O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, junho 29, 2022

POR AQUI PASSOU SÃO PAULO...

“Fizemos escala em Siracusa, onde ficámos três dias. De lá, seguindo a costa, atingimos Régio. No dia seguinte soprava o vento sul e chegámos em dois dias a Pozzuoli.” (At 28,12) Na dia da sua Festa, evoco esta passagem da vinda de S. Paulo para Roma. Num tempo de barcos à vela e navegação de cabotagem, não seria diferente a rota seguida por S. Pedro, da Palestina para a capital do Império. E faço-o partilhando convosco algumas vivências da viagem que, na Páscoa, fizemos por terras da Sicília. Iniciámos em Taormina, com o seu magnífico teatro romano, debruçada sobre o mar donde é possível ver a costa referida nos Atos dos Apóstolos. Ao fundo, o cone nevado do Etna, o mais alto vulcão da Europa (3345 m.). Subimos até aos 1 900m. Nevava… No dia seguinte, percorremos a costa paulina desde Catânia até Messina. Começámos por avistar ao longe, por entre a neblina, a cidade de Régio de Calábria, já na Itália continental. Em Messina, emocionei-me ao ver aquele estreito, de apenas 3 km de largura, onde sopram ventos contrários e as águas dos mares Tirreno e Jónico se entrechocam. Os riscos para a navegação fizeram nascer o dito ‘entre Cila e Caríbdis’ correspondente ao nosso ‘entre a espada e a parede’. Ulisses conta nas suas viagens: “Navegámos então para os estreitos. De um lado estava Cila. Do outro, a divina Caríbdis sugava de modo terrível a água salgada do mar (…) Foi então que Cila atacou. Nós olhámos para ela, cheios de medo da morte, enquanto ela arrebatou seis companheiros da nau. (…) Foi a coisa mais terrível que vi em todas as minhas viagens.” (A Odisseia de Homero, adaptada por Frederico Lourenço, pág. 197) Já na costa norte, percorremos o ‘circuito árabe-normando’ , começando em Cefalú, a primeira catedral normanda (1131) a ser construída na Sicília, passando pela de Monreal e, já em Palermo, visitámos a igreja da Martorana (1143), terminando na Capela Palatina. Todas estas igrejas, normandas na sua estrutura, são um deslumbramento no seu interior totalmente revestido por mosaicos bizantinos, feitos por artistas árabes. Eram estes os senhores da ilha quando os normandos a conquistaram. Depois de passar por Érice, rumámos a Agrigento onde percorremos o ‘Valle dei Templi’ gregos do séc. IV a.C. a fazer lembrar o Partenon de Atenas. Seguiu-se uma visita à ‘Villa Romana dei Casale’, uma moradia de luxo do séc. IV, decorada com magníficos mosaicos romanos. O seu extraordinário estado de conservação deve-se ao facto de ter estado soterrada, durante 9 séculos, sob uma enorme massa de barro que um terramoto fez desabar. Após visitar Caltagirone e Noto, chegámos a Siracusa fundada em 734-733 a. C. e onde S. Paulo ficou “três dias”. Ao percorrer de barco o seu porto interior, lembrei que por ali andou S. Paulo e, provavelmente, também S. Pedro. No ‘teatro grego’, sobranceiro ao porto, recordei o ‘Apóstolo dos Gentios’, a anunciar o “Deus Desconhecido”, no Areópago de Atenas, (At 17,23). E não esqueci o grande Arquimedes que aqui nasceu e morreu (287 a.C. - 212 a.C.) a quem se deve a expressão ‘Eureka’ e que dizia: “dai-me um ponto fixo no universo e eu, com uma alavanca, moverei o mundo”. E relembrei a velha mnemónica do ‘teorema de Pitágoras’: “Pitágoras em Siracusa, disse um dia a seus netos o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”. Foi um encontro com lugares onde se cruzam as matrizes da nossa cultura judaico-cristã e greco-romana. O espaço esbateu o tempo e eu senti-me entre ‘velhos’ conhecidos…(29/6/2022)

terça-feira, junho 21, 2022

DUAS TARDES EM CONTRASTE...

No dia 3 de junho, por convite do P. Soares Jorge, fui à ‘Casa Sacerdotal’ falar do meu percurso de vida. Foi um momento de emoção. Estava perante uma assembleia de “velhos amigos” e alguns mestres. Na impossibilidade de a todos nomear - o que bem mereciam – limito-me a realçar dois dos presentes. Começo pelo P. Jorge, o diretor do “Secretariado Diocesano da Catequese” quando, em 1964/65, iniciei a minha atividade socio-pastoral na zona do Cerco – São Roque. Logo em agosto de 1964, com o seu apoio, realizámos um curso de catequese e “em agosto de 1965, já sob a orientação do Secretariado, fizemos um novo curso frequentado por mais de duas dezenas de jovens, na sua maioria, a quem foi passado o certificado de aprovação (20/3/1966). O P. Jorge deu-nos os parabéns pelo empenho dos muitos jovens que nele participaram, sem qualquer desistência ou reprovação.” (No Princípio foi assim…). Foi o início de uma profícua colaboração. Seguiram-se mais cursos, encontros para catequistas nas férias do Carnaval em Cortegaça, cursos da Torre da Marca. A revista mensal ‘A Mensagem’, de que foi diretor desde a sua criação (1/10/1956) até outubro de 1975, muito me ajudou nos encontros mensais de catequistas. E não posso esquecer o sentido de Igreja com que me acolheu quando, em nome da Voz Portucalense, fui à sua paróquia do Santíssimo Sacramento (20 e 21/4/2013). Após o Evangelho, disse: “Hoje, a homilia tem duas partes: uma teórica sobre a importância da Comunicação Social na Igreja; outra, prática, a cargo do Dr. João que nos vem falar sobre a Voz Portucalense.” Que contraste com outras vivências… Outro Mestre foi Frei Geraldo, beneditino, professor universitário, especialista na história das Ordens Religiosas, biblista e profundo conhecedor da cultura árabe e hebraica. Recordei um seu texto que, na década de setenta, suscitou uma profunda reflexão na cidade sobre a ‘Visita Pascal’. E não esqueci o que disse num encontro que, a meu pedido, teve com professores: “ Nunca haverá uma paz duradoura entre Judeus e Palestinianos porque têm a mesma matriz cultural: “olho por olho, dente por dente”. Sem perdão, não há paz e o perdão foi a grande novidade do Evangelho”. Foi por sua sugestão e em sua honra que o Coro Gregoriano do Porto, em 2008, adotou a alba-cogula beneditina como sua veste coral. Quantas e quão gratas recordações… Do meu testemunho, destaco esta síntese: ”Trabalhei seis anos com D. Florentino (1963-1969) e outros seis com D. António Ferreira Gomes (1969 -1975). D. Florentino valorizava a proteção e a dignificação do pobre que via como um sacramento de Cristo. D. António privilegiava a ‘pastoral da inteligência’ assente na trilogia da Liberdade, Igualdade, e Fraternidade. Dois carismas, o mesmo amor à Igreja, um único Espírito. ‘Devemos caminhar unidos nas diferenças: não há outro caminho para nos unirmos. Este é o caminho de Jesus’- Papa Francisco”.(cf. Nos Alvores da Obra Diocesana) Dias atrás, numa visita a outra diocese, falei deste encontro fraterno a um sacerdote que, após mais de cinquenta anos de serviço paroquial, foi dispensado por razões de saúde e idade. Agora vive só, em sua casa. Vale-lhe o centro social que ajudou a criar. Em seus olhos liam-se ausências e nos silêncios abrigavam-se desalentos... Depois de lhe ouvir confidências e desabafos, comentei: - É a solidão”. - “É sofredão”, acrescentou ele, com um sorriso amargo. Este ‘neologismo sofredor’ deixou-me interrogativo… E o cuidado pelos mais frágeis de que tanto fala o Papa Francisco? (22/6/2022)

terça-feira, junho 14, 2022

ENQUANTO NOSSOS PROFESSORES FOREM VIVOS...

No dia em que a mãe faleceu – “o dia mais triste da sua vida”- D. António Ferreira Gomes disse aos padres que estavam com ele em Roma: “Quando nossos pais morrem, nós deixamos de ser meninos”. Esta afirmação do “famoso bispo do Porto”, como lhe chamou o papa João Paulo II, foi evocada na reunião anual do ‘Curso dos Seminários do Porto de 1951-1963’, no dia 27 de maio, no Santuário do Monte da Virgem. São encontros de “velhos amigos” que nos propiciam emoções fortes e contraditórias: - Alegria – O facto de ver, face a face, rostos que nos acompanham há mais de 70 anos, dá-nos, só por si, felicidade e uma alegria interior que as palavras não exprimem. - Tristeza – Os sinais de decrepitude que se vão acentuando nos companheiros presentes e a ausência de outros que já partiram ou estão doentes fazem pairar sobre nós uma neblina de sofrimento. - Nostalgia – Nas palavras e memórias sente-se o apelo nostálgico do passado e suas reminiscências. Para reviver esses momentos, cantámos alguns dos motetes gregorianos que então cantávamos. E com que emoção o fizemos… Também o local fez-nos evocar os passeios semanais do Seminário de Trancoso quando o padre - prefeito nos dizia: “Três a três – Monte da Virgem”… - Estima e Gratidão – Na Eucaristia, presidida pelo P. Correia Fernandes e concelebrada pelos Padres Damião, Avelino e Baptista, rezámos pelos nossos professores, de modo especial, pelos que, nos últimos anos, nos deixaram. Do seminário de Trancoso, P. Armando, P. Delfim, P. Santos Silva. Do seminário de Vilar, Dr. Marques, D. Manuel Vieira Pinto, P. Valdemar, Dr. Zacarias. Do seminário da Sé, Dr. Castro Meireles, D. Manuel Martins, Dr. Ângelo Alves. E demos graças a Deus por, felizmente, D. Serafim Ferreira e Silva, nosso primeiro professor de direito canónico, e Cónego Ferreira dos Santos, professor de música, continuarem entre nós. Por grata coincidência, na 2ª feira seguinte, recebi uma carta de D. Serafim que finalizava: “ P.S. Peço desculpa da letra, mas tudo se resume nisto: Parabéns. Obrigado.” Esta simplicidade sempre nos cativou e fez dele um amigo que nunca nos esqueceu, mesmo quando já era bispo. Recordo alguns factos: . Em 1 de dezembro de 2007, no 12º aniversário do Coro Gregoriano, presidiu a uma concelebração na capela do Calvário Húngaro e partilhou connosco a refeição comemorativa, em Fátima. Nos dias 14 de janeiro 2010 e 13 de fevereiro 2011, deslocou-se de Fátima ao Porto para participar, na Sé, no primeiro e segundo “Dia da Voz Portucalense” em que foi recordado como antigo diretor. Em 2011, apoiou os antigos alunos do Seminário Maior na publicação de “Manuel Álvaro de Madureira – in memoriam”, que enriqueceu com o seu ‘Testemunho’: “Na cátedra ou no jornal, foi escrupulosamente rigoroso, na lógica do pensamento, na fidelidade da ortodoxia doutrinal e na clareza da linguagem (…) Foi humilde e discreto. Nunca procurou títulos ou honrarias. Viveu como um monge”. Na véspera do seu aniversário de nascimento (16/6/1930 - Santa Maria de Avioso, Maia) e de ordenação episcopal (16/6/1979 - Basílica do Sameiro, Braga), manifesto a D. Serafim a nossa estima e gratidão. Que Deus o conserve. E, parafraseando D. António, nós continuaremos a dizer: “Enquanto os nossos professores forem vivos, somos sempre meninos.”(15/6/2022)

terça-feira, junho 07, 2022

RESTAURANTES - VELÓRIOS

Era uma tarde de primavera. O sol iluminava as águas do Douro que um cruzeiro agitava na sua passagem. Na praia, alguns banhistas mais afoitos, depois de um mergulho, vinham, a tiritar, aquecer-se na areia. Nos amieiros e salgueiros chilreavam passarinhos… Também eu quis aproveitar esta dádiva da natureza e fui até um café junto à célebre ‘Casa Branca’ onde, em 1847, foi assinada a ‘Convenção de Gramido’ que pôs fim á ‘Guerra da Patuleia’. As mesas da esplanada virada ao rio estavam cheias. E o que faziam os seus ocupantes, jovens na sua grande maioria? Deliciavam-se com a paisagem? Escutavam os trinados dos melros? Conversavam? Trocavam olhares de carícia? – Não. Quase todos estavam vergados sobre o seu telemóvel: jogavam; liam notícias; enviavam mensagens; dedilhavam fotografias; riam-se com os vídeos. Todos subjugados por um aparelho muito útil mas que se tornou no déspota dos tempos modernos. E pensei: é gente jovem... Mas, à noite, num restaurante na Praça Dr. Francisco Sá Carneiro confirmei que também os menos novos se deixaram subjugar: numa mesa um casal entretinha-se com os telemóveis. Noutra, a senhora demorava-se numa longa conversa telefónica, enquanto o acompanhante, com o olhar em espera, trincava umas azeitonitas… Foi então que me veio à mente uma entrevista em que o dono de um restaurante confessava: “Os restaurantes que têm Wi-Fi viraram autênticos velórios” (SOL 1/5/2022). Estava eu com estes pensamentos quando li em 7Margens (7/Maio): “O telemóvel é uma invenção fantástica, incrível, fabulosa. Já mal imaginamos como eram as nossas vidas antes de haver telemóveis. Mas, com o evoluir dos aparelhinhos, aquilo passou a ser de uso muito mais vasto do que simplesmente para falar com alguém (para telefonar ou receber um telefonema, lembram-se?…) Há até quem brinque dizendo que os modernos telemóveis servem, inclusive para… telefonar”. E acrescentava uma nota que me deixou a pensar: ”A ironia disto é que um aparelho que foi feito para a gente falar serve agora, e cada vez mais, para a gente calar. Estamos à mesa com alguém, a conversa não sai ou não nos apetece que saia, ficarmos a olhar uns para os outros em silêncio é pouco agradável, e… puxamos do telemóvel. Pronto, já ficamos confortavelmente calados. Todos e cada um com o seu aparelhinho nas mãos e nos olhos, bem caladinhos até que… chegou a comida! Vamos lá, duas de conversa rápida e já voltamos ali. Já voltamos, não a falar, mas a calar ao telemóvel. Ele, afinal, não nos põe à conversa. Ele, afinal, põe-nos calados”. Não há diálogo com os presentes porque não estamos ali…”Estar nas redes sociais não é ser sociável”, avisa o Papa Francisco. Infelizmente, não é só nos restaurantes. Também nas famílias, As refeições deixaram de ser um momento de convívio familiar; a mesa passou a ser um lugar onde se come o mais rápido possível porque o telemóvel não pode esperar…A não ser que, no entretanto, se dê uma ou outra espreitadela… E há sempre a possibilidade duma furtiva ida à casa de banho, com o telemóvel no bolso… Não é sem razão que o Papa Francisco aconselhou as famílias a “desligar os telemóveis durante as refeições”. Esta recomendação fez-me parafrasear o ‘slogan’ rodoviário “Ao volante o telemóvel pode esperar” e dizer: “À mesa o telemóvel pode esperar”…(8/6/2022)

quarta-feira, junho 01, 2022

NEM ORAÇÃO SEM OS HOMENS - NEM TRABALHO SEM DEUS

No dia em que Charles de Foucauld foi canonizado, encontrava- me a ler o livro “Uma grande fome de absoluto – Louis Évely”, de Michel Barlow. E quem foi Louis Évely (1910 – 1985)? A comunicação social apresenta-o como presbítero e escritor belga, pedagogo da vida espiritual. Este livro vai bem mais fundo. “Procura retratar a evolução concreta do seu pensamento, a maneira como este evoluiu; como as suas convicções se formaram pela solicitação dos acontecimentos e se traduziram em atos.” Quem o ler poderá certificar-se que ele encarnou as suas ideias na vida e que esta não foi menos eloquente que as suas obras. No Prefácio diz-se que a ideia mestra de toda a sua vida e pregação era a pergunta:”Que tens tu para viver na Eternidade daquilo que quiseste amar na terra? Que quererias tu ter eternizado?” Como ele próprio escreveu: (Quando eu morrer) “Deus encontrará em mim um grande vazio a preencher porque não tenho nada para lhe apresentar a não ser uma grande fome de absoluto. Mas eu ponho n’Ele a minha confiança”. O seu objetivo era eternizar a vida. E não é essa a grande lição do ‘Sermão das Bem-Aventuranças’? Faz hoje … e terás amanhã. Na sua vida e obra, através duma palavra forte que exaltava a beleza do mundo sem esconder o trágico da existência, perpassa um sopro de liberdade. ‘Ser religioso’ não é relegar Deus para gestos de culto ou boas ações, mas esforçar- se “por reler toda a vida em função do absoluto, é encontrar o horizonte do divino na nossa existência concreta.” Defendia uma vida espiritual alicerçada na dimensão metafísica do homem, fundada no ser do homem. “Libertou a espiritualidade do discurso tradicional que a confinava ao quietismo.” No capítulo 16 – “Aux sources de la fraternité selon Charles de Foucauld”, o autor diz que os anos de 1950 foram para Louis tempos de intensa atividade, marcados pela influência espiritual do Padre de Foucauld, como o próprio afirma no seu Itinerário espiritual: “Eu sentia-me muito próximo deste grande contemplativo que compreendeu que Deus não está em nenhuma parte mais presente do que no homem”. E acrescenta: “Louis encontra-se plenamente neste místico, centrado na pessoa de Jesus Cristo e esta convicção vai estruturar a sua espiritualidade. O cristocentrismo é, sem dúvida, o traço mais característico do catolicismo do século XX, desde a maneira de rezar até à investigação teológica que culmina no Vaticano II”. Nessa década, tornou-se conhecido o pensamento refrescante e a ação admirável do tenente Charles de Foucauld que encontrou Deus numa conversão tão súbita quão radical. “Louis não podia deixar de se fascinar por esta personalidade de fogo que, como ele, não se contentava com meias medidas e se dava todo a Deus, sem se fixar em pormenores”. Louis Évely entusiasmou-se pelas ‘Fraternidades Seculares de Charles de Foucauld’ onde viu um meio eficaz de estabelecer uma relação estreita entre a vida e a oração, de viver “uma oração que não rompa com os homens e um trabalho que não rompa com Deus.” Criado à Sua imagem e semelhança (Gn 1,26), o homem é o maior sinal da presença de Deus na nossa vida. É a ‘escada de Jacob’ (Gn 28, 12) que nos ajuda a subir até Ele. (1/6/2022)

VAMOS CONHECER A NOSSA TERRA (I) - AMARANTE

Agora que a primavera floresce, quero convidar-vos a acompanhar-nos numa viagem que fizemos a esta terra que viu nascer grandes vultos da nossa cultura. Começámos pelo mosteiro de Travanca (séc. XIII), associado à linhagem de Egas Moniz, que “impressiona pelas suas dimensões”. Além da grandiosidade do conjunto monástico, prendem-nos a atenção os ‘guardiões do limiar’ - serpentes e “monstros que tragam homens desnudos” - nos capitéis dos pórticos e absidíolas. Mas o “que sobressai no conjunto” é a imponente torre medieval e o seu pórtico com destaque para o “Agnus Dei” com a cruz templária. Sentimo-nos em tempos medievais… Após este mergulho na história, fomos ao encontro do mosteiro de Freixo de Baixo, “símbolo maior do complexo monástico instituído pelo poder senhorial” onde se impõe “uma robusta torre sineira” Aqui, vale a pena fazer uma pausa, sentar num murete e ouvir o cantar da água que lhe corre aos pés. Reconfortados, subimos para a igreja de Telões, “sede de um antigo instituto monástico entretanto desaparecido”, com origens nos séculos XII e XIII, mas com reformas posteriores bem visíveis na longa galilé. O que mais desperta a atenção é a torre sineira que nos fala de épocas bem remotas. Descemos até Gatão e visitámos a “Casa de Pascoaes” onde nasceu (2/11/1877), viveu e morreu (14/2/1952) o autor de “Maranus”, Teixeira de Pascoais, e se forjou, no início do século passado, o “Movimento Nós” que afirmava a identidade da alma luso-galaica. Na cidade de Amarante, percorremos a ‘ponte de S. Gonçalo’, construída no século XVIII e que se tornou famosa pelo combate que nela se travou, em 1809, para impedir a passagem das tropas napoleónicas. E entrámos na igreja do mosteiro edificado, entre os séculos XVI e XVIII, no local duma pequena ermida que remontaria ao século XIII. Dada a sua magnificência, e para não ofuscar a beleza que só uma visita é capaz de propiciar, apenas direi que as recentes obras de restauro restituíram-lhe o brilho que a pátina do tempo lhe havia roubado. Disse-me a amiga Assunção Torres que, só da capela-mor, se retiraram 110 quilos de poeiras que enegreciam a sua riquíssima talha dourada. Seguimos para o mosteiro de Mancelos, já mencionado em 1120, que nos surpreendeu pelo acastelado das ameias. Desta freguesia, era o pintor Amadeo de Sousa Cardoso em cujo cemitério repousam seus restos mortais num jazigo mandado levantar pela Câmara de Amarante no cinquentenário da sua morte. A lápide da sua base diz: “amadeo de sousa cardoso – N. em Manhufe, Amarante a 14 de Nov. de 1885 – F. em Espinho a 25 de Out. de 1918” - “É a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX. (José Almada Negreiros)” Bem próximo, encontra-se uma capela-jazigo, em lastimável estado de abandono, onde uma lápide assinala a presença de Ana Guedes da Costa, “uma vida exemplar, dedicada à caridade, ao bem dos fracos, dos humildes e necessitados”, que deu nome à antiga Escola dos Enfermeiros do Hospital de Santo António. Ao terminar na igreja de Real, do início do século XIII, com uma torre sineira de “claro sabor românico”, uma pergunta nos ficou. - Até que ponto os mosteiros – centros de cultura e hospitalidade - estarão na matriz desta terra onde germinaram figuras insignes como Teixeira de Pascoaes, Amadeo Sousa Cardoso, António Cândido, Agustina Bessa-Luís, Acácio Lino, Ana Guedes? (25/5/2022)