O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, abril 29, 2020

História - Mestra da Vida


No dia em que, mais uma vez, foi renovado o «Estado de Emergência», li um estudo, de 1978, do historiador Ribeiro da Silva sobre os “temores do homem portuense no primeiro quartel do século XVII”. Demorei-me no capítulo “A Peste, Enorme Fonte de Medo”.

 Quarentena, reclusão, degredo. As palavras podem variar no tempo, mas todas convergem no isolamento, como necessidade absoluta no combate ao contágio. Foi o que aconteceu em 8 de abril de 1600, quando, em Gaia, morreu uma pessoa “atingida pela peste”. Logo “o corregedor e vereadores determinaram que o lugar de Gaia fosse «impedido», “até ao primeiro quarteirão da lua”. A observância do isolamento seria garantida pela colocação de guardas nos sítios mais aconselhados que impediam o acesso ou a saída da povoação a qualquer indivíduo fosse qual fosse o motivo apresentado”.

O mesmo aconteceu com a “Peste Pequena” que surgiu em Lisboa, em 1600, e rapidamente se espalhou porque “não haviam desinfectado as casas que tendo sido «impedidas» e, como tal evacuadas, eram, de novo, habitadas, sem prévia beneficiação”. A peste difundiu-se pelo Entre-Douro-e-Minho “veiculada por pessoas regressadas de Lisboa”.

Face a esta ameaça, “os homens da governança” do Porto logo montaram um esquema preventivo com duas frentes: “preparação do local tradicional do degredo dos empestados - Vale de Amores - para onde seria enviada toda a pessoa suspeita de haver contraído a peste” e o “destacamento de um barco que iria a Pedra Salgada (em Avintes) recolher as pessoas provenientes de locais «impedidos» como Galiza, Vila Nova de Cerveira, Vila Real e outras partes de tralos montes”. Pretendia-se, assim, controlar as entradas por via fluvial uma vez que. “as entradas por terra eram mais fáceis de controlar nos postigos e portas da muralha vigiadas por guardas”.

A peste que, em finais de julho, surgiu em Vila Nova, obrigou à “transferência dos doentes para o degredo de Valdamores, com a proibição absoluta da saída de quem quer que fosse do degredo” e ainda, “nenhum vestuário poderia daí ser retirado”. E também ao “isolamento completo do lugar de Vila Nova de forma a impedir qualquer tentativa de saída”.

Com a morte, nesse local a “jusante do Mosteiro da Serra”, de três pessoas, de 17 para 18 de agosto, a “defesa da cidade” foi reforçada com a “proibição da travessia da margem esquerda para a direita, sem qualquer excepção”. E também os moradores de Valbom foram proibidos de vir à cidade porque alguns jornaleiros tinham trabalhado em Vila Nova.

Além de se manter os guardas em apertada vigilância, dia e noite, pediu-se aos párocos ”que admoestassem os seus fregueses acerca do perigo que corriam ao receber pessoas provenientes dos lugares de Vila Nova”.

Em casos pontuais, a transgressão poderia levar a “dois anos de desterro para África”.

A situação era diferente, eu sei, mas vale a lição. (29/4/2020)

 

terça-feira, abril 21, 2020

EXERCÍCIO DA CIDADANIA


O poder autárquico é uma benesse do «25 de Abril» que sábado se comemora.

Um exemplo… A Câmara Municipal do Porto implementou o «Orçamento Colaborativo - 2020» para, «através de dinâmicas participativas», “incentivar a cooperação entre o Município, as Freguesias e a população da cidade na prossecução de ações que promovam a sustentabilidade, nas suas diversas vertentes: social, económica e ambiental; reforçar o trabalho em rede e as relações de proximidade com os grupos de cidadãos aos quais especialmente se dedicam”.

À freguesia, cujo processo acompanhei de perto, foi atribuída a verba de cento e cinquenta mil euros.

A Junta começou por escolher para o júri três cidadãos bem aceites na comunidade e convidou “as associações, coletividades e comunidade em geral, para, querendo, apresentarem projetos sustentáveis para a freguesia, no âmbito do ambiente, economia e coesão social”

Dentro do prazo estipulado, foram recebidos 16 projetos. Feita a avaliação, só um foi excluído num primeiro momento.

A fase seguinte iniciou-se com uma reunião geral de todos os interessados para a qual foram também convidados os eleitores recenseados na freguesia. Foram eleitos, então, dois cidadãos para completar o júri que iria avaliar e classificar todos os projetos.

De seguida, os concorrentes deram rosto e voz aos seus objetivos, revelando o dinamismo da sociedade civil na resolução dos problemas sentidos pela população local Designadamente: a constituição duma brigada de intervenção em higienização e salubridade habitacional em contexto de proximidade das pessoas idosas; a aquisição de material para estimulação cognitiva e motora que favoreça a integração de pessoas em solidão; a criação duma “quinta pedagógica” para sensibilizar as crianças para as questões ambientais e da natureza; a substituição da cobertura dum centro social e conserto do telhado dum agrupamento de Escutas; a instalação dum elevador para deficientes num grupo de atividades culturais; a criação dum espaço para os cuidadores do Centro de Reabilitação.

Na semana seguinte, os cinco elementos do júri analisaram cada um dos projetos em função dos critérios por si definidos e deram notícia pública da sua avaliação. Feita a seriação, foram contemplados os 12 projetos com maior pontuação.

Terminado o prazo de reclamações, o processo foi entregue à Junta que o encaminhou para a Câmara que se encarrega da sua execução.

Todo este trabalho foi um exercício de pura cidadania; uma espécie de democracia direta em que os cidadãos puderam expressar a sua vontade sem a mediação partidária.

As verbas atribuídas, nunca superiores a 15 000 euros, foram de grande proveito para instituições que lutam com graves dificuldades económicas, como alguém escreveu quando soube que a sua fora contemplada: “Não aguento de tanta felicidade. A estrelinha brilhou”. Era tempo de Natal.

(22/4/2020)

 

quarta-feira, abril 15, 2020

ENTRE AVÔ E NETO

 
“A fé não é um pódio: é uma estrada.” (T. Mendonça)

Meu neto Francisco frequenta o 4º ano da catequese. Há tempos, perguntou-me: – Avô, acreditas que nós continuamos a viver depois de morrer? – Acredito. E perguntei-lhe: - Onde foste esta semana? – Fomos ver o castelo onde viveu D. Afonso Henriques, respondeu. – Como sabes isso? – Foi a Professora que disse. – Então, tu sabes porque acreditas na tua professora que to disse. Acreditas em Jesus? – Acredito. – Então vais ler o que Ele, na cruz, disse ao «Bom Ladrão»:

Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso (Lc 23,43)”.

- Vês. Nesta frase tão pequenina, Jesus faz três afirmações: «Hoje» - Não é amanhã nem depois. É logo após a morte; «Estarás comigo» - Quando morremos, vamos para junto de Jesus; «No paraíso». Abrimos o dicionário e lemos: «Paraíso: lugar onde reina a felicidade, céu». Esclareci que a palavra «céu» tem dois sentidos diferentes. Tanto pode significar «paraíso» como «firmamento». A linguagem popular confunde-os.
Por isso, concluí: - Acredito que os amigos de Jesus, depois da morte, viverão com Ele num «estado de felicidade», como Ele afirmou solenemente: “Em verdade te digo…”
E reforcei com a promessa feita por Jesus na “Última Ceia» a preparar os discípulos para a Sua morte e ressurreição: “Vou preparar-vos um lugar. Depois de ir e vos preparar um lugar, voltarei e tomar-vos-ei comigo, para que, onde eu estou, também vós estejais (Jo 14, 2)

Depois, continuei:

-Lembras-te da palavra que te surpreendeu quando leste que “o homem é um animal bio-psico-social”? - Foi «psico». – Correto. Repara ali na «Ruça» - uma das nossas gatas que dormia no sofá. Ela precisa de dormir, de comer... É um ser biológico como nós. Mas, que te parece, antes de adormecer, terá pensado no que tem para fazer quando acordar?  - Não.  – Vês, a «Ruça» vive no presente. Dorme porque tem sono e não tem preocupações. O animal realiza-se plenamente em cada momento. Nós, não. Os animais são seres completos. Nós somos a mais bela criação de Deus. Somos uma sinfonia bela, mas inacabada, temos sempre um desejo a realizar. (O teólogo Urs von Balthasar disse: “A morte quebra a existência sem que esta se tenha completado.”)

Se somos diferentes na vida também o somos na morte. Se não houvesse mais nada para além da morte, o homem seria o mais infeliz dos animais. Ficaria sempre incompleto. A morte é, pois, natural para o homem como ser biológico, mas, como ser psicológico, é de tal maneira trágica que, mesmo em sonhos, nunca morremos, acordamos antes que tal aconteça.

 Creio num Deus a quem chamamos “Pai”. E, como qualquer pai, quer que nós sejamos felizes. Foi Ele quem nos criou para a Vida e não para a morte. Esta é a Esperança que me anima.

Depois, falamos do seu Tio Zé que faleceu no ano em que ele nasceu.

- Já compreendi. Obrigado, avô!

- Fico a aguardar novas perguntas…

(15/4/2020)

 

quarta-feira, abril 08, 2020

FAZ HOJE DEZANOVE ANOS

 


 

No dia de Fiéis Defuntos do ano passado, visitámos, no cemitério de Aguiño, na Galiza, o túmulo dos pais do amigo Andrés Queiruga. Ao fazê-lo, parei no monumento “Aos Mariñeiros Desaparecidos “ que ilustra este texto.

Ao ver os ramos de flores que o rodeavam, recordei o que me dissera o seu pároco: - “Aqui há muitos naufrágios e alguns corpos nunca mais aparecem porque ficam presos nas furnas submarinas que abundam nesta «Costa da Morte». Um dia, uma mulher, a chorar, disse-me: «Perdi o meu filho no mar e, agora, nem sequer tenho onde lhe pôr uma flor». Então, falei com um escultor que projetou este monumento, atapetado por godos marinhos, com a estátua dum homem sem cabeça e as costas em forma de cruz viradas ao mar que se vê ao fundo, onde as famílias dos afogados desaparecidos podem fazer o luto. O vulto da mulher, arrojada no chão e abraçada à estátua, traduz a dor de quantos aqui depositam suas flores”.


E o meu pensamento recordou a tragédia da Ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios que, no dia 4 de março de 2001, vitimou 69 pessoas, das quais 36 corpos nunca foram recuperados. Sabendo que alguns foram encontrados no norte da Galiza e que o mar deita fora tudo o que não é seu, pergunto-me se alguns não terão ficado presos nestas grutas galegas.

E estremeci ao pensar no que poderia ter acontecido a mim e aos meus. Eu conto.

Nesse dia fatídico, almoçámos num restaurante junto ao rio Douro para festejar o aniversário do nosso filho mais novo. Após a refeição, fomos dar um passeio por Castelo de Paiva e viemos lanchar a Entre-os-Rios. Ao passar sobre a Ponte Hintze Ribeiro, parei o carro e saímos para apreciar as águas límpidas do Tâmega que, lá no fundo, eram engolidas pelas águas barrentas e tumultuosas do Douro em dia de grande cheia. Seriam umas 17h30. A ponte veio a cair às 21h15. Quatro horas apenas… Muito pouco para uma ponte (1884 - 2001) que durou cento e dezassete anos ou seja um milhão, vinte e quatro mil, novecentas e vinte horas.

Não costumo angustiar-me a pensar no que, de mal, me poderia ter acontecido, no passado. Porque, como diz o Evangelho, ”basta a cada dia o seu próprio mal”. (Mt 6,34) Mas pensar, penso…

O que, para mim, não passou duma hipótese, foi, infelizmente, uma terrível realidade para aqueles «irmãos» a quem a morte truncou a vida de modo tão abrupto no fim de um dia de felicidade. Por eles, rezei junto daquele monumento arrepiante na sua brutal e trágica simbologia. E não esqueci os seus familiares que, ainda hoje, vivem o pesadelo de tão horrível catástrofe. Honra à memória dos que partiram e solidariedade aos que os choram… “A flor murcha. A lágrima evapora-se. A oração Deus a acolhe. “ (Santo Agostinho)
(4/3/2020)

CRIATIVIDADE ARTÍSTICA

 
“E vamos cavando de lugar em lugar a expansão/ Do arbusto que transborda” (Daniel Faria).

Tenho um amigo que é artista. De raízes durienses, vive nas terras da Maia onde, como «mestre» na Universidade Sénior, guia os «aprendizes» pelos trilhos da aguarela. Ultimamente, deixou-se levar pela paixão de esculpir madeira, aproveitando arbustos e ramos de árvores. Quando vê alguém a podá-los, observa-os e, se algum o cativa, pede-o ao seu proprietário. Aproveita o que não presta. E assim, num profundo respeito pela natureza, recicla a matéria e cria arte.

Há dias, ao vê-lo trabalhar, veio-me à mente o artigo que, então aluno do Seminário Maior, publiquei no Jornal Novidades (1959), com o título “Hilemorfismo e Mudanças Substanciais”. Aristóteles, o grande filósofo grego nascido em Estagira em 384 a. C., diz que tudo o que existe no espaço e no tempo é constituído por matéria e forma; e, simultaneamente, «ser em ato» porque tem a perfeição de ser o que é, e “ em potência” para um novo «ser em ato». Tudo depende da forma que vier a receber. E exemplificava com uma estátua: “Hermes está na madeira em potência…(Met)”. Ao dar forma à matéria, o artista transformou a potência em ato e assim nasceu a estátua. A matéria informe aparece como o mundo da possibilidade face à atividade criadora dos artistas.

Como me encanta o entusiasmo do meu amigo António ao explicar o processo criativo das suas obras. O ramo pode ser mais ou menos grosso, mais ou menos longo, mais ou menos rugoso mas não deixa de ser um ramo e, simultaneamente, abre para múltiplas imagens, depende da forma que vier a adquirir. Quando o encontra, sente naquele pedaço de madeira algo que o provoca, que o convida a tomá-lo na mão. Gera-se uma cumplicidade que está na base de todo o seu projeto.

Após um diálogo silencioso, surge a inspiração. De matriz cristã, a sua paixão maior são os «Cristos» - Jesus na madrugada pascal. Mas será o ramo que lhe indicará o caminho. À medida que vai trabalhando, a obra vai surgindo ao sabor dos ditames da madeira, sem obedecer a qualquer modelo preconcebido.
Esta cumplicidade surpreendente, aliada à imprevisibilidade do resultado, está na base da originalidade que o entusiasma e delicia quem tem o privilégio de apreciar as suas criações.

O “arbusto transborda”, o artista sublima-o e surge a obra de arte. A madeira parece esquecer a sua materialidade e, como escreveu E. Souriau, “começa a irradiar pouco a pouco um conteúdo implícito que se espalha e ocupa o espaço ambiente com alguma coisa que é talvez sonho, ilusão”.

O homem, ser do símbolo e do «para-além», vê o invisível e não se deixa soçobrar na tribulação como aquela que agora nos assola. O sentido estético eleva-o acima da amargura da imanência. A arte é uma janela aberta para a transcendência de Deus que pôs em nossos olhos a beleza da criação.
(8/4/2020)