O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, outubro 21, 2008

ECOS DE UMA PALESTRA SOBRE O PATRIMÓNIO DO PORTO

No passado dia 17, a Associação Católica do Porto prestou mais um bom serviço ao Porto e à Cultura. No salão nobre, decorreu uma Palestra/Debate sobe o “Património da Cidade do Porto”
Depois de a Tuna Feminina da E.S. de Enfermagem do Hospital de Santa Maria ter dado um toque de juventude a uma conferência que iria debruçar-se sobre a memória, ouvimos a mensagem em vídeo do nosso Bispo, D. Manuel Clemente, que falou do Porto, do seu valor patrimonial e da alma da sua gente, caracterizando-o como uma cidade intimista.

O progresso do Porto fez-se à custa da destruição do património. Orlando Massena,Arquitecto, partindo da análise do contributo que a construção da "Ponte D. Luís" deu ao progresso do Porto, mostrou como a sua ligação à “Baixa do Porto”, com a abertura da Avenida da Ponte, destruiu uma parte muito considerável do Porto medieval situada junto à “Muralha Suévica”; como a construção da estação de S. Bento se fez à custa da destruição do Convento da Ave-Maria e de parte da “Muralha Fernandina” que lhe estava adjacente; como a construção do pavilhão dos Desportos (hoje “Pavilhão Rosa Mota”) obrigou à destruição do palácio de Cristal. Com um certo respirar de alívio, afirmou que o Porto esteve (ou ainda está? - pergunto eu) para ver destruído o seu “Mercado do Bolhão”- património emblemático da cidade - para dar lugar a um moderno centro comercial. E terminou com um desabafo: como seria bom se nós, hoje, tivéssemos a Estação de S. Bento mas também o Mosteiro da Ave-Maria e a Muralha Fernandina!...

O Porto não tem património industrial.

Maciel dos Santos, da Universidade do Porto, debruçou-se, especificamente, sobre o património industrial, manifestando a sua estranheza pelo o facto de o Porto ter sido uma cidade industrial muito importante nos séculos XIX/XX, ao ponto de ser considerada a Manchester Portuguesa, e hoje muito pouco possuir desse seu património. Para a memória se transformar em monumento precisa de se apoiar num grupo social com poder. O que faltou à memória industrial do Porto foi um poder institucional que a tornasse património: o poder político nunca se preocupou, a classe industrial interessou-se pelo aproveitamento económico dos espaços das suas fábricas e a classe trabalhadora do Porto, apesar do seu número, nunca foi um poder com força para criar esse património, contrariamente ao que aconteceu noutras cidades europeias de que citou, particularmente, Barcelona.
E interrogou-se: o que resta dos grandes aglomerados industriais do Porto tais como Massarelos, Praça da Galiza, Antas, Campo 24 de Agosto? - Nada.

Defender o património não significa defender o imobilismo.

Manuel Cordeiro, da Universidade do Minho, retomou o tema do património industrial para afirmar que preservar o património não significa manter os edifícios tais como eram as unidades fabris. O importante é aproveitá-los (e alguns são de incontestável valor arquitectónico) para outras finalidades economicamente viáveis mas mantendo os seus elementos arquitectónicos estruturais e a memória do seu passado. E apontou como exemplo o que foi feito nas antigas instalações da fábrica de Massarelos. Lamentou que o mesmo não tenha acontecido a outras fábricas que fazem parte da memória do Porto de que destacou, entre outras, a Fábrica de Salgueiros. Chamou especial atenção para o crime patrimonial que, neste momento, se está a cometer à vista de toda a gente na cidade do Porto, sem se ouvir qualquer protesto: o abandono da Ponte de D. Maria. Afirmou que esta ponte, construída pelo Engenheiro Gustavo Eiffel, o mesmo que construiu a Torre Eiffel em Paris, é o nosso monumento mais conhecido internacionalmente, o mais classificado e citado pelas revistas da especialidade como um monumento único ou quase único no Mundo. E lamentou que ela não tivesse sido considerada “Património da Humanidade” por ficar um pouco afastada do centro histórico do Porto. Foi pena, foi muita pena!...
Respondendo a uma questão colocada por um participante, falou do edifício da Fábrica “Moagem Harmonia”, construído no século XIX, no jardim principal do Palácio do Freixo. Narrou os seus debates com o Arquitecto Fernando Távora que, para recuperar integralmente essa obra-prima de Nazoni, defendia a mudança da “Moagem Harmonia” para outro local. A opinião por si defendida acabou por prevalecer e a fábrica manteve-se. A sua utilização para aposentos de uma pousada de luxo, conjuntamente com o Palácio do Freixo, não o contrariaria desde que ela mantivesse os seus elementos arquitectónicos estruturais e a memória do seu passado. Como isso não está acontecer, considerou tratar-se de mais um atentado com o nosso património.
Um assistente ainda falou da “aberração que foi a destruição da nossa belíssima Avenida dos Aliados” o que me fez lembrar o que, nessa avenida, já lá vão uns vinte anos, me dizia um velho amigo, professor na Universidade de Santiago de Compostela: “ não conheço em toda a Espanha uma avenida tão bonita como esta”

Uma dúvida, duas perguntas e um apelo
Quando me lembro do grito de revolta que se levantou no Porto por causa da transformação do Coliseu num local de culto de uma instituição religiosa (e ainda bem que surgiu…) e o comparo com a passividade que se verifica perante o abandono da Ponte D. Maria e da fraca adesão da população do Porto e das personalidades mais representativas da consciência cívica da cidade às acções de protesto dos comerciantes do “Mercado do Bolhão”, uma dúvida me surge. O que terá estado na origem do grande movimento popular em defesa do Coliseu do Porto? Um despertar violento da consciência cívica das gentes do Porto que se manteve adormecida quando se destruiu o “Palácio de Cristal” que, à época, já era único do Mundo, uma vez que o de Londres já tinha sido destruído? Ou terá sido um afloramento serôdio do conflito que os cidadãos do Porto sempre travaram com o poder religioso, de que é expressão maior a casa-torre, com 22 metros de altura, que, no século XV, o poder municipal construiu (e foi recentemente reconstruída) mesmo à ilharga da Sé Catedral?
E, como perguntar não ofende, duas perguntas me ficam. O que teria acontecido se, em vez de um lugar de culto, tivesse nascido o projecto de um centro comercial para ocupar o Coliseu? O que teria sucedido se, em vez do projecto dum centro comercial, o Bolhão fosse comprado por uma qualquer instituição para nele instalar um templo religioso?
Termino com um apelo. Senhores Autarcas do Porto e de Gaia, não deixem cair a “Ponte D. Maria”. Enquanto é tempo, encontrem uma utilização prática. Ponham-na ao serviço da Comunidade.Lembrem-se que a "Torre Eiffel" em Paris, recebe, anualmente, cerca de sete milhões de visitantes!... Não seria possível criar um circuito turístico que ligasse a Ribeira à Ponte D. Maria, utilizando o velho caminho de ferro, há muito abandonado, que liga a Estação de Campanhã à Alfândega? Salvemos a nossa “Ponte Eiffel”.

CONFLITO DE GERAÇÕES?

“Nossa juventude é mal-educada.” Coloquei entre aspas este subtítulo, de carácter aparentemente provocatório, porque corresponde a uma expressão que ouvi a uma senhora no Metro do Porto e que já tinha lido num texto que dizia : “ Nossa juventude adora o luxo, é mal-educada, caçoa da autoridade e não tem o menor respeito pelos mais velhos. Nossos filhos hoje são verdadeiros tiranos. Eles não se levantam quando uma pessoa idosa entra, respondem a seus pais e são simplesmente maus”.
Há, no entanto, uma pequena/grande diferença entre estas duas expressões: o desabafo que ouvi no Metro, aconteceu na semana passada, enquanto o texto é de Sócrates, o grande filósofo, que viveu na Grécia entre 470 e 399 a.C.. O que significa uma separação temporal de cerca de dois mil e quinhentos anos.

“ A juventude de hoje não é como a juventude do nosso tempo.” Esta expressão ouvi-a a um grupo de pessoas que, num café do Porto, comentava uma notícia do jornal sobre um gang juvenil e li-a, com pequenas variantes, num texto: “Essa juventude está estragada até ao fundo do coração. Os jovens são malfeitores e preguiçosos. Eles jamais serão como a juventude de antigamente. A juventude de hoje não será capaz de manter a nossa cultura”. Este texto foi descoberto num vaso de argila nas ruínas de Babilónia (no actual Iraque) e terá mais de quatro mil anos de existência.

Provocação? Não, apenas um convite à reflexão. Sabemos que cada cultura tem uma identidade própria que lhe advém da forma como organiza os seus múltiplos traços culturais. Esta configuração específica reflecte-se nos seus padrões culturais de comportamento colectivo pelo qual são aferidos os comportamentos individuais de cada um dos membros dessa comunidade. Apesar destas especificidades, há traços transversais que penetram todas as culturas, em todos os tempos e lugares.
Assim, em todas as culturas há mandamentos e tabus. Podem ser diversas e até contraditórias, mas não há cultura sem obrigações e proibições Também não há cultura sem valores que nos dizem o que é bem e o que é mal, o que é belo e o que é feio. É grande a diversidade desses valores, mas eles existem em todas as culturas. A inovação é outro dos traços universais de cultura. Em todas as culturas há forças de inovação que dão origem às transformações culturais que se vão operando ao longo do tempo, evitando a sua estagnação. E, se o contacto com culturas estranhas é factor externo de inovação, sempre a juventude funcionou como um factor interno de inovação, essencial à evolução cultural. Em contraponto com as forças evolutivas, sempre existem as forças que procuram conservar a identidade cultural, transmitindo-a às gerações futuras. Acentuam o valor da tradição para assegurarem a sua perenidade. Se em todas as culturas há instituições sociais que funcionam como as guardiãs da moral e dos bons costumes e exerce uma acção modeladora junto dos mais jovens, também os mais velhos procuram preservar os seus padrões culturais. O que é educar senão socializar? O que é socializar senão integrar, moldar um indivíduo à imagem dos modelos culturais de uma sociedade? Neste sentido, poderemos afirmar que o conflito entre gerações sempre existiu e funcionou como um factor de equilíbrio, evitando a estagnação e a desintegração cultural: os jovens, como forças de inovação; os velhos procurando manter as tradições. Hoje, porém, a situação é bem mais complexa. Antigamente, havia apenas duas idades: os novos e os velhos. Há tempos atrás, começou-se a falar da 3ª idade e, agora, já se fala da 4ª idade. A pergunta fica: conflito de gerações? Mas que gerações?
Assim como cada pessoa tem uma identidade própria que resulta da integração coerente e funcional de todos os seus traços e, por isso, é una e única, também cada cultura procura integrar as diversas forças que se confrontam no seu interior de modo a criar uma identidade que a faz una e única. Porém, assim como há personalidades desestruturadas porque não construíram aquilo a que um filósofo chamou a “estátua interior” que permanece como ponto de referência nas diversas situações da vida pessoal, também as culturas correm o risco de perderem a sua unidade identificativa. Neste nosso tempo em que o mundo se tornou numa “aldeia global”, o contacto permanente entre as diversas culturas pode criar um “hibridismo cultural” com a perda da identidade de cada cultura. Quando a adaptação cultural exige um ritmo muito acelerado, como agora acontece, cada cultura não tem tempo para integrar, na sua configuração específica, os elementos estranhos, sofrendo uma desorganização onde o elemento estranho funciona como um implante postiço, como um corpo estranho à sua identidade. Mais ainda, como há culturas que tem mais meios ao seu serviço, maior poder de influência, gera-se um fenómeno de colonização cultural que acaba por uniformizar os padrões culturais fazendo com que todos sigam as modas ditadas por esses novos colonizadores. E se a colonização política não é boa, a colonização cultural não é melhor. Esse é o perigo do nosso tempo. Talvez a juventude esteja mais sujeita a essas modas, mas nenhum de nós pode afirmar que lhe é totalmente imune. Tardam a aparecer movimentos libertadores da colonização cultural.
Aos mais novos compete-lhes, como em todos os tempos, serem factores de evolução cultural, exercitando a sua capacidade crítica frente a todos os comportamentos que lhe são impostos. Nós, os mais velhos, mais do que acusarmos os jovens, pois isso pode significar uma fuga ao nosso próprio sentimento de culpa, mais do que recusarmos tudo o que nos vem de fora, devemos continuar a exercer a nossa função de educadores, transmitindo as nossas tradições e procurando integrar no nosso património cultural tudo o que de bom nos trazem os nossos jovens e nos é fornecido pelo contacto com outros povos e gentes. Temos de preservar o nosso património cultural que não se esgota nos nossos monumentos, mas se reflecte no nosso modo de ser, estar e agir e em muitos outros componentes entre os quais devemos destacar a nossa língua que “ sabe a mar”, como dizia Vergílio Ferreira, afirmando, como Pessoa, “ Minha pátria é a língua portuguesa”.