por muitas privações e o que lhes valeu foi o carinho dos paroquianos que os acolheram. Foi o que aconteceu ao pároco de Campo, Valongo. Cresci a ouvir falar dele como um santo que muito sofreu com as injúrias e enxovalhos dos carbonários. Carbonário foi palavra que entrou cedo na minha linguagem infantil como sinónimo de “homem mau”. Penso que o fanatismo antirreligioso de alguns mações e o anticlericalismo grosseiro da carbonária denegriram a imagem da República e fizeram com que muita gente festejasse o “28 de Maio” e visse em Salazar um “enviado de Deus”. Compreenderam-no os políticos de Abril ao evitar a “questão religiosa”. Expulso da residência paroquial em 1911, foi acolhido na “Casa da Ponte”, onde minha mãe, com seis anos, acompanhou o seu calvário. Sempre os olhos se humedeciam quando ela falava do seu sofrimento e a sua narrativa assumia tonalidades misteriosas ao contar que, certo dia, os carbonários entraram pela casa dentro e foram ao quarto do Senhor Abade, onde ele estava doente, à procura de armas. E retiraram-se sem o prender porque, depois de vasculhar todo quarto, nada encontraram de comprometedor. E não foram capazes de ver uma espingarda que estava pendurada aos pés da sua cama… Chamava-se P. Manuel Joaquim Tavares e era natural da Junqueira de Vale de Cambra onde tem uma rua com o seu nome. Apenas o conheci por uma fotografia guardada, como se de um “santinho” se tratasse, junto do santuário da família. Passados cem anos, quão exemplar se mantém a memória destes padres que, no meio da tribulação, permaneceram “firmes na fé, solidários e fiéis à Igreja”!

Um profeta nos foi dado

Era este o sentimento que iluminava o rosto de quantos comigo participaram na Eucaristia no dia 17 do mês de março. O celebrante, a partir de São Mateus, “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”, fez uma emocionada profissão de fé na presença de Cristo na eleição do Papa Francisco: “Situações há em que quem escolhe são os homens, e Ele é que as paga, mas, neste caso, foi mesmo o Espírito Santo”. E baseava-se em três factos que classificou como sacramentais. Em primeiro lugar, a rapidez da eleição e a surpresa do escolhido. Muitos eram os nomes anunciados. E bastaram dois dias para surgir como eleito o Arcebispo de Buenos Aires de que ninguém falara. Depois, foi a sua origem num continente bem longínquo desta Europa, cansada e esgotada de valores evangélicos, em torno da qual sempre gravitou o papado. Vem do sul, um hemisfério explorado e com grandes manchas de miséria, e dum continente marcado por gritantes injustiças sociais, mas onde o cristianismo floresce como sinal de esperança, numa Igreja que se quer e faz companheira dos mais pobres. E, finalmente, o nome Francisco, pela novidade. Nunca nenhum papa ousou assumi-lo como lema. E, muito especialmente, pelo seu significado. Como ele próprio confessou, o Santo de Assis “é o homem da pobreza, da paz, o que ama e preserva a criação, o homem pobre”. “Ah, como eu queria uma Igreja pobre para os pobres”. O homem despojado de riqueza e de vaidades, pobre entre os pobres, para quem todas as criaturas eram irmãs. Que tinha no coração a humanidade e a criação inteiras. O santo que visionara a reconstrução da Igreja. Se, como ensina o Vaticano II, os sacramentais são sinais sagrados que manifestam a presença benfazeja de Deus e expressam a Sua bênção, então gostaria de acrescentar um quarto sacramental: o do sorriso. Quando, após a sua eleição, apareceu à janela, o que me surpreendeu, antes das palavras e gestos proféticos, foi o seu sorriso. Não um sorriso de conveniência, mas sim o sorriso autêntico que, via-se, vinha do mais fundo da alma. Um sorriso terno e tímido como que a pedir perdão por estar ali, a fazer-me lembrar o “desculpem-qualquer- coisinha”, e a querer dizer “ eu até nem queria, mas fui escolhido e, por isso, venho dizer-vos que aceito a vontade de Deus e pedir as vossas orações”. Um sorriso a desanuviar o rosto carrancudo dum mundo angustiado com a ameaça nuclear norte-coreana e das armas químicas na Síria, duma Europa desorientada e esmagada pela austeridade. Em dia de inverno, foi prenúncio de primavera; em tempo de quaresma, foi anúncio pascal. Francisco - o ”papa do sorriso”. Uma bênção. Um sopro do Espírito a surpreender um sistema de cooptação que, por natureza, resiste à mudança.

segunda-feira, abril 22, 2013

Em dia de festa- uma homenagem

Pascoela. Em Cabeceiras de Basto, na freguesia da Faia, respeitou-se a tradição. Foi dia de visita pascal. Manhã cedo, já os foguetes e a banda musical da Cumieira semeavam aleluias numa primavera que se vestira com a brancura das cerejeiras em flor. A festa é um corte na monotonia do presente pela recuperação ritualizada do passado. Daí o seu caráter conservador. Os ritos moldam-se à passagem do tempo, substituem-se os atores mas permanece a sua simbologia mais profunda. Assim é no compasso. A cesta dos ovos deu lugar à saca/pasta dos envelopes, a saudação do pároco “Haec dies, quam fecit Dominus: exsultemus, et laetemur in ea” foi substituída pela oração do(a) leigo(a) que o representa, mas o repicar festivo da campainha, a aspersão com água-benta e o beijar da cruz reatualizam, em cada ano, o anúncio pascal. A festa é a celebração do “eterno ontem” que suaviza o presente muitas vezes, como hoje, carregado de sofrimento. É sempre sinal de contradição como momento de alegria partilhada que traz consigo a saudade de familiares e amigos e a nostalgia de vivências passadas. Como é triste o poema de Miguel Negreiros, “Natal das sombras”! Há sempre uma penumbra de dor a escurecer as nossas festas. Foi o que me aconteceu este ano, em casa do amigo Guilherme Magalhães, quando recordei a primeira vez que aí beijei a cruz, nos finais da década de setenta. Haviam-me dito que, nesse ano, calhava vir um frade, amigo do pároco P. Zé Maria. E qual não foi o meu espanto quando reconheci nesse monge alguém que há muito admirava. Enquanto os acompanhantes recompunham forças com as iguarias oferecidas, o sacerdote, a quem os anos já iam pesando, pedia um copo de água, sentava-se numa cadeira e ali ficava em tranquila conversa. Foram vários os anos em que senti o conforto da sua presença. Quem poderia imaginar que, naquela figura simples, de fino trato e sorriso acolhedor, se escondia a alta craveira intelectual dum membro da Academia Internacional da Cultura Portuguesa e sócio emérito da Academia Portuguesa de História? Um prestigiado investigador e escritor, insigne conferencista e orador sagrado de grande nomeada? O fundador (1954) da revista litúrgica beneditina “Ora & Labora” que, durante 18 anos (1948-1966), presidira ao mosteiro de Singeverga e, de tal modo o dignificou que, sem desprimor para os seus sucessores, continua a ser, por antonomásia, o ” Dom Abade de Singeverga”? Sim, estou a falar de D. Gabriel de Sousa. Que delícia era ouvi-lo. O humor e a sabedoria das suas palavras, modeladas por uma voz quente e acolhedora, enchiam-nos a alma. Para este monge, sábio e bom, natural de Besteiros, Paredes onde nasceu em1912; para este homem de cultura, falecido em1998, a pequenez da minha homenagem. Honra à sua memória.