O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, dezembro 15, 2021

A CAUDA DA DESIGUALDADE

No dia 17 de outubro, na apresentação da obra póstuma “Que Fizeste do teu Irmão – Um olhar de fé sobre a pobreza no mundo”, o Presidente da República atribuiu ao seu autor, Alfredo Bruto da Costa, a ‘Ordem da Liberdade’ porque, disse, “uma forma de viver a profecia é viver a libertação da pobreza e Bruto da Costa transformou isso no desígnio da sua vida” Algumas perguntas: - Quem foi este cidadão português que mereceu tão alta distinção? No dizer do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, foi “um profeta que pensava com rigor científico e agia”; que “não dissociava a ciência e a fé”. Tolentino Mendonça afirmou que ele “sabia bem que, quando escolheu o combate à pobreza como a causa da sua vida, tinha do seu lado a grande tradição da Igreja, a começar pelos Evangelhos, os Padres da Igreja os Concílios e os magistérios dos papas”. A sua resposta: “Sou um cristão comum, que, como os demais cristãos comuns, vive no meio do mundo. Sempre tive uma profissão em moldes idênticos aos de qualquer outro cidadão. Cursei engenharia, tenho trabalhado em assuntos económicos e sociais, tenho exercido alguma docência universitária e investigado sobretudo em domínios relacionados com a pobreza. Como disse, ganhei algum conhecimento da pobreza, na perspectiva das ciências sociais. Porém, nos domínios da teologia, dos estudos bíblicos ou da pastoral, tenho sido um simples curioso (talvez um pouco mais do que isso) e o pouco que sei resulta de um estudo disperso e autodidáctico”. - Porquê este livro? Ouçamos a sua explicação: ”Este é um livro diferente. Contém, fundamentalmente, uma reflexão ética e, mais particularmente, uma tentativa de confrontar a pobreza no mundo com as exigências da fé cristã”. Mais adiante, acrescenta: “Possivelmente, o núcleo central da motivação para registar e publicar estas reflexões estará num certo desfasamento, porventura, apenas aparente, que verifico entre o que me parece ser, por um lado, o lugar da pobreza (nos seus diversos significados) na mensagem evangélica e, por outro, o entendimento que a esse respeito parece ter a maior parte dos cristãos e até a pregação corrente nas comunidades cristãs. Refiro-me à pregação corrente. Quanto ao Magistério da Igreja, seria grosseiramente incorreto dizer o mesmo. Pelo contrário, como o leitor terá ensejo de verificar nas inúmeras citações que encontrará ao longo deste livro, de documentos do Magistério, sobretudo de Padres da Igreja, de Papas e do Concílio Vaticano II.” - Qual o cerne do seu pensamento? Detenho-me no subtítulo. ‘A cauda da desigualdade’: “No princípio dos anos noventa, deparei com um texto do sociólogo inglês Victor George em que o autor definia a pobreza como a cauda da desigualdade, perspetiva muito diferente das que surgiam na literatura. Nunca mais me esqueci da definição, mas só recentemente me apercebi das implicações que a definição poderia ter no modo de compreender a pobreza. (…) Com efeito, se a pobreza é a cauda da desigualdade, existirá enquanto exista a desigualdade.” (in 7Margens) Quão longo é o caminho a percorrer…Dar uma esmola é bem mais fácil que sentir e tratar o pobre como um igual… Refletir e ajudar a esbater esta chaga que deforma a face da Humanidade e ofusca a “boa nova anunciada aos pobres (cf. Mt, 11, 5) será um modo bem evangélico de celebrar o Natal de Jesus. (15/12/2021)

terça-feira, dezembro 07, 2021

VIVÊNCIAS DE INFÂNCIA...

Associando-me às celebrações do centenário de José Saramago, faço-me eco das palavras iniciais do discurso que - fez ontem 23 anos - pronunciou ao receber o ‘Prémio Nobel da Literatura’. - Contrastes: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia, Azinhaga de seu nome. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro.” - Os seus trabalhos de infância: “Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que acionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado.” - O avô – “E algumas vezes, em noites quentes de verão, depois da ceia, meu avô me disse: «José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira». Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa.” - A avó: “Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: «Não faças caso, em sonhos não há firmeza». Foi só muitos anos depois que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer.» Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada.” Felizes, os que creem… Não, a Fé não ‘é uma ilusão’ (Freud) nem ‘o ópio do povo’ (Marx). Mas, sim, a adesão a uma Pessoa – Jesus - raiz da fraternidade universal e do sentido mais pleno da vida. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6) Este texto encantou-me pela elegância de estilo e ternura de sentimentos. E pela modéstia de um ‘Prémio Nobel’ que, na hora da consagração, não renega mas exalta a humildade das suas raízes e dá nome à sua remota aldeia ribatejana. O meu agradecimento ao único “Nobel da Literatura” que muito honra os falantes que, com Fernando Pessoa, podem dizer: “Minha Pátria é a língua portuguesa”. (8/12/2021)

quarta-feira, dezembro 01, 2021

IN MEMORIAM...

Era o dia 4 de dezembro de 1980. A notícia caiu, abrupta e inquietante: “O Dr. Sá Carneiro morreu num desastre de avião”. Ainda ressoava nos meus ouvidos a sua gargalhada quando, em 5 de julho, meu filho João, de 3 anos, lhe perguntou: “Ontem, vi-o dentro da minha televisão. Como é que saiu de lá para fora?” Conheci-o quando, em nome de D. António, o convidei para a direção que geriu a Obra Diocesana de Promoção Social a partir de 1971. Faz 50 anos. Já então liderava a “Ala Liberal” da Assembleia Nacional. Ficaram famosas as suas diatribes com a ala mais conservadora da Assembleia. Deram brado os seus projetos de lei, nomeadamente sobre ‘Revisão da Constituição’, ‘Lei de Imprensa’, ‘Liberdade de Associação’, ‘Liberdade de Reunião’, ‘Alteração ao Código Civil’, ‘Organização Judiciária’. Todos foram retirados de discussão. Mas foi o último, sobre a ‘Amnistia de crimes políticos’ que apressou a sua “declaração de renúncia “ em 25 de janeiro de 1973. Nele defendia: “São amnistiados os crimes políticos e as infracções disciplinares da mesma natureza” (art. I); “Os amnistiados serão reintegrados nos seus cargos, se assim o requererem.” (art. II) Na apresentação da renúncia, começou por aludir à sua ‘declaração prévia’: “Quando, em 1969, aceitei a candidatura a Deputado logo dei conhecimento das condições dessa aceitação: a de que ela não implicava o compromisso de apoiar o Governo e tinha essencialmente como fim pugnar pelas reformas políticas, sociais e económicas assegurando ‘o exercício efectivo dos direitos e liberdades fundamentais expressos na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos do Homem’. (…) E terminou: “A sistemática ‘declaração de inconveniência’ atribuída aos meus projectos, levam-me a concluir à evidência não poder continuar no desempenho do meu mandato sem quebra da minha dignidade, por inexistência do mínimo de condições de actuação política livre e útil que reputo essencial. Assim, renuncio ao mandato de deputado.” (in Sá Carneiro e outros, Vale a Pena Ser Deputado - Dezembro de 1973). Deixo-vos com o elogio que Pinto Machado, ilustre professor da Faculdade de Medicina do Porto, proferiu na Assembleia, após a sua renúncia: ”Sá Carneiro, vivendo tremendamente a sério o seu mandato, produziu notável acção parlamentar, sempre com impecável correcção e respeito. (…) Intrépido e claro nas intervenções, directo e objectivo nas explicações, preciso e cortês nas interpelações, afável no convívio informal, com facilidade invulgar de resposta pronta e certeira – muitas vezes temperada de saboroso humor – sempre leal.” (…) Foi integralmente fiel ao seu compromisso público de aqui defender princípios que considerava indispensáveis a uma vida política normal, por se ligarem aos mais altos valores da dignidade humana”. (in Sá Carneiro e outros, Ser ou não Ser Deputado- Abril de 1973) Ao evocar a ação de Sá Carneiro pré-’25 de Abril’, desejo ainda: -relevar os deputados do Porto, José da Silva, Joaquim Macedo e Pinto Machado que também subscreveram a ‘declaração prévia’; -manifestar gratidão a Maria Elisa Barbosa, Silva Ramos, Silva Carneiro e Fernando Távora que, com ele, partilharam a direção da Obra Diocesana; -prestar homenagem a D. António que inspirou e congregou à sua volta uma plêiade de cristãos ilustres. “Ninguém é de ninguém”, como canta João Pedro Pais… (1/12/2021)