O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, abril 17, 2019

OBRIGADO, SENHOR!

 
Há dias, numa visita ao “Parque Oriental do Porto”, reparei num colega de infância que não via há muito tempo. Vinha acabrunhado. Perguntei-lhe o que se passava. Respondeu-me: - “Perdi a minha maior riqueza. Minha mulher morreu há três anos”. Enquanto caminhávamos, falou-me da sua vida de casal, dos projetos que realizaram, das dificuldades que foram vencendo, das horas amargas por que passaram, dos confrontos, das cumplicidades, do companheirismo. - “Foram muitos anos de partilha e de solidariedade.” Quando, ao chegar ao carro, lhe apresentei minha esposa, disse-me: - “Aqui está a tua maior riqueza! Cuida bem dela! A minha já não a tenho. Não compreendo como há casais que não se entendem …”

Este desabafo doloroso levou-me a reler «A Alegria do Amor» . Nela, o Papa Francisco diz que a primeira das treze exigências do “amor quotidiano” é a paciência. “O problema surge quando exigimos que as pessoas sejam perfeitas, ou quando nos colocamos no centro esperando que se cumpra unicamente a nossa vontade. Então tudo nos impacienta, tudo nos leva a reagir com agressividade. Se não cultivarmos a paciência, sempre acharemos desculpas para responder com ira, acabando por nos tornarmos pessoas que não sabem conviver, antissociais incapazes de dominar os impulsos, e a família tornar-se-á um campo de batalha. Esta paciência reforça-se quando reconheço que o outro, assim como é, também tem o direito de viver comigo nesta terra. O amor possui sempre um sentido de profunda compaixão, que leva a aceitar o outro mesmo quando agir de modo diferente daquilo que eu desejaria (Nº 91). Sábias palavras! Paciência que tanto falta e que tanta falta faz…

Em contraponto, nesse mesmo dia, num jantar de aniversário, o festejado vinha com cara de paraíso. Acabava de lhe nascer um neto. Disse ao filho: - “Vós destes-me a melhor prenda”. Os netos são os rebuçados com que Deus nos adoça a vida numa idade em que temos menos preocupações e mais tempo para os saborear. São resposta finita à nossa fome de infinitude..

 Mais uma vez fui ler a Exortação Apostólica. “Muitas vezes são os avós que asseguram a transmissão dos grandes valores aos seus netos. As suas palavras, as suas carícias ou a simples presença ajudam as crianças a reconhecer que a história não começa com elas, que são herdeiros de um longo caminho e que é necessário respeitar o fundamento que as precede. Quem quebra os laços com a história terá dificuldade em tecer relações estáveis e reconhecer que não é dono da realidade.Com efeito, a atenção aos idosos distingue uma civilização” (Nº 192).

Dou-Te graças, Senhor, pela vida que em nós renasce. Pelas sementes que germinam em nossos caminhos. Pelos amigos que nos expandem e vivificam.

Que nesta Páscoa possamos dizer como Drummond de Andrade: “E nosso amor, que brotou/ Do tempo, não tem idade/ Pois só quem ama/ Escutou o apelo da eternidade.”.
(17/4/2019)

 

SOLITÁRIOS EM COMUNHÃO (II)



À entrada da “Cartuxa de Miraflores”, o irmão porteiro, em silêncio e com um sorriso, oferece uma brochura que diz: “Como não nos é possível acompanhar-te pessoalmente, preparámos este folheto em que assinalamos o mais interessante da nossa igreja. Fundada em 1442, por D. João II de Castela e Leão, esta Cartuxa é, na realidade, obra quase exclusiva de sua filha, a rainha Isabel, a Católica. De estilo gótico, dos finais do século XV.”

Foi, pois, com emoção que transpus o limiar daquele espaço onde os Cartuxos se encontram em oração. De uma só nave, divide-se em três espaços distintos: para os fiéis, coro dos Irmãos; coro dos Padres e Presbitério.

Detenho-me no retábulo do Presbitério. “É como um grandioso cenário onde se desdobra, de maneira visível, o mistério da Redenção que se atualiza de forma invisível no altar, quando se celebra a Missa”. Para além do valor artístico, é notável pelo seu programa catequético.

No corpo superior, destaca-se uma grande “Coroa de Anjos”, em forma de Hóstia, em cujo centro está Cristo Crucificado. A cruz é sustentada por Deus-Pai e pelo Espírito Santo sob a forma de um jovem. Sobre a Cruz, um pelicano. Aos pés da Cruz, a Virgem Maria e São João. Nos ângulos da Cruz, em círculos mas dentro da grande roda formada pelos Anjos, estão representadas quatro cenas da paixão.

O suporte da “ Coroa de Anjos” são as figuras de S. Pedro e S. Paulo, as colunas da Igreja. Sobre eles, os evangelistas S. João e S. Mateus e, debaixo, São Marcos e S. Lucas. Nos quatro espaços triangulares estão os quatro doutores da Igreja Ocidental: S. Gregório, Santo Ambrósio, S. Jerónimo e Santo Agostinho.

A parte inferior do retábulo tem como centro o “Sacrário” que contém a presença viva de Cristo. Sobre o Sacrário, um nicho alberga seis altos-relevos, fixados num torno giratório, correspondentes às grandes festas litúrgicas: Nascimento de Jesus, Batismo, Ressurreição, Ascensão, Pentecostes e Assunção.

De cada lado do Sacrário, estão os santos patronos dos cartuxos: S. João Batista e Santa Maria Madalena. Ao mesmo nível, nas laterais, veem-se Santa Catarina de Alexandria e Santiago. Entre estas imagens, mas em plano superior, surge a Anunciação e a Adoração dos Magos. Debaixo destes, dois altos -relevos representam a Última Ceia e a Descida da Cruz.

Nos extremos, do lado esquerdo, de joelhos, D. João II, fundador da Cartuxa, “conduzido” por Santiago; do lado direito, sua esposa, Isabel de Portugal, protegida por Santa Isabel com seu filho S. João Batista. Sobre os monarcas estão os escudos respetivos de Castela e de Portugal. Sem chauvinismos, soube-me bem ver o escudo português…

A visita completa-se com o magnífico Panteão Real em jaspe de Guadalajara, mandado construir pela rainha Isabel para seus pais que nele repousam.

Só se ama o que se conhece…

(10/4/2019)

quarta-feira, abril 03, 2019

SOLITÁRIOS EM COMUNHÃO - I

 
Havia uma Ordem Religiosa, mais que milenar, de que eu tinha apenas umas ideias confusas. Para me esclarecer, visitei a “Cartuxa de Miraflores” em Burgos. A visita circunscreveu-se à igreja. As dependências restantes estão habitadas por 22 monges: Padres e Irmãos. Porém, um vídeo que mostra o seu quotidiano e um livro completaram-me a informação.

O livro “Los Cartujos – Por um Cartujo” começa por dizer: “Sobre nós, os cartuxos, existem as ideias mais estranhas e disparatadas”. E esclarece:

“O Cartuxo é uma pessoa normal, um cristão que levou Deus a sério. Recebeu d’Ele uma vocação única: a de buscar Deus como o único e definitivo na sua vida”. Comentando o exemplo de S. Bruno, fundador da Ordem, em 1048, afirma: “O traço caraterístico da Cartuxa é a equilibrada mistura de vida solitária e de vida comunitária. Somos solitários reunidos como irmãos”. Para depois, acrescentar: “A vida de solidão na cela ocupa a maior parte do tempo. O aspeto comunitário torna-se visível em momentos privilegiados, sobretudo quando nos reunimos para celebrar juntos a liturgia e, igualmente, por ocasião de outros encontros. Somos uma Comunidade de Solitários”.

Algumas perguntas e resposta.

- Como passam o dia? - Os Padres levam uma vida essencialmente solitária. Nos dias ordinários, não saem da cela mais que para ir à igreja três vezes por dia. Comem em solidão, recebendo a comida através de um postigo. Ao domingo e no dia do passeio pelas redondezas, dedicam uma boa parte do tempo à vida em comunidade.


- Qual seu horário diário? - Recolhe-se para descansar, às sete e meia da tarde. Às onze e meia da noite, levanta-se para o “Ofício de Matinas” que se prolonga até às duas e meia ou três horas da manhã. Volta a deitar-se para, às seis e meia, se levantar de novo.”


- Como é a cela? - Não é exígua como poderá pensar-se. Ocupa dois pisos. No primeiro, além dum pequeno horto exterior, tem uma galeria para o trabalho manual; no superior, dispõe de oratório, estúdio, alcova e banho. Aí passa 20 das 24 horas do dia, por isso tem o necessário para levar uma vida saudável e equilibrada.


- O que faz na cela?

. Estuda. A teologia, a espiritualidade e a Sagrada Escritura alimentam-lhe a mente. O seu estudo não visa adquirir conhecimentos especulativos ou tirar diplomas mas uma instrução sólida que o fortaleça na contemplação de Deus.

. Trabalha. Cuida da cela e da horta que lhe pertence. Dedica-se a trabalhos manuais como encadernação, escultura, pintura… Sem nunca esquecer a oração. O trabalho favorece o equilíbrio humano.

. Reza. Tudo o que faz ordena-se à contemplação de Deus. Toda a sua vida se transforma numa oração contínua.

Os Irmãos cumprem o mesmo horário e o mesmo sentido de solidão, mas vivem mais no exterior da cela para realizar os trabalhos necessários ao funcionamento do mosteiro.
(3/4/2019)