O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, janeiro 29, 2016

ECOS DUM SEMINÁRIO



      O seminário "Diálogo e incarnação: Duas figuras da Igreja do Porto - Narciso Rodrigues e Albino Moreira", (cf. VP, 18/11/2015), foi apresentado a três vozes, como disse Adélio Abreu, diretor da Faculdade de Teologia.
      A primeira foi a de Arlindo Magalhães que enquadrou, histórica e e teologicamente, dois presbíteros, "diferentes em história pessoal e em idade" que, após o Vaticano II, viveram "debaixo das mesmas telhas" no Seminário Maior. Ao revisitar a história da eclesiologia, recuou até Johann Mohler (1796-1838) que " reparou que, na Igreja, se repetia o mistério da Incarnação — elemento humano e elemento divino. E porque na Igreja se repete o mistério da Incarnação ela é um Natal continuado. E assim como o Verbo se fez carne, a Igreja é, tem de ser, a sua manifestação histórica, e por isso integra os elementos humano e divino". Era uma nova visão da Igreja.

Numa Europa afogada na exploração dos trabalhadores e na miséria do povo, surgiram cristãos que, com a vida, testemunharam que "assim como o Verbo de Deus, o seu Filho, desceu e se fez pobre, num presépio, numa família pobre, num povo menorizado e dominado pelos romanos, que tinha uma língua desprezível, etc, assim a Igreja tem, para ir aos pobres, de deixar palácios e poderes, de descer ao mundo operário, da doença e do desemprego, da fome, da exploração" . Destes, evocou Ozanam, e o P. Chévrier que , no Natal de 1856, resolveu deixar tudo e viver o mais pobremente possível: "Foi o mistério da Incarnação que me converteu!". Falou ainda do "Leão das coisas novas" (Leão XIII) de Foucauld e Cardijn... E dos padres Alves Correia, Américo, Abel Varzim, e de Libânia Albuquerque, Carolina Gomes... e Sílvia Cardoso, explicito eu. Do clero do Porto mais recente, deu realce aos padres Leonel (VP, 4/11/2015) e Gaspar, um padre operário que faleceu muito novo, de quem leu o texto:
       "A nossa grande dificuldade está sempre ligada com o Mistério da Incarnação. Não conseguimos aquilo que Deus já fez: ligar o Céu e a Terra, Deus e o Homem, unir os interesses dos homens e os de Deus, fazendo-se ele próprio um homem, assumindo toda a sua vida, dinâmica, limitações, pecados, grandezas e possibilidades. Jesus Cristo não receou arriscar na incarnação. Sendo Deus, aceitou limitar-se a um homem. Sendo eterno, aceitou limitar-se num tempo da História. Estando presente em toda a parte, como diz a doutrina, aceitou viver confinado num lugar. Sendo omnipotente, aceitou o desafio da fraqueza e da pobreza, aceitou pertencer ao povo dos pobres e dos fracos, dos não detentores do poder e da riqueza; e aceitou tomar riscos concretos que lhe valeram as inimizades mortais".

É a Igreja a "tocar a carne sofredora de Cristo no Povo", como diz o Papa Francisco (Ev. G., 24)" (Continua)

quarta-feira, janeiro 20, 2016

OS CEGOS E O ELEFANTE



Certo dia, um príncipe indiano reuniu um grupo de cegos de nascença, no pátio do palácio. Colocou diante deles um elefante e disse-lhes que o apalpassem. 
Quando todos o tinham feito, cada um explicou aos outros como era o elefante. O que tinha apalpado a barriga, disse que era como uma enorme panela. O que apalpara a cauda discordou e disse que o elefante parecia uma vassoura. O que tinha apalpado a orelha contradisse: "Parece um grande leque aberto". O que apalpara a tromba protestou: "O elefante tem a forma, as ondulações e a flexibilidade de uma mangueira de água". "Não", replicou o que apalpara a perna. "Ele é rígido como um poste...". Envolveram-se numa discussão sem fim. Cada um, apoiado na sua experiência, queria impor a sua verdade. 
O príncipe, quando percebeu que eram incapazes de aceitar que os outros podiam ter tido outras experiências, explicou "O elefante é tudo isso que vocês falaram. Mas o que cada um disse é só uma parte do elefante. Não devem negar o que os outros perceberam. Deveriam juntar as experiências de todos e tentar imaginar como a parte que cada um apalpou se une com as outras para formar esse todo que é o elefante."
Na “Semana da Unidade dos Cristãos”, recordo esta parábola que Xabier Pikaza cita, no contexto mais amplo do diálogo inter-religioso, para exemplificar as versões que os homens têm de Deus, um Deus de que todos têm uma visão parcelar mas ninguém possui a compreensão integral. Segundo este teólogo, para haver diálogo religioso é necessário atender à transcendência e à complementaridade. “Precisamente para abrir-se ao infinito, a religião nunca pode converter-se num sistema nem dominar todos os planos da vida humana. Ela sabe que há coisas que não pode resolver. Cada religião deve assumir a sua identidade (experiência de graça) em comunicação dialogante. Devemos fazer um esforço para sermos o que somos e apresentarmos aos outros a nossa própria opção”. A experiência cristã tem por base a gratuitidade do amor ao serviço da reconciliação universal. Só assim “pode ser fermento de concórdia e humanização sobre a Terra. As igrejas cristãs creem num Deus trinitário (quer dizer, num Deus comunitário, que é diálogo de amor).” Como entender, então, a divisão das igrejas? Razões históricas poderão explicar a sua origem mas nada justifica a sua continuidade. O poder divide. Só o serviço congrega. Que falta para acabar com este escândalo? A divisão dos cristãos é um vergonhoso contra-testemunho de que as igrejas terão de prestar contas a Deus. Deixemo-nos de ambiguidades e meias tintas! Não sejamos cegos nem surdos. Ouçamos a voz do Príncipe da Paz: “Que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti. (...) E o mundo creia que tu me enviaste.(Jo, 17,21)”.

(20/1/2016)

quarta-feira, janeiro 13, 2016

MEMORIAL DE AFETOS


“O homem nobre é apenas um homem que abriu o seu coração à Sabedoria” (Susanna Tamaro)
Lembrei esta afirmação ao ler o livro “Reverendo Padre Remígio Alves de Freitas – Memoriale” (VP, 23/12/2015).
D. Manuel Martins, seu aluno no seminário de Trancoso, testemunha: “O Padre Remígio marcou-nos pela sua simplicidade quase a cheirar a pobreza e desprendimento”. Também D. Armindo, ao falar dele, acrescentava: “Foi meu professor”.
 Se deixou marcas nos oito anos que lecionou no seminário, quão profundas não serão as que o perpetuam em Gemunde onde paroquiou mais de cinquenta...
 A autora, “alguém que o conhece desde menina da Comunhão Solene”, quis “evocar tão importante vulto que, pelo seu carisma, personalidade ímpar de enorme bondade, dedicação e amor, marcou positiva e indelevelmente sucessivas gerações”. Revisitou a sua memória que enriqueceu com documentos, fotografias e testemunhos. 
Nesta sinfonia “colectiva” de gratidão, quatro andamentos me prenderam a atenção. Ouçamos...

* Um Pastor que conhece e “cheira às ovelhas”, como quer o papa Francisco. 

- “Homem de muita sabedoria e de uma humildade enorme, com um conhecimento profundo da vida, com muito afecto pelas crianças e pelos mais desprotegidos, sempre com uma palavra de consolo para dar e sem algum interesse pelos bens materiais”. 
- “Foi um verdadeiro pai, no início austero, exigente e disciplinador e, no fim, um verdadeiro avô, dócil, tolerante, ouvindo e aconselhando com muita ternura e enorme paciência.” 
- “Para que ninguém ficasse sem missa durante a semana, ele adaptava o horário à vida de trabalho”. - “Ao explicar a homilia aos domingo, fazia-o com um enquadramento nas vivências do momento. Para além disso, diferenciava o seu vocabulário em função da população que tinha na sua frente.”
 - “Estava sempre disponível para nos ouvir e aconselhar e fazia-o de forma adequada e precisa porque nos conhecia muito bem”.

* Um Cristão modesto e desprendido. 

- “Não tinha vaidade, era simples e despojado de quase tudo. Nunca senti no nosso padre a vontade de ter algo mais do que o que era estritamente necessário para a sua sobrevivência.“ 
- “A bicicleta foi o seu único meio de transporte pessoal mais evoluído. … Vaidade não constava do seu léxico”.

* Um Homem de grande cultura: 

- “Mas o que mais me espantou foi a sua enorme erudição, aliada à sua extrema simplicidade e clareza. Não tinha pretensões nem fazia alarde do seu saber.”

* Um lema de vida 

- “ Diz na sua lápide onde jaz Faz da tua vida uma caminhada para o Céu. Mais do que homenagens, importa recordá-lo e aprender dele essa lição: Faz da tua vida uma caminhada para o Céu”.

“Figuras como esta não podemos deixar morrer”, escreveu D. Manuel Martins.

Gemunde está de parabéns. A gratidão dá sentido e perfume à vida.


(13/1/2016)

quarta-feira, janeiro 06, 2016

O PRIMADO DO SORRISO


Há tempos, ouvi o cantor Miguel Araújo dedicar o tema “José” ao seu filho que, disse, “acabava de dar os primeiros passos”. E assim nasceu esta reflexão.
Dizem os entendidos que a ontogénese humana (evolução do indivíduo) segue a filogénese (evolução da espécie). Ensina a Antropologia que a hominização (aquisição de atributos distintivos da espécie humana) começou quando a selva se transformou em savana. Naquela, abundavam as árvores que forneciam alimento e refúgio aos animais. Pelo contrário, a savana, com poucas árvores não dava o mesmo alimento e proteção. Entre os primatas, houve um que se apoiou nos pés para colher os frutos e fez-se bípede. Com as mãos livres e a cabeça levantada, o “homo erectus” recolhe mais facilmente os alimentos e vigia os predadores que se escondem no capim. Porém, esta posição vertical também o tornava mais frágil porque expunha às garras dos predadores as partes mais vulneráveis como o ventre e órgãos sexuais. Para se defender, teve necessidade de fabricar instrumentos que suprissem a sua fragilidade. Porque a alimentação escasseava, precisou de matar os animais de grande porte. Como não o podia fazer sozinho, começou a caçar em grupo. E para coordenar, o mais forte fez-se chefe. E assim nasce a tribo. Para que de predador não passasse a presa, as ordens do chefe tinham de ser bem entendidas o que exigia uma linguagem variada e precisa. Na posição vertical, a cabeça, ao apoiar-se sobre o tronco, tornou o pescoço menos rígido e mais flexível o aparelho fonético e as cordas vocais possibilitaram a dupla articulação. Por sua vez, a comunicação vai incrementar o desenvolvimento do córtex cerebral. Assim, o bipedismo libertou as mãos, possibilitou a fabricação de instrumentos, organizou o poder na comunidade e, ao favorecer a linguagem humana, desenvolveu as circunvoluções corticais. Esse hominídeo está na origem dum longo caminho que culminará no homem que hoje somos, diz a Ciência.
Pergunto: Esta evolução resultou apenas da necessidade de adaptação e da seleção natural? Por que é que os outros primatas, como chimpanzés e gorilas, não seguiram o processo? A Ciência procura explicar os fenómenos pelo binómio antecedente/consequente, mas não responde aos últimos “porquês”. E o mistério humano permanece. Já dizia D. António Barroso, em 1915:”Para explicar satisfatoriamente a vida é preciso recorrer a Deus”.


Se a hominização caminhou sobre os pés, a humanidade floresce no sorriso que sociabiliza os afetos.
Que Deus seja glorificado em todas as crianças que, no dealbar do novo ano, começam a dar os primeiros passos... Em seus olhos, brilha a ternura misteriosa de Deus...
Em Ano de Misericórdia, que o sorriso nos ajude a “vencer a indiferença e conquistar a paz”.
(6-1-2016)