O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, setembro 30, 2020

HOJE, NÃO AMANHÃ, HOJE

O «ontem» já passou e não volta. O que passou, passou. O tempo, ao contrário do espaço, não é reversível. Se o passado já não é nosso a não ser na memória e nos seus efeitos, também o futuro o não é, a não ser no desejo. Nosso é o «agora». Esse, sim, está nas nossas mãos. É nele que a nossa vida se realiza. É um “presente” que Deus nos oferece, um talento que nos confia. Muitas vezes, temos boas intenções que nunca se concretizam porque as deixamos para depois… Como bem canta António Variações: “Foi mais um dia e tu nada fizeste/ Um dia a mais/ tu pensas que não faz mal/ Vem outro dia e tudo se repete/ E vais deixando ficar tudo igual. Vem isto a propósito do apelo lançado pelo papa Francisco no primeiro dia deste mês, de que “7Margens” se fez eco com o título: “Estamos a espremer o planeta”. Nesse dia, foi divulgado um vídeo onde o Santo Padre se associa ao “Dia Mundial de Oração pela Criação”, iniciativa do patriarca Bartolomeu (ortodoxo), de Constantinopla em que “o Papa Francisco envolveu a Igreja Católica há cinco anos, depois de ter publicado a encíclica “Laudato Si - sobre o cuidado da Casa Comum”. Nele, denuncia, com a clareza que lhe conhecemos: “Estamos a espremer os bens do planeta. Espremendo-os, como se fossem uma laranja. Países e empresas do Norte enriquecem explorando dons naturais do Sul, gerando uma dívida ecológica”. E pergunta: ”Quem pagará essa dívida?” Para logo acrescentar: ”Além disso a dívida ecológica é ampliada quando multinacionais fazem fora dos seus países o que não lhes é permitido fazerem nos seus. É ultrajante.” Sem meias palavras… E deixa o apelo que encima este texto: “Hoje, não amanhã, hoje, temos de cuidar da Criação com responsabilidade. Rezemos para que os recursos do planeta não sejam saqueados, mas partilhados de forma justa e respeitosa. Não ao saque, sim à partilha”. Esta frontalidade fez-me lembrar o P. Francisco Lorenzo Mariño, no Colóquio Europeu de Paróquias, de Barcelona. Era julho de1967. Farto da arrogância com que padres do norte da Europa, especialmente holandeses, olhavam a pobre Igreja pobre de Portugal e Espanha, subiu à tribuna e assim falou: - Eu sou o Paco, um pobre cura galego. Sim, somos os pobres da Igreja dos pobres. Vós, os ricos da Igreja dos ricos. Ricos à custa de quê? Da exploração destruidora das matérias-primas do “Terceiro Mundo” a quem, depois, vendem por alto preço os produtos transformados. Sanguessugas de povos que vivem na miséria. E vós que fazeis? Descansais à sombra dessa riqueza iníqua e calais-vos como os pastores de que fala o profeta Isaías (56, 10): “Meus guardas estão todos cegos e não veem nada; são cães mudos incapazes de latir, sonham estirados, gostam de dormitar; são cães vorazes e insaciáveis, são pastores que nada observam, cada qual segue seu caminho, em busca de seu interesse”. Fez-se um silêncio ensurdecedor…que perdurou na memória dos participantes. E chegou até mim, em 1969, no colóquio de Turim. (30/9/2020)

quarta-feira, setembro 23, 2020

A CIDADE DO PORTO E A PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA

Nasceu sobressaltado o século XIX, em Portugal. Logo nos finais da primeira década, três invasões debastaram-no, semeando mortes, pilhagens, medos, e levaram a Corte a fugir para o Brasil. Porém, finda a ameaça francesa (batalha do Buçaco -1810), nem o Rei regressou à Metrópole, nem os ingleses, nossos aliados, se foram embora, nem os ideais da “revolução francesa” desapareceram. D. João VI, no Brasil, continuou a favorecer essa colónia com consequências nefastas para a economia portuguesa. Os ingleses dominavam os sectores mais importantes da sociedade, depauperando o país já empobrecido. Os portugueses não sabiam a quem mais detestar, se aos franceses que os invadiram mas foram embora, se aos ingleses que vieram para os ajudar mas ficaram e os oprimiam. Com amigos assim… O professor José Hermano Saraiva, na sua “Breve História de Portugal”, carateriza assim o ambiente que, então, se vivia. “Em Portugal havia um descontentamento profundo. A miséria geral, a ruína dos comerciantes, a impaciência dos militares que viam os melhores comandos nas mãos dos oficiais ingleses, a ideologia de pequenos grupos, impregnados das teorias liberais, foram os quatro factores decisivos que levaram à preparação de uma revolta militar que, em 24 de Agosto de 1820, eclodiu no Porto”. O terreno estava preparado. Apenas era preciso alguém que lançasse a semente. Fê-lo o Sinédrio, uma sociedade secreta que, na zona da Foz, reunia burgueses, militares e intelectuais, com destaque para Fernandes Tomás e Ferreira Borges. E a revolução iniciou-se na madrugada desse dia glorioso – faz amanhã um mês que passou o 2º centenário - no Campo de Santo Ovídio, hoje Praça de República, onde o coronel Sebastião Cabreira apelou a uma revolução guiada pelo “bom senso e pela justiça”: “Soldados! Uma só vontade nos una. Caminhemos à salvação da Pátria. Não há males que Portugal não sofra. É necessária uma mudança, mas esta mudança deve guiar-se pelo bom senso e pela justiça, não pela desordem. Criemos um Governo Provisório em quem confiemos. Ele chame as Cortes, que representem a vontade da Nação e elas preparem uma Constituição que assegure os nossos direitos. Viva o nosso bom Rei! Vivam as Cortes e por elas a Constituição!” “Triunfante, este movimento militar não encontrou qualquer resistência, alastrando por todo o País, sendo festejado como a «restauração da pública felicidade.» (Fátima Silva, A Grande Viagem)”. Logo nessa manhã, no edifício da Câmara Municipal, formou-se a “Junta Provisional do Governo Supremo do Reino” que assumiu o Poder. As Cortes Constituintes, eleitas em 1820, elaboraram a primeira Constituição Portuguesa, jurada por D. João VI, em 1822. Começa por dizer: “A Constituição (…) tem por objecto manter a liberdade, a segurança e a propriedade de todos os portugueses”(Artigo nº 1). Para, no artigo nº 29, afirmar: “O Governo da Nação Portuguesa é a Monarquia Constitucional hereditária, com leis fundamentais que regulam o exercício dos três poderes políticos. E, no artigo 30, esclarece: “Estes poderes são: legislativo, executivo e judicial” A Monarquia Constitucional, com a “repartição tripartida dos poderes” substituiu a Monarquia Absoluta onde o Rei detinha todos os poderes. É uma honra para o Porto ter estado nas origens do Sistema Constitucional Português. (23/9/2020)

quarta-feira, setembro 16, 2020

COUTO DE LURIZ - UM SENHORIO DO BISPO DO PORTO

Quando visitei “Ponte Ferreira” em Campo, Valongo, um amigo perguntou-me a razão de ali existir a «Casa da Portagem». Uma placa informa que aí “no final do século XVIII se cobravam impostos sobre o pão e o trigo. Os dinheiros eram destinados ao cofre das obras de construção da nova igreja matriz de Valongo”. Bem antes da célebre batalha do Cerco do Porto (23/7/1832) que recebeu nome deste local. De facto, em «A Villa de Vallongo» (1904) do P. Joaquim Reis, consta que a igreja “ foi alevantada à custa do rendimento de um tributo de cinco reis sobre cada antigo alqueire de trigo importado na villa para manipulação ou consumo, e de um real em cada quartilho de vinho e azeite ou arrátel de carne que tivesse o mesmo destino”. Mas não diz onde nem como se cobrava. E a pergunta fica: - Porquê neste local que pertencia a outra freguesia e ficava tão longe da “Vila”? O concelho de Valongo, ainda não existia, pois foi criado por D. Pedro IV (28/11/1836). Foi então que me lembrei da Torre de Ucanha onde se cobrava portagem aos almocreves que entravam no «Couto de Salzedas». Na Idade Média, os reis doavam terras aos “Senhores». Esta a origem do «Dom» («dominus» , «senhor») com que se continua a trata reis, nobres e bispos. Escorrências do passado… Estas terras (senhorios), se pertenciam ao Clero, eram «Coutos», se à Nobreza, «Honras». Havia ainda os «Reguengos» que eram as terras do Rei. Os Senhores não pagavam impostos; aplicavam a justiça; eram donos dos terrenos e suas pertenças. As mercadorias pagavam portagem. Ainda hoje perduram toponímias que recordam esses tempos como Reguenga, Sta Cristina do Couto, Honra de Barbosa. A expressão popular «aquederrei!» é um pedido de socorro que lembra o grito dos condenados quando conseguiam fugir do «senhorio»: “Aqui d’El Rei”. A medieval «ponte de Ferreira» dava entrada num couto. Qual? O «Inquérito Arqueológico da Diocese do Porto», de 1957, diz: “Por concessão especial de D. Afonso Henriques, em 1140, ao Bispo do Porto D. Pedro de Rabaldes, (foi bispo do Porto entre 1136 e 1145, sucedendo a D. João Peculiar e precedendo D. Pedro de Pitões), existiu nesta freguesia de Campo, Valongo, o «Couto de Luriz». Tinha tribunal, juízes ordinários, procuradores e jurados próprios. Consta historicamente que, em 1651, deu uma sentença contra os moleiros de Ponte Ferreira a pedido de Rodrigo Peres, então Abade de São Martinho de Campo de Luriz. Segundo a tradição local, foi aqui, na «Cortinha do Porto», que nasceu a Rainha Santa Mafalda”. Na «Ponte do Morte» bem perto do tribunal, passava a antiga estrada Porto - Penafiel. Sobrevivência desse couto e suas origens, era o «imposto da Mitra» – um foro - que os proprietários dos terrenos ainda pagavam, antes do «25 de Abril de 1974». Assim, a «Casa da Portagem» seria reminiscência duma prática medieval que teria perdurado no tempo. Fica a hipótese. (16/9/2020)

domingo, setembro 13, 2020

HUMANISTA E HOMEM DE CULTURA

No passado dia três, fez 15 anos que faleceu o arquiteto Fernando Távora. Professor durante 50 anos na Escola de Arquitetura do Porto, a ele “ se deve grande parte das transformações que levaram a escola a ser uma das mais importantes do país, onde se formaram, por exemplo, Siza Vieira e Souto Moura” (Público – 18 de Outubro de 2006). Para além desta vertente cultural, foi também homem empenhado em causas sociais junto de comunidades carenciadas. Não esgotou a sua atividade como arquiteto, professor, homem de cultura. O seu humanismo transbordou pelas comunidades mais pobres do Porto como o Barredo e os Bairros Sociais. Era um homem de bem, de riso contagiante, de emoção à flor da pele, de humor desconcertante e afabilidade encantadora. Quando, em 1969, D. António Ferreira Gomes, regressou do seu exílio político, já Fernando Távora se afirmara “homem de cultura” como arquiteto prestigiado, diretor da Escola de Belas Artes do Porto e “homem do povo e com o povo” no Centro Social do Barredo. Por isso, temia que “o arquiteto” não pudesse aceitar o seu convite para a Direção da Obra Diocesana de Promoção Social. No entanto, encarregou o sacerdote responsável pela Obra de o abordar. Mais tarde, num jantar que D. António ofereceu aos elementos da Direção, na Casa Episcopal, o Arquiteto Távora, com aquele ar descontraído e divertido que todos lhe admirávamos, perguntou: - O Senhor D. António sabe por que é que eu aceitei pertencer à Obra? Perante o ar interrogativo de todos os presentes, respondeu: - Deve-se a esse homem que se senta ao seu lado. E contou: - “Quando, certo dia, recebi um telefonema de um sacerdote, que se apresentava como representante do D. António, a pedir-me uma audiência, interroguei-me: que me quererá o Senhor Bispo? Se for para me pedir mais alguma colaboração, vou dizer que não e ele compreenderá que o Barredo já me chega. No dia marcado, vesti-me com maior cuidado e dispus-me a receber com a maior dignidade possível tão ilustre representante. Imaginei um sacerdote de idade, vestido de preto e de chapéu alto. Qual não foi o meu espanto quando vejo entrar um jovem, todo descontraído, sem cabeção e com capacete de ciclista no braço. Logo pensei: “ A este gajo eu não posso dizer não”. Até D. António se riu… Nessa época, o Diretor dos Serviços de Habitação da Câmara do Porto era o Engenheiro D. Luís de Távora com quem nem sempre as relações da Obra foram fáceis. Quando, nas reuniões semanais a que nunca faltava, os colegas de direção lhe diziam, em tom de brincadeira, “ Aqui o Arquiteto é que podia resolver a situação, falava com o primo Engenheiro e tudo se resolvia”, ele logo atalhava: - ”Não, não somos primos e eu não tenho títulos. O único brasão que possuo é o do meu trabalho”. A sua última lição como professor da Faculdade de Arquitetura foi pronunciada no salão nobre da reitoria da Universidade do Porto. Estava repleto. Foi brilhante. Mais uma vez, soube aliar a competência científica ao sentido de humor numa visão humanista da arte. ( 9/9/2020)