O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, janeiro 24, 2023

O RIO DA MINHA TERRA E A 'CHÃ DE FERREIRA'

No ‘Dia de Reis’, como ia cheio o rio da minha infância!… De muitas águas e de, não menos, memórias e saudades… “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. “ (Fernando Pessoa) Era assim, também, o rio da minha terra. Nascido no lugar da Ribeira, fui menino nas suas margens. Não tinha nome, era simplesmente ‘rio’. Os outros eram uma aprendizagem, um conhecimento. O da minha aldeia era uma vivência. Não vinha nos livros. Estava aí. Não precisava de nome. Como os nossos pais… Fiquei surpreendido quando alguém me disse que se chamava ‘Ferreira’. Ferreira, para mim, era nome de gente… O primeiro rio de que soube o nome foi o “Rio Jordão” onde Nossa Senhora ‘ia lavar os cueirinhos’ do Menino Jesus. Os outros, aprendi-os na escola. Bem cedo surgiu em mim o desejo de conhecer as suas nascentes. A primeira a que subi foi ao ‘Mondeguinho, nascente do rio Mondego’, na serra da Estrela. E bebi na sua bica. O desejo de ir à nascente do Douro concretizou-se há uns anos. E não foi coisa fácil. Depois de passar em Duruelo de la Sierra e Castroviejo, subimos a pé até aos ‘Picos de Urbion’ a 2160 metros e refrescámos os pés na sua primeira ‘barragem’, uma pequena poça junto à nascente. Seguiram-se as do Minho, em Pedregal de Irímia (Lugo); do Cávado na serra do Larouco; do Sousa, em Friande (Felgueiras); do Leça em Monte Córdova (Santo Tirso); do Côa, na serra das Mesas (Sabugal); do Vouga na serra da Lapa; do Dão em Aguiar da Beira… E a nascente do rio da minha aldeia? Sobre essa nunca me interroguei, porque, como escreveu Pessoa: “Ninguém nunca pensou no que há para além/Do rio da minha aldeia. /O rio da minha aldeia não faz pensar em nada /Quem está ao pé dele está só ao pé dele”. Era assim, é assim que me sinto quando me refresco nas suas águas. Há bem pouco tempo e incentivado por estes versos, fui em busca da sua nascente, na antiga “Chã de Ferreira”. Terra de muita água, são múltiplas as fontes que para ele jorram. Limitei-me a ir procurar aquela que, sendo a maior, é assinalada como a nascente. E encontrei-a no lugar da Jóia em Freamunde. O volume das suas águas levou-me a dizer, com orgulho: “A nascente do rio da ‘minha aldeia’, é maior que a do Douro”. E é de facto… Sentado na borda dum lavadouro, descansei no silêncio do “Parque de Lazer” a ouvir o coaxar das rãs por entre as verduras dos valados. A abundância de águas e a fertilidade do solo atraíram povoadores desde, pelo menos, o neolítico como bem testemunha o ‘Dólmen da Leira Longa’, em Lamoso, cuja construção remonta ao III milénio a. C. Os dólmens (antas, orcas), importantes monumentos funerários, assinalam a sedentarização das primeiras povoações agrícolas. Testemunho mais recente, mas muito significativo da ação humana, vamos encontrá-lo na Citânia de Sanfins com vestígios que recuam ao século XI a. C.. Povoado de origem castreja, depois romanizado, foi grande entre os séculos II a.C. e o século IV d.C.. Encantou-me a “pedra formosa” do seu balneário… No período da Reconquista Cristã, terão sido muitos os povoadores, vindos do norte da Península, que aqui se fixaram. Sinal maior de prosperidade é o Mosteiro de Ferreira cuja fundação remonta ao século X. O edifício atual, datado do século XII, “é um dos mais cuidados monumentos do românico português”. Para além da excelência da sua arquitetura, nele se “conjugam em harmonia alçados e motivos ornamentais oriundos de diversas regiões e oficinas: Zamora-Compostela, Coimbra-Porto e Braga-Unhão”. Hoje, Paços de Ferreira – “Capital do Móvel” - faz jus à sua história e abre-se a um futuro de progresso bem indiciado na beleza dos seus jardins. Aqui iniciei a minha atividade docente num ambiente de grande cordialidade. Perduram em mim amizades e memórias afetuosas. Terra de gente acolhedora, é boa para se viver e linda para se visitar. (25//2023)

terça-feira, janeiro 17, 2023

NÃO FICARAM NA HISTÓRIA MAS FIZERAM HISTÓRIA

O Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura fez-me chegar o texto ‘A nossa tarefa: Viver e morrer como seres humanos’ de Andrea Monda, publicado, em 13.09.2022, pelo L'Osservatore Romano. Começa por dizer: “Nos últimos dias faleceram duas pessoas que marcaram a história do último século: Mikhail Gorbachev e Isabel II. Trata-se de pessoas que já entraram nos livros de História. Nestes manuais, estudam-se, com efeito, os “grandes” da História. E continua: “Sabemos bem o quanto tudo isto, obviamente, é parcial, redutor, no fim de contas falso. Sabemos por isso que o papa tem razão quando nos recorda que «as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns – habitualmente esquecidas – que, sem dúvida, estão a escrever hoje os acontecimentos decisivos da nossa História”. Este texto fez-me lembrar o ‘Museu de Lagos – Rota da Escravatura’ que tem gravado na parede exterior: “Chegaram as caravelas a Lagos (…) e no outro dia Lançarote (…) disse ao Infante (…) ser bem que de manhã os mandeis tirar das caravelas e levar aquele campo que está além da porta de vila, (fazendo) deles cinco partes (…) e seja vossa mercê chegardes aí e escolher uma das partes, qual mais vos prouver” (Crónica do descobrimento e a conquista da Guiné”, G. Eanes de Azurara). Dois nomes ficaram na história: Lançarote, o comandante que, em 1444, partiu de Lagos e aí regressou, em agosto desse ano, ‘com o primeiro grande contingente de escravos - 235 negros raptados nos litorais da Senegâmbia e vendidos em leilão na praça pública’; o Infante (D. Henrique), o impulsionador dos Descobrimentos que, em Lagos, fundara a Casa da Guiné para controlar o comércio dos produtos africanos, especialmente, ouro, marfim e escravos. Ao percorrer o interior do museu, sentimos arrepios no corpo e flagelos da alma, ao ouvir, em fundo, as palavras com que Azurara descreve a divisão/separação dos escravos: “No outro dia (…) começaram os mareantes de correger seus batéis e tirar aqueles cativos, para os levarem segundo lhes fora mandado. Mas qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela companha? Que uns tinham as caras baixas e os rostros lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos em eles, bradando altamente; outros feriam seu rostro com suas palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto”. E conta emocionado: ”E começaram de os apartarem uns dos outros, a fim de porem seus quinhões em igualeza; onde convinha de necessidade de se apartarem os filhos dos pais, e as mulheres dos maridos e os dos irmãos dos outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde a sorte o levava! Os filhos, que viam os pais na outra parte, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as mães apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados!” Os seus nomes não ficaram na história, mas fizeram história, uma história que foi silenciada, uma história que nos provoca e horroriza… Lembrei-os nos ‘50 anos do Massacre de Wiriamu’, em Moçambique’ (1//12/1972) que o nosso Primeiro Ministro evocou perante o Presidente de Moçambique como um “acto indesculpável que desonra a nossa História”. E relembrei-os ao ver, no Episódio I da série “Amantes na Fronteira” da RTP2, como, ainda na Lisboa do pós-terramoto de 1755, os escravos eram tratados a chicote e sujeitos às mais hediondas sevícias à ordem do seu proprietário. Há nódoas que mancham a nossa memória coletiva. Gostaríamos que nunca tivessem acontecido. Mas não se podem ignorar nem reescrever a história. Sem subterfúgios ou autojustificações. A essas atitudes, Sarte dá o nome de ‘má fé’, um autoengano, uma forma de mentirmos a nós próprios. (VP, 18/1/2023)

quarta-feira, janeiro 11, 2023

DAI-ME, SENHOR, A FÉ DE MINHA MÃE

Ao longo de muitos anos, no dia dois de janeiro, fui à minha aldeia celebrar com minha mãe o seu aniversário natalício. Após a sua ‘passagem’, a romaria fez-se saudade e manteve-se, mas passou a incluir uma visita ao cemitério de Campo/Valongo. É sempre um momento de introspeção. Este ano, vieram-me à mente duas conversas. . A mais recente aconteceu no passado dia 9, no funeral da minha comadre Olga Celeste, uma amiga que fez parte dos primeiros ‘Ministros Extraordinários da Comunhão’ nomeados, em 1974, por D. António Ferreira Gomes. Como dizia Eduardo Lourenço, é verdadeiramente a morte dos outros o que nos faz sofrer. Não é impunemente que vemos os amigos partir. Anima-nos a Fé e a certeza de que ”Aqueles que passam por nós não vão sós: deixam um pouco de si; levam um pouco de nós”. (Sainte-Exupéry) Após as exéquias, em romagem de partilha e saudade, peregrinámos pelos jazigos das nossas famílias. No final, confortados com a presença dos amigos, falámos de conhecidos nossos que, depois da cremação, guardam em casa as cinzas dos familiares. E duas ideias nos solidarizaram. Todo o homem é sagrado, também o seu corpo. “Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós, o qual vos foi dado por Deus? (1Cor, 6,19)”. Durante a vida, deve ser cuidado e respeitado e, após a morte, deve ser acolhido num ‘chão sagrado’. “A ideia do sagrado… tem a ver com escrúpulo, com resguardo, separação. O que é intocável” (Siza Vieira in “A questão sobre Deus é o não saber explicar”) Se os pais não são donos dos filhos também os filhos não o são dos pais, nem os cônjuges o são um do outro. Não é por terem morrido que seus corpos passaram a pertencer-lhes. Os filhos foram, certamente muito importantes, mas não esgotaram a sua vida. E vice-versa. Há familiares, vizinhos, amigos: toda uma vida de convivência e presença solidária. O falecido tem direito a um local onde quem quiser possa, livremente, prestar-lhe uma homenagem, fazer o luto, colocar uma flor, verter uma lágrima, fazer uma oração... “Não me procures / Já não tenho encalço / Já não deixo rasto / Encontra-se agora / Em toda a parte” (Nuno Rocha Morais, poemas dos dias). Grande verdade que todos já experimentámos. Tudo nos fala dos nossos mortos. O cemitério, porém, espaço sagrado da memória, é o local próprio para acolher os restos mortais daqueles que amamos. . A conversa mais antiga, ouvi-a, há já uns anos, na Fundação António José de Almeida, na conferência de Torres Queiruga sobre o seu livro ’Repensar o Mal. Da Ponerologia à Todiceia’. No final, um assistente perguntou-lhe: - “O senhor, ilustre professor de filosofia na Universidade de Santiago de Compostela e teólogo de renome mundial, afirma-se como cristão. Por que acredita e como consegue conciliar a sua teologia com a Fé que professa?” Ao que ele, simplesmente, respondeu: - “Porque sou finito e peço todos os dias a Deus que me dê a fé de minha mãe”. Esta resposta levou-me a parafrasear a velha afirmação, atribuída a Tertuliano, e dizer ‘creio porque sou finito’. Precisamos de alguém que seja fundamento do nosso ser porque nem nós nem nossos pais, finitos, o somos. Sem esse Outro, o mundo não tinha razão de ser e eu, na minha contingência, ver-me-ia, ontologicamente, como um absurdo existencial sem transcendência nem significado. Minha mãe morreu vítima dum cancro que lhe desfigurou o rosto e causou grande sofrimento. Quando a íamos visitar, sempre repetia: - “Nosso Senhor sofreu muito mais. Seja em desconto dos meus pecados e pela conversão dos pecadores”. Eu, por vezes, sentia-me esmagado, e, discretamente, saía do quarto para silenciosamente chorar no corredor. A enfermeira Maria do Carmo – o seu ‘anjo’ cuidador – rezava com ela o terço enquanto lhe curava as chagas. Como minha mãe se sentia confortada! No início deste novo ano e de pé junto do seu túmulo, repeti a jaculatória com que terminava a ‘reza do terço’ na minha casa: “Meu Deus, eu creio em Vós, mas aumentai a minha Fé…” E rezei o ‘Credo’ que me ensinou em criança: “Creio em Deus Pai todo poderoso, Criador do céu e da terra. E em Jesus Cristo, Seu único Filho, Nosso Senhor; que foi concebido pelo poder do Espírito Santo…”. “A vida espiritual alimenta-se da memória” - François-Xavier Bustillo. (11/1/2023)