O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, julho 22, 2022

QUANDO FALA, CONVERSA...

Era assim que meu pai qualificava quem, ao discursar, apresentava ideias que nos enriqueciam e provocavam reflexão. Lembrei-me desta expressão ao ler a longa entrevista que o cardeal Jean-Claude Hollerich deu ao Diário do Minho. Merece uma leitura integral (cf. 7Margens, 17/6/2022). Aqui, limitei-me a adequar as perguntas às falas que respiguei. P. – O Papa Francisco nomeou-o ‘Relator-Geral do Sínodo’. Qual a sua função? R. – “Eu estou lá para ouvir o santo povo de Deus. Até nas comissões que temos... (…) A minha missão é ouvir as pessoas.” P. – Considera importante esta fase diocesana do Sínodo? R. “Eu acho que é muito importante. É baseada no Concílio Vaticano II, e o Papa quer mesmo implementar esse Concílio, que diz muito sobre colegialidade – complementando o Concílio Vaticano I, que foi sobre o primado do Papa. (…) Agora temos que pensar que o primado do Santo Padre e a colegialidade dos bispos têm que ser exercidos dentro do quadro da sinodalidade.” P. – Qual a atitude da Igreja face à nova era civilizacional? R. –“ Como bispo, algumas vezes, caímos na tentação de estarmos apenas rodeados de conselheiros, que repetem sempre as mesmas coisas. E fica-se longe da realidade. (…) Seria um perigo considerar a nova civilização que está a nascer como uma inimiga do cristianismo. Deus está presente na nova era que está a chegar, e temos que O encontrar. Mas isso não é algo que um bispo possa fazer na sua pequena capela, é algo que o povo de Deus vive.” P. – Uma Igreja minoritária tornar-se-á irrelevante? R. - “Jesus nunca disse que devemos ser a maioria, influenciar a política e por aí adiante. Mas tem que ser uma minoria viva, cheia de vida e de esperança. Ainda temos uma Igreja de serviços, onde se recebem os sacramentos como um serviço, depois de fazer determinadas coisas pré-definidas. (…) Mas temos que mudar. Se eu participasse na maratona, eu teria que perder algum peso, e talvez a Igreja tenha que perder algum peso para estar novamente em forma.” P. Como fazer a ponte? R. – “Jesus não era o inimigo de ninguém, e nós por vezes consideramos que temos inimigos. Se eu ouvir o discurso dentro da Igreja, muitos grupos de políticos são considerados inimigos. Se temos os olhos da fé, temos que ver pessoas que foram criadas por Deus, que são amadas por Deus, que não partilham as nossas crenças. Mas são amadas por Deus na mesma. E a nossa atitude tem que expressar esse amor de Deus. (…) Um exercício a fazer durante este Sínodo é ter as pessoas nas margens a expressar as opiniões delas.” P. – Mas nós temos de ser ‘militantes’ da fé? R- “Não acho que estejamos cá para defender a fé da Igreja. Estamos cá para proclamar Cristo e o Evangelho. Essa é a nossa primeira tarefa. (…) Nós temos uma visão dinâmica do cristianismo, não uma visão estática. O povo de Deus está a caminhar pela vida e Cristo é o centro. ” P. - E a problemática da sexualidade na Igreja? R. – “Temos que ter uma atitude muito positiva em relação à sexualidade. Às vezes somos tão rigorosos que as pessoas têm que se esconder se não seguirem totalmente os ensinamentos da Igreja. Penso que devemos ser uma Igreja que as pessoas têm necessidades sexuais, que podem falar sobre isso, que não são condenadas, e que a Igreja está presente para as ajudar. (…) Nos seminários, temos que falar da sexualidade.” P. – A sinodalidade é um caminho para a inclusão? R. – “Sim, mas precisa de ser uma sinodalidade de fé. (…) Se formos mesmo comunidade, conseguimos sentir a dor das pessoas. Por exemplo, as pessoas que são divorciadas re-casadas não o fazem apenas porque sim, mas sofrem. Durante este processo sinodal, ouvi um testemunho sobre estas pessoas, cujo sofrimento foi aumentado pela Igreja e a sua atitude. A Igreja não as ajudou, piorou o problema, o que não é bom. Temos que considerar sempre que Deus ama estas pessoas. Espero mesmo que a misericórdia, como o Papa diz, prevaleça sempre sobre mecanismos de exclusão.” (20/7/2022)

quinta-feira, julho 14, 2022

O QUE NÓS SOMOS!...

Um mês é passado… No dia 4 de junho, enviei o email “Em Dor!” aos meus colegas do Coro Gregoriano do Porto: “Amigos, estava a entrar para um concerto na Casa da Música quando o Meneses me deu a notícia da morte repentina do nosso Álvaro, na igreja de Valongo. Deus lhe dê o eterno descanso. Connosco ficam as lágrimas...” Com surpresa minha, o concerto ‘Mar Sedutor’ começou com a “Sinfonia da Requiem” que Benjamin Britten dedicou à memória de seus pais. E eu recordei o nosso amigo que, ainda em 7 de maio, cantou connosco o “Requiem” gregoriano, numa cerimónia que lembrou as vítimas da Ucrânia e os amigos recém-falecidos. O primeiro andamento, ‘Lacrymosa’, abriu “com um ímpeto rítmico feroz” imposto pela percussão, seguido por um tema suave nos violoncelos. No início do segundo andamento, “Dies irae”, surgiu o mesmo entrechoque de sentimentos em que ‘a entrada das flautas em pianíssimo contrasta pela grande vivacidade e dinamismo, pelo recorte rítmico e pela rudeza de contrastes tímbricos’. Os ‘últimos compassos’ do terceiro andamento, “Requiem aeternam”, ‘chegaram com um profundo e contido acorde final que nos deixa o aconchego de uma resignação íntima e sincera ao qual só o silêncio tem como responder’. Este paradoxo de sentimentos, que a música suscita e a ‘folha de sala’ bem explicita, correspondia perfeitamente ao meu estado de alma que sofreu um choque violento com a notícia da morte abrupta do amigo e, pouco a pouco, ia entrando num progressivo apaziguamento de sentimentos afeiçoados pela memória e pela esperança. Seguiu-se a composição “Still, para violino e orquestra sinfónica”, de Rebecca Saunders, com a solista Carolin Widmann. E foi no decorrer da atuação desta violinista, de prestígio mundial, que me surgiu o título para este artigo. Enquanto tocava, um dos seus cabelos louros desprendeu-se e foi embaraçar-se no arco do violino, dificultando o seu esmero. E eu recordei o desabafo de minha mãe face à morte repentina de um vizinho: “É o que nós somos!...” Um cabelo que se desprende (cf Lc, 12,7) ou “uma neblina que aparece e logo se dissipa” (Tg, 4,14). Mas homem será só isto? No final da última composição, “La Mer” de Claude Debussy, a fúria do vento e do mar acaba em apoteose. Assim a vida, pensei eu ao ler, no facebook, a mensagem da Associação Voluntariado Hospital S. João: “Lamentamos informar que o nosso Coordenador-Geral, Álvaro Ribeiro, faleceu esta tarde”. E ao ver as centenas de ‘gosto’ e, entre muitos, o comentário de um dos ‘voluntários’: “Homem Bom, Amigo, Sempre atento ao Próximo”. Uma pessoa assim não passa como o vento. A sua memória perdurará e encontrará em Deus o acolhimento reservado aos que se dedicaram aos outros. (cf. Mt 5,1-12). Foi com este pensamento que, na manhã seguinte, participei nas “Festas Finais Catequese” na paróquia de S. Nicolau, Porto, onde a nossa Clarinha celebrou a “Festa do Pai Nosso”. E foi de olhos humedecidos e com as duas netas mais novas agarradas às minhas pernas que, no final, cantámos: “Vem daí, vem daí. É Deus que te chama”. Nas exéquias, o Coro Gregoriano emocionou-se ao ver sobre o caixão a sua veste coral. E foi com a voz embaciada de saudade que se despediu do companheiro de alongados caminhos, cantando “In Paradisum“. A Esperança é lenitivo. Mas o ‘para sempre…’ e o ‘nunca mais…’ custam muito… É isto que nós somos. Um misto de memória e esperança, de alegria e sofrimento. Somos uma síntese de finito e infinito; de temporal e eterno; de humano e divino. Assim o creio. (6/7/2022)

QUÃO INSONDÁVEIS SÃO OS CAMINHOS DE DEUS...

Quando fui à ‘Casa Sacerdotal’ (cf. VP, 21/6), o P. Soares Jorge ofereceu-me o livro “Súmula Biográfica do Padre Américo” que evoco no 66º aniversário da morte (16/7/1956) desta “figura cimeira da Igreja em Portugal no século XX”. Ao lê-lo, parei na página 10: ”Com 15 anos, foi para uma loja de ferragens, a vender ferros, na rua Mouzinho da Silveira, perto do seminário da Sé, no Porto”. A primeira notícia que tive desta vinda do jovem Américo para o Porto, apenas referia “uma loja de ferragens”. Mais tarde, soube que essa loja se situava na Rua de Mouzinho da Silveira. Só há bem pouco tempo é que vi referido o número 112. Numa rua longa, que vai da estação de S. Bento quase até à Ribeira, onde ficaria esta porta?- interroguei-me. Curiosos, fomos à sua procura. A partir da Praça Almeida Garrett, descemos a rua em direção à Praça do Infante. Até que nos deparámos com o número procurado. Surpresa e emoção. Estávamos no local onde, todas as manhãs, íamos buscar os netos para levar à escola e ao jardim infantil. A loja em que o P. Américo trabalhou fica no rés-do-chão do edifício onde moram. Mais um encontro com o Padre Américo…que morreu, vítima dum desastre na minha terra. Ainda não tinha essa referência quando escrevi para o livro comemorativo dos ‘50 Anos, em Comunidade a Evangelizar e Servir’ do P. Jardim, como pároco de S. Nicolau: “Em 1960, comecei a calcorrear, como jovem vicentino, as ruas que escorrem para o rio e a entrar nos tugúrios onde penavam doentes e pobres se apinhavam. A memória do «Pai Américo», falecido quatro anos antes, permanecia viva nestas ruas do burgo medieval que ele bem cedo começou a conhecer. Foi em 1902, quando, quase-menino, veio “vender ferros”, como dizia sua mãe, para uma casa da rua de Mouzinho da Silveira.” No entretanto… Já a conhecia quando, na apresentação desse livro (25/9/2021), propus, a pedido dos organizadores, ”pequenos textos evocativos de figuras importantes da Igreja do Porto que marcaram a vida do padre Jardim Moreira, como o bispo D. António Ferreira Gomes e o padre Américo Aguiar, fundador da Obra da Rua”(VP, 28/9/2022): “Todos nós já ouvimos falar do Venerável Padre Américo como o ‘Apóstolo do Barredo’. O que talvez nem todos saibam é que o jovem Américo, com apenas 15 anos, veio trabalhar numa loja de ferragens que, então, ocupava os números 110 e 112 da rua de Mouzinho da Silveira que pertence a esta paróquia de São Nicolau. Frequentava a igreja de São Lourenço (Grilos) onde se ia confessar e ajudar à Missa. Foi crismado na Sé pelo também Venerável, D. António Barroso. Foi nesta época que conheceu o então Vigário da Diocese, Dr. Manuel Luís Coelho da Silva. E este encontro foi providencial. Sem ele, talvez nunca houvesse o Padre Américo. E porquê? Quando mais tarde, já com cerca de 38 anos, quis entrar no seminário para ‘estudar para padre’, veio falar com D. António Barbosa Leão, bispo do Porto nessa altura, que não o aceitou porque, disse, tinha tido muitas desilusões com as vocações tardias. E quem acabou por o admitir e ordenar presbítero (28/7/1929), já com 42 anos? Precisamente D. Manuel Luís Coelho da Silva que, entretanto, fora sagrado bispo de Coimbra. Foi ele quem, como escreveu o P. Américo, lhe deu as Ordens Sacras, o fez sacerdote: o maior de todos os títulos, para a maior de todas as gratidões”. Talvez… Talvez… Que sabemos nós? “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor” (Is 55,8). (13/7/2022)