O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, novembro 30, 2007

O NASCER DE UMA PARÓQUIA - II

A acção pastoral vai-se alargando…

Passei a viver no Bairro do Cerco do Porto
No início de Outubro, o Senhor D. Florentino chamou-me e disse-me: - No fim deste mês, deixa Santo Ildefonso e vai para o Cerco. Continua como responsável pela “Obra dos Bairros” que é preciso que se vá alargando a outros bairros da cidade, mas a sua presença no Cerco visa a criação de um nova Paróquia naquela zona. Perguntei: - E para onde vou viver? Arranje. - E quem vai viver comigo? – Arranje. E foi assim que saí do Paço: “Arranje”.
Nesse mesmo dia, telefonei ao senhor Dr. Pinheiro Torres,presidente da Câmara Municipal do Porto, pedindo-lhe uma casa para viver no Bairro do Cerco do Porto. Respondeu-me: - Mas não lhe posso ceder porque as casas são só para pessoas desalojadas. Sorrindo, respondi-lhe: - Mas eu sou desalojado. O Senhor Bispo retirou-me de Santo Ildefonso, por isso, não tenho onde habitar… O Senhor Presidente elucidou-me: - Faremos assim. Eu cedo a casa à Obra e o senhor Padre, como é o responsável da Obra, atribui-lhe o destino que quiser. Disse-lhe, então, que, no bloco 15, havia uma casa devoluta que, no verão anterior, tinha servido para nela viver um grupo de seminaristas que fizeram umas “férias missionárias no Bairro”. E assim, a partir de 6 de Novembro, passei a viver no Bairro do Cerco do Porto, Bloco 15, Entrada 442 , Casa 12
Quem me mobilou a casa foram as senhoras da Obra de Nossa Senhora das Candeias (de que recordo a Drª Carolina, a Drª. Rogélia e a Drª Angélica) a quem muito devo pelo seu testemunho de serviço aos pobres, pela sua simplicidade de vida e, até porque, nos meus primeiros tempos do Cerco, era a uma das suas casas que eu ia almoçar. A pobreza evangélica foi uma marca que deixaram presente na minha casa e que orientou toda a minha vida sacerdotal/pastoral.

Capela permanente na Escola Primária A partir dessa data, coloquei um altar e um sacrário no gabinete no piso superior da Escola Masculina. Foi a nossa primeira capela com o Santíssimo Sacramento e onde celebrava todas as manhãs às 8 horas. Como recordo essas Eucaristias… Como eram participadas… Para além de moradores do Bairro do Cerco e da PSP, começaram a aparecer vários jovens de Pego Negro e da Rua do Cerco (Ainda lembro a Dr. Laura Barbosa, a “Zèzinha da Fábrica”, a D. Amélia, esposa do senhor Adelino, a cuja casa passei a ir tomar o pequeno-almoço). As missas dominicais continuaram a ser celebradas no átrio da escola.

Recordando o entusiasmo de uma Igreja que ia nascendo no Espírito e na Fé. Ao fazer este mergulho na memória/história, a mente enche-se de nomes e o coração de amizades. E uma oração elevo a Deus pelos muitos homens e mulheres, grande parte já partiu para a Casa do Pai, que deram o melhor de si mesmo na construção de uma igreja feita de humanidade e transcendência.
Gostaria de lembrar um princípio que norteou toda a minha vida pastoral : “ Em Igreja, mais vale pouco feito por muitos que muito feito por poucos”. Assim, por norma, cada pessoa exercia apenas uma função, não havia acumulação de cargos.
A este propósito, recordo um facto que muito me magoou. Quando deixei o exercício sacerdotal, o Senhor D. António, a meu pedido, nomeou o Pe. José Domingues como meu substituto. Eram tempos de grandes convulsões sócio-políticas. Ao fim de um ano, pediu para deixar a paróquia. Para o substituir, o Senhor Bispo nomeou um sacerdote que poderia ser um bom pároco numa comunidade tradicional e rural mas não estava preparado para esta nova comunidade. Foi um desastre e a culpa não foi dele mas de quem o nomeou. Quando as pessoas se me queixavam, eu só dizia: -“Se o treinador do Porto puser o Vítor Baia a ponta de lança o culpado do seu fracasso é o treinador. Aqui é o mesmo”. Um dia queixei-me a um Bispo que, quando isso acontecera, era Vigário Geral da Diocese: “foi uma maldade que o D. António fez, não a mim, mas a milhares de pessoas que deram o seu melhor pela Comunidade e vêem o seu trabalho esbanjado. Sentem-se escorraçados de uma comunidade que sempre amaram como sua e ajudaram a construir”. Como que a justificar o Senhor D. António, ele contou o que acontecera. - Quando esse Padre era pároco em Sandim (?) teve um grave conflito com a Acção Católica e convenceu-se que o D. António era contra ele e a favor da Acção Católica. Entretanto, foi trabalhar para Angola. Quando vinha ao Porto, sempre ia ao Paço Episcopal falar com o D. Domingos de quem era conterrâneo e amigo, mas nunca foi cumprimentar o D. António o que muito o magoava. O regresso desse sacerdote à diocese coincidiu com o pedido de saída por parte do Pe. Zé Domingues. Então o D. Domingos pediu ao D. António que nomeasse o amigo para a Senhora do Calvário. O D. António terá dito aos seus mais próximos: “se não o nomeio, mais uma vez vão acusar-me de ser vingativo. Pode se que a mudança até seja benfazeja para a paróquia.” E, assim, foi com alguma relutância que o D. António acabou por o nomear. Fraquezas dos homens da Igreja!...

Os meus apoios vindos do exterior da paróquia Porque não posso nomear os muitos colaboradores que viviam na Paróquia, não resisto, no entanto, sem nomear e agradecer apoios que recebi do exterior.
O Seminário Maior do PortoVários seminaristas do Seminário Maior começaram a vir ajudar-me ao fim de semana. Éramos uma espécie de sucursal do Seminário desde o tempo em que era reitor o Dr. Albino e, depois, o Dr. Armindo. Lembro de modo especial o António Taipa (actual Bispo Auxiliar do Porto) que, em 1964/1965, vinha trabalhar comigo ao fim de semana e deu um curso de catequese a jovens e adultos. Quando foi ordenado Diácono a comunidade deslocou-se em peso à Sé Catedral. A primeira vez que, como diácono, deu a comunhão foi na escola do Cerco. Foi de tal ordem a convivência do Taipa com a nova comunidade que convidou vários jovens a participar na sua Missa Nova em Freamunde (recordo o Joaquim Teixeira) e quis que fosse eu o pregador da sua “Missa Nova”.
Também o António Marto (hoje Bispo de Leiria-Fátima) colaborou comigo ao fim de semana, quando, embora sendo de Vila Real, frequentava o Seminário do Porto. Lembro-me ainda do Guedes que também era de Vila Real e do Serafim Assunção, hoje responsável pelos “Companheiros de Emaús”. Os outros que colaboram comigo ao fim de semana que me desculpem, mas já não lembro os nomes.
Em 1965/66, o Martins de Almeida, hoje ilustre advogado, viveu comigo na Casa do Bloco 15 do Bairro do Cerco, enquanto fazia estágio profissional e colaborava no trabalho com os jovens.
Em 1967/68, vinham ensaiar o nosso coro dois seminaristas: o Pedroso, hoje pároco de Santo Ildefonso e o Gaspar que depois foi padre operário e já faleceu.
Em 68/69 (?), quando eu já vivia no Rua de S. Roque, viveram na referida casa do bloco 15, fazendo as refeições em minha casa, quatro seminaristas que estavam em estágio profissional e colaboravam comigo na paróquia: o Bento, o Azuil, o Castro, e o Coelho, os dois últimos são sacerdotes.
Na Páscoa de 1970, o Dr. Albino, reitor do Seminário Maior, pediu-me ajuda para quatro seminaristas de Vila Real que tinham tido problemas com o respectivo bispo mas que ele, como Reitor, queria ajudá-los a completarem o ano lectivo como alunos externos: o Domingos Martins, hoje vive em Paris, o José Augusto Mourão, hoje dominicano e professor da Universidade Nova de Lisboa, o José Manuel e haveria ainda, creio, um quarto que se chamaria José Maria. Como não queria ter problemas com o Bispo de Vila Real, pediu-me que a sua presença passasse despercebida: precisava apenas de uma casa para eles viverem até ao final do ano lectivo e de uma família a que pudessem recorrer para ver televisão. Cedi-lhes a casa 12 entrada 60 de bloco 12 do Bairro de S. Roque da Lameira, onde viveram até final de Junho, e pedi a colaboração da família do Senhor Costa e Silva que cumpriu tão bem a missão que ainda hoje mantêm relações de amizade com o Domingos.
Em 1969/70 (?), viveram na Casa do Bairro do Cerco quatro diáconos que colaboravam nas paróquias das Antas, Pedrouços, Azevedo e Sª do Calvário, respectivamente, João Carlos, Amorim, Lino Seabra, e Joaquim - só este comia em minha casa.(Espero não ter confundido os nomes nem as paróquias) . O Joaquim ordenou-se sacerdote e celebrou a sua missa nova na sua terra, S. Mamede de Infesta.
Em 1970 (?) veio fazer estágio diaconal o José Domingues que, depois de se ordenar presbítero, ficou a trabalhar na Paróquia até ir para o Ultramar como capelão Militar. E, finalmente, o Norberto que era estagiário quando deixei a paróquia. Quando resolvi pedir dispensa do exercício sacerdotal, esperei que o Pe José Domingues regressasse do Ultramar. Falei-lhe das minha intenção e do meu desejo de o ver ficar como meu substituto. Não se abandona de qualquer maneira aquilo que se ama… Depois de muito reflectir, acabou por aceitar e eu, quando fui apresentar o meu pedido de dispensa, disse ao Senhor D. António:- “Senhor Bispo, eu queria fazer-lhe um último pedido. O Pe. José Domingues é muito querido na paróquia por isso eu gostaria que fosse ele o meu substituto.” E o Senhor Bispo respondeu-me: “ Diga ao Pe. José Domingues que venha falar comigo”. Assim ele foi o meu substituto. Mais tarde, agradeci ao Senhor D. António esta sua amabilidade. (Uma ressalva: a sequência temporal dos estagiários que trabalharam comigo está certa, as datas é que podem conter alguma incorrecção.)
CapelãesJá que estou a falar de apoios que recebi, quero lembrar o Pe. João Miranda, que à época era o reitor do Seminário do Bom Pastor e hoje é bispo auxiliar do Porto, vários sacerdotes do seminário do Pe. Dehon e o Dr. Marcelino, então director espiritual do Seminário Maior, que foram os responsáveis pela celebração da missa do meio-dia na capela da Senhora da Paz.
Outros sacerdotesRelembro, ainda, o Dr. Justiniano e o Dr. Gabriel Costa Maia que, na casa do senhor Pereira, deram cursos, respectivamente de Bíblia e de Liturgia. Não poderei esquecer o Jesuíta, Dr. José Maria Cabral Ferreira e o Pe. António Costa Mota que, em vários anos seguidos, durante uma semana, dinamizaram conferências/debates como preparação para a Páscoa. Apenas uma referência para diversos sacerdotes franceses (de Brest, de Paris, de Anneci) que viviam em minha casa durante o mês de Julho, aproveitando para aprenderem a língua portuguesa dado trabalharem com os nosso imigrantes e alguns sacerdotes brasileiros que estudavam pastoral em Madrid e vinha colaborar comigo durante a Páscoa. (Só me lembro do nome do Pe. Celso que era de S. Paulo). Por aqui também passaram vários amigos sacerdotes que conheci no Colóquio Europeu de Paróquias, entre os quais, para além dos meus amigos galegos Paco, Torres Queiruga, Xao do Rego, António Vilasó, recordo o Guy, pároco de S. João de Montmarte em Paris, que ajudaram a experienciar a catolicidade da Igreja, abrindo a paróquia à diocese e ao Mundo.
Recordo, ainda, a colaboração do meu Primo, Pe. Oliveira, de que já falei, e que, sempre que estava de férias, colaborava com a paróquia como algo que também lhe pertencia. Quando já era Monsenhor e Diplomata da Santa Sé em Jerusalém, falou sobre as relações entre “Os palestinianos e os Judeus” num encontro para o qual convidei, de modo especial, os “paroquianos periféricos” com elevado grau de formação académica. Foi um sucesso. Ainda me lembro do Senhor José Rodrigues, cunhado da Madame Rotval, professora do Instituto Francês do Porto e da Faculdade de Letras, vir falar comigo, dizendo: “ eu sou dos “cristãos periféricos” mas conte comigo para tudo o que precisar.”
LeigosDos leigos que me ajudaram na fase inicial, para além dos muitos que colaboraram no lançamento da Obra dos Bairros no Cerco (Eng. Resende, Jorge Amado, Eng. José Costa, Moura de Gondomar etc), quero destacar o nome dos médicos Leopoldo Carvalhais e Dr. Luís Pereira Leite, infelizmente já falecido, este, que depois, Professor Catedrático da Faculdade de Medicina, foi o ginecologista da minha Ana e preparou/assistiu ao nascimento dos meus dois filhos. Eles eram os médicos a quem eu recorria sempre que tinha um doente pobre a precisar (ainda lembro o senhor António do bairro do Cerco), antes de começar a dispor da colaboração de médicos da paróquia., tais como o Dr. Torres dos Santos, Dr. Furtado Pinheiro, Dr. Ferronha, Dr. Maurício Pinto, entre outros.

Já que estou a falar sobre os muitos contributos de que a paróquia beneficiou, não gostaria de deixar de referir um caso em que eu senti o dedo de Deus. Falo do Freitas Soares
O Freitas Soares.Em Maio de 1968, como de costume, realizou-se a reunião anual do nosso Curso de Teologia. Foi na Aguda. Na grande maioria, éramos sacerdotes. O colega Freitas Soares, que terminara connosco o Curso em 1963 mas não se ordenara, estava a contar que vivia na Ramada Alta no Porto num andar que não satisfazia as suas necessidades. Para além dele, da esposa, de três filhas e da sogra, queria trazer para junto dele o seu pai que vivia sozinho em Tabuado. E o grande problema era que o pai não queria deixar na terra o seu tear e este não cabia no andar. Precisava de uma casa grande e, se possível, com quintal para o seu pai e a sogra se entreterem a tratar umas flores, a cultivar umas hortaliças e a cuidar de umas árvores. Eu interrompi-o e perguntei: Se seu te arranjar na minha paróquia uma casa grande onde possas ter tudo o que desejas, tu vais para lá viver e tomas-me conta do Grupo Coral.Com certeza, quem me dera, respondeu. – Dá-me o teu número de telefone e aguarda. Fiquei feliz com a esperança de passar a ter a colaboração de um amigo que, desde o exame de admissão ao seminário, em Trancoso, sempre fora meu colega de carteira.
Nessa mesma tarde, o senhor Ramiro, que era o cobrador da Paróquia, veio dar-me uma triste notícia: - Senhor Padre, vamos perder um dos melhores “ofertantes” que dava 50$00 por mês. – Quem, perguntei? – O Senhor Dr. Telmo Arez.Onde mora?Na rua Matias de Albuquerque, 179. - A casa é grande? Tem quintal?Tem. - Veja se sabe se é alugada e, se for, a quem pertence. No outro dia, o senhor Ramiro traz-me a boa notícia: - A casa pertence ao senhor Pereira.
Enchi-me de alegria e vi em todas estas coincidências um dedo de Deus. Logo nessa tarde, fui falar com o senhor Pereira que ainda não sabia que a casa ia ficar vaga. – É para si? A casa é mesmo muito boa, dá bem para o que o senhor padre precisa, diz o senhor Pereira.- A casa não é para mim mas é como se fosse e o senhor Pereira até vai ter sorte, disse a sorrir. - Porquê?É que se a alugar a quem eu quero, deixa de ter a maçada de, à 5ª feira, ir buscar e levar ao seminário da Sé os seminaristas porque o meu amigo passará a ensaiar o coro. (De facto, era o senhor Pereira o encarregado de todas as 5ºas feiras ir buscar ao seminário os ensaiadores (o Gaspar e o Pedrosa) do grupo coral que ensaiava na garagem da sua casa. E expliquei-lhe tudo o que se passava. E logo ali, assumiu o compromisso de alugar a casa ao Fretas Soares logo que ela ficasse disponível. E assim foi. Em fins de Junho já o meu amigo e a família estava na sua nova casa e o seu pai pôde vir viver com ele, trazendo consigo o seu velho tear, companheiro de toda a sua vida de tecelão.
Quando saí da paróquia o Freitas Soares ajudou a transmitir o espírito da paróquia: manteve-se como colaborador muito próximo dos párocos que se seguiram, em 1992 ordenou-se Diácono Permanente e permaneceu ao serviço da paróquia até 2003, apesar de, em 1998, ter mudado de residência indo morar para Ramalde. Quanto a paróquia lhe deve!... Foram mais de 35 anos de serviço à comunidade com o apoio/sacrifício/colaboração da esposa e dos seis filhos. Ainda hoje reconheço que o Freitas Soares foi uma das coisas boas que Deus ofereceu à paróquia. ( No passado sábado, quando falava com o Freitas Soares sobre este texto, ele disse: Se foi uma graça de Deus para a paróquia só Deus sabe. O que sei é que foi uma grande graça que Deus me concedeu. Não sou capaz de imaginar o que seria a minha vida sem essa casa.)
A Família Pereira . Não posso deixar passar esta oportunidade sem falar do Senhor Pereira e da D. Cármen. Eram um casal muito estimado na rua de S. Roque da Lameira. Quando comecei a celebrar na escola do Cerco, logo eles me apareceram oferecendo os seus préstimos. O seu exemplo extravasou para os seus vizinhos e assim a rua de S. Roque abriu-se para o padre pobre do Bairro do Cerco do Porto. Além da ajuda económica, puseram à minha disposição a garagem da sua casa na Rua de S. Roque da Lameira nº 506 que se localizava na zona central da paróquia, fazendo a junção entre os aglomerados populacionais de S. Roque e do Cerco. Aí ensaiavam em conjunto os coros da capela da Paz e do Calvário; aí era dada catequese às crianças que viviam nessa área. Mais, e ainda hoje estremeço perante tanta generosidade, como não tínhamos outro local que congregasse as pessoas de toda a zona paroquial e fosse tão acessível à noite, eles ofereceram a sua sala de jantar e sala de estar que, juntas, formavam um grande salão, para nele se realizar três cursos à noite: um sobre Bíblia dado pelo Dr. Justiniano; outro sobre Liturgia dado pelo Dr. Gabriel Costa Maia e outro sobre educação sexual dado por uma psicóloga. Quanto trabalho a arranjar as salas e a cuidar do soalho que, sendo de madeira envernizada, ficava todo manchado depois de cada utilização! Quanta dedicação!... Quanto a paróquia vos deve! A sua casa, para além de ser mais um local de trabalho pastoral, foi um pólo aglutinador da paróquia. Que Deus vos recompense e eu rezarei por vós nas minhas Eucaristias.

sexta-feira, novembro 02, 2007

O NASCER DE UMA PARÓQUIA - I

A motivação para este texto

No sábado, dia 23 de Junho, o Senhor D. Manuel Clemente, novo Bispo do Porto, veio conhecer a Paróquia de Nossa Senhora do Calvário. O pároco, Pe. Fernando Milheiro, convidou-me para estar presente porque quereria apresentar-me ao senhor Bispo como sacerdote fundador da paróquia. Foi com muito gosto que acedi ao convite. Depois de apresentado, participei na Eucaristia e, no momento da paz e no final, recebi abraços de muitos dos meus antigos paroquianos. Este facto está na origem deste texto

Um desejo, um projecto.
Como tudo o que se ama, a nova paróquia começou por ser pensada e querida. Assim, a Paróquia de Nossa Senhora do Calvário começou a nascer “ no peito”, no início do ano de 1964 quando o Senhor D. Florentino, com o Secretariado Diocesano de Acção Social, decidiu que a “Obra dos Bairros” (só em 1967 é que os seus estatutos foram aprovados pelo Governo com o nome de Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto) iniciasse o seu trabalho no Bairro do Cerco do Porto por ser, à época, o maior bairro da cidade e estar a ser ocupado nessa ocasião.
Num encontro, o Senhor Bispo falou-me do Secretariado Diocesano e do trabalho que iria desenvolver nos bairros camarários. Explicou-me que queria que eu, embora continuasse, por enquanto, coadjutor em Santo Ildefonso, começasse a colaborar com o Secretariado no trabalho que iria ser iniciado no bairro do Cerco do Porto. Explicou-me o seu projecto. A sua intenção era criar uma nova paróquia nessa zona onde se implantaram vários bairros com um extraordinário aumento da população. Por isso, eu começaria pela acção social no bairro e, pouco a pouco, deveria alargar a minha acção pastoral a toda uma zona que constituiria a futura paróquia.

O primeiro contacto
No domingo seguinte, resolvi ir conhecer o Bairro do Cerco do Porto”. Fui de eléctrico até S. Roque. Segui a rua do Cerco, passei em frente ao bairro da Polícia e, quando ia a passar junto do bloco 13, vi que numa casa havia um baile (era a época do twist). Então uma rapariga, veio à janela e, ao ver-me a passar, berra: “Ó Senhor Padre, venha dançar connosco!” Eu, sorrindo, agradeci, continuei o meu caminho e pensei: “ os meus colegas quando entram numa paróquia são recebidos com foguetes e banda de música, eu sou recebido com um convite para dançar… Para começar, não está mal”.

O início da actividade sócio-pastoral
O primeiro contacto com a população do bairro, fez-se no domingo de Páscoa de 1964 com o compasso. Como eu estava ocupado em Santo Ildefonso, foi o Pe. Teixeira Fernandes que, com autorização do Pároco de Campanhã, Pe. Tavares Martins, tirou o compasso no bairro do Cerco. Ao visitar as casas do bairro ia falando sobre o trabalho que iríamos iniciar e, como um novo sinal, agradecia mas não recebia o dinheiro que lhe iam oferecendo.
Logo na semana seguinte começaram os encontros na Escola Masculina do Bairro. Havia uma equipa de leigos dos Cursos de Cristandade que, na véspera, passava pelos blocos convidando os respectivos chefes de família para uma reunião que iria realizar-se às 21 horas. Como eram 32 os blocos do bairro e para cada encontro apenas eram convidados dois blocos, as reuniões prolongaram-se por mais de um mês. As reuniões eram orientadas, pela D. Julieta Cardoso, Dr. Pedro Cunha (do secretariado diocesano), por mim, e ainda pela assistente social, D. Maria Augusta Negreiros que secretariava.
Porque, desde o seu início, a Obra visava a promoção social das populações, não iria fazer nada que não resultasse da vontade expressa dos moradores e que não contasse com a sua colaboração. Nada seria imposto. Assim, no decorrer das reuniões, os participantes eram incentivados a expor as necessidades do bairro. Depois de inventariadas as carências, eram convidados a dar o seu nome para se constituírem comissões que, com a ajuda da Assistente Social, de um leigo de fora do bairro e de mim próprio, procurariam colmatar a necessidade referenciada. E foram muitas as carências referenciadas: falta de telefone no bairro, de um marco de correio, de um posto de enfermagem, de um mercado, de transportes, de limpeza, de um centro de convívio, de salas de estudo par as crianças, de dinheiro para pagar as rendas, de policiamento, e… de missa e catequese no bairro E assim, entre as várias comissões (“Sala de Estudo”, “ Centro de Convívio”, “Posto de Enfermagem”, “Correio e Telefone”, “Higiene e Limpeza”, “Segurança”, “Transportes”, “Mercado”, “ Auxílio Mútuo”) foi constituída também uma com um nome bem simples “Comissão de Missa e Catequese”. Enquanto a D. Augusta Negreiros, com o meu apoio, trabalhava com as outras comissões, eu encarreguei-me directamente desta comissão desde a sua formação. Não falarei da actividade no domínio social. Para um melhor conhecimento poder-se-á ler o livro “ OBRA DIOCESANA 40 ANOS DE PROMOÇÃO SOCIAL do Dr. Bernardino Chamusca.

O germinar da Paróquia
Podemos afirmar que a Comissão de Missa e Catequese foi o núcleo fundante daquela que, mais tarde, veio a ser a paróquia de Nª Senhora do Calvário.
O plano de trabalho que traçámos projectava que a primeira missa a celebrar no bairro seria na festa de 15 de Agosto, ao ar livre, celebrada, se possível, pelo Senhor D. Florentino, e com a presença do senhor Dr. Nuno Pinheiro Torres, Presidente da Câmara Municipal do Porto e um grande amigo e impulsionador da Obra dos Bairros; após essa data, haveria missa dominical no átrio da Escola Masculina, a catequese deveria iniciar-se em Outubro.
Formámos um coro de rapazes e homens do bairro para cantar nas missas. Eu encarreguei-me dos ensaios que decorriam numa sala da Escola Masculina.

A Escola Masculina do Bairro - a nossa primeira capela
Desde a primeira hora, contámos com a inestimável colaboração do Senhor Director Escolar do Distrito do Porto que fazia parte do Conselho Consultivo da Obra e a ajuda da directora da Escola Masculina que, com autorização daquele, nos entregou uma chave da escola, ficando nós autorizados a usá-la para tudo o que necessitássemos. Assim a escola masculina foi o nosso primeiro local de trabalho e a nossa primeira capela. Desses ensaios, recordo dois factos: uma noite, estávamos já a ensaiar, quando entrou um jovem com uma gorra na cabeça cheia de cimento e diz: eu sou trolha mas também quero fazer parte do coro ( era o Carlos Lima que, depois foi catequista, e ainda hoje é um amigo); numa outra noite, ao ensaiar, notei uma voz forte, segura, de quem já conhecia alguns dos cânticos, no fim, ao falar com ele soube que fora o senhor Armindo Santos que o trouxera com ela (era o Zé Guilherme, hoje meu compadre e grande amigo do coração). Começaram a aparecer rapazes do bairro da PSP e de Pego Negro (ainda me lembro do incómodo que me causou este nome: pego e, ainda por cima, negro… Mas enganei-me. Como fui bem recebido por esta comunidade ainda muito marcada pela ruralidade!... Boa gente.)

A Primeira Missa no Bairro
A comissão preparou tudo para a primeira missa (altar, altifalante, coro, leitores, acólitos…) que, conforme o planeado, foi celebrada pelo Senhor D. Florentino no largo em frente do bloco 19, no dia 15 de Agosto de 1964. E a minha rapaziada saiu-se bem na sua cantoria. Foi uma alegria. Fazendo-se eco da vontade das pessoas, o senhor Presidente da Câmara, na minha presença, pediu ao senhor Bispo que me libertasse de Santo Ildefonso e me nomeasse para o Cerco. Estou convencido que essa já era a intenção do Senhor Bispo, mas, simpaticamente, reservou-se: -“ vou ver o que posso fazer, Senhor Presidente”.
A partir dessa data, a missa começou a ser celebrada todos os domingos no átrio da referida Escola às 11 horas da manhã. A Comissão, com a ajuda do senhor Marta do Bonfim que deu a madeira, fez um estrado e um altar que montava e desmontava todos os domingos. As senhoras e raparigas (e eram tantas que me dispenso de indicar nomes. Não é por machismo que o não faço mas sim para não cometer injustiças) limpavam o átrio de modo a tudo ficar impecável para as aulas de segunda-feira. Nunca houve qualquer problema.
Como ainda estava em Santo Ildefonso, nem sempre me era possível celebrar. Quando não podia, recorria ao meu primo, Pe. Oliveira (Dr. Manuel Joaquim Alves de Oliveira) que, como estudava em Roma, estava a gozar férias em sua casa em S. Martinho de Campo-Valongo.
Com o início das celebrações dominicais, foi enorme a adesão das pessoas do Bairro da polícia bem como da população de Pego Negro, da Maceda e de toda a área envolvente, como as ruas do Cerco e de S. Roque. Ainda me lembro que nas primeiras missas que celebrei na escola usei uns paramentos velhos que o senhor bispo me dera (o cálice era o da minha “missa nova”). Então as pessoas da rua de S. Roque fizeram uma subscrição e ofereceram-me uns paramentos novos: foi uma festa. Os paramentos estiveram em exposição numa casa comercial na Rua de S. Roque da Lameira. Eu era o padre pobre, dos pobres…