O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Senhora das Candeias

Aconteceu na igreja de S. Lourenço, durante o III concerto do ciclo SweelinK. O ecrã onde se via o organista foi colocado no sopé do altar da Sr.ª da Purificação. Meus olhos começaram por esquadrinhar os pormenores daquela jóia da talha dourada até se fixarem no rosto da Senhora. O enlevo da música e a beleza da imagem fizeram-me saltar para o mundo da fantasia. Imaginei-me nos finais da década de cinquenta. Parecia-me ouvir ainda a voz grave e pausada de D. Domingos de Pinho Brandão a falar-nos da raridade arquitetónica daquela igreja e a enfatizar a riqueza do retábulo da Senhora da Purificação. Era com brilho nos olhos e solenidade na voz que nos fazia admirar a delicadeza do pregueado do manto, a serenidade da Virgem e a ternura do Menino. Vem de longe a devoção do Porto à Senhora das Candeias. D. João I celebrou o casamento com D. Filipa de Lencastre, no dia da sua festa litúrgica, em 2 de fevereiro de 1387, na Sé da nossa cidade a que concedeu o título de “leal cidade”. Foi a origem da ínclita geração que deu “novos mundos ao Mundo”. Conta-nos Fernão Lopes “ E foram as gentes da cidade juntas em desvairados bandos de jogos e danças para todas as partes e praças, com muitos trabalhos e prazeres que faziam. As principais ruas por onde a festa havia de ser, todas eram semeadas de desvairadas verduras e cheiros”. Deixo-vos com algumas perguntas: - que conheço do Porto, eleito como o “melhor destino europeu de 2012”? Já vi o arco de Santana que deu título ao romance de Almeida Garret? Já passei na rua de D. Hugo que recebeu de D. Teresa o “couto do Porto”? Conheço a “cruz do Souto”, o maior nó rodoviário do Porto medieval? Que igrejas conheço? Já admirei o barroco de Santa Clara? A renascença da capela dos Alfaiates? O romano-gótico da Sé? Que conheço da história do Porto que nasceu como “cale” - origem remota da Galiza - e, no tempo dos romanos, passou a “portucale” – donde veio o nome Portugal? Aproveitem o verão para conhecer este “património da humanidade”, calcorreando as suas ruas e estudando a sua história. Entrem nas igrejas, admirem o altar da Sr.ª da Purificação e visitem o museu de arte sacra do Seminário Maior. Será justa e merecida homenagem ao seu fundador, D. Domingos de Pinho Brandão, ilustre arouquense, arqueólogo e figura insigne do clero do Porto, que, antes de ser bispo, foi reitor desse Seminário e professor da Universidade do Porto. No que à Sé diz respeito, a visita poderá ficar para 2 de fevereiro. E, passados 626 anos (até é capicua), a Catedral voltará a ficar cheia, não já de altos dignitários do Reino, mas de pessoas interessadas pela sua história. São meras sugestões.

Como um rio...

Ela doou-lhe um rim por amor. Para lá de uma bela história de amor sem nada a destacar além desse amor. “Porque gosto dele” É a verdade insofismável que deita por terra qualquer interrogação. Albertina tinha dois rins. (…) Amam-se como quem ama 35 anos e uma filha depois, qual era a dúvida? Nenhuma. Hoje, além de ter Albertina no coração, tem-na dentro dele, a dar-lhe vida. “Estou feliz…”, diz ela” (JN, 12/06/12) Ao realçar este exemplar gesto de amor quero homenagear o heroísmo silencioso de muitos casais que enaltece a beleza do amor conjugal. Como são fortes as horas de sofrimento partilhado!... Como um rio vai engrossando com as águas que vai recebendo, assim o amor do casal se vai enriquecendo ao longo da vida com filhos e amigos, triunfos e fracassos, dores e alegrias, quais “afluentes do silêncio”que nos vão moldando as margens. Quando ao alpinista João Garcia, depois de ter chegado ao cimo das mais altas montanhas da Terra, lhe foi perguntado se já nada mais tinha para subir, respondeu – “Tenho de subir as montanhas da vida”. O amor é essa conquista de cada dia. E, nesta escalada, é bom sentar, de vez em quando, para, em conjunto, admirar o caminho percorrido e ganhar forças para continuar. O casamento é, ainda, uma maratona com muitos obstáculos que é preciso vencer com elegância. Não é a paixão mas o amor apaixonado que alegra e fortalece o matrimónio. É como uma árvore que, quanto mais fundas as raízes, mais se agarra à terra e não há tempestade que a derrube. Os ramos que dão sombra e frutificam são os frutos da fecundidade do casal. O casamento, como sacramento do amor, é a escada de Jacob que nos eleva até Deus. “ Via uma escada. (…) No alto estava o Senhor”. (Gn 28, 12) Em síntese, podemos dizer que o amor conjugal se alimenta e expressa: - na Solidariedade - nos momentos mais difíceis mas também nos atos mais comezinhos da vida, como quando um quer ver telenovela e outro um jogo de futebol… Saber abdicar sem teimosias nem subserviências, mas por assumidas cumplicidades é próprio de quem ama. - no Companheirismo – Como é bom ter com quem possamos partilhar entusiasmos e desilusões. Alguém que vai a meu lado, não por sacrifício mas por carinho e disponível para me ouvir, sem recriminações ou paternalismos. - no Agradecimento – Quem ama estima, cuida, acarinha, elogia e agradece. Somos fartos em queixumes e parcos em elogios. Sabemos exigir mas esquecemo-nos de agradecer. Somos fáceis em maldizer mas escassos em louvar. É bem verdade que as telhas encobrem muita coisa… Deixo-vos com a poesia de Carlos Tê que Rui Veloso canta: “Mas tu não ficaste, nem meia hora. Não fizeste um esforço para gostar e foste embora. Contigo aprendi uma grande lição. Não se ama alguém que não houve a mesma canção”.

Cancro, vidas em reconstrução

Em 29 de setembro, o auditório do IPO encheu-se de gente que, de qualquer jeito, já empreendera “ uma viagem pelo mundo do cancro”. E, como disse a jornalista Maria Elisa que apresentou a obra que dá título a este texto, “ ninguém emerge igual de tal viagem”. O livro mostra, no dizer das autoras - quatro psicólogas do Porto que, há muito, acompanham doentes oncológicos - que esta doença “se por um lado tem um rosto de sofrimento e de incapacidade, por outro, também pode assumir um rosto de crescimento e de serenidade construídos com base numa nova descoberta de si e da vida, que permite transcender a dor e transcendermo-nos a nós próprios”. Pede uma leitura ajoelhada que convida a rezar e a acolher a Deus nos dinamismos profundos da realidade. São retalhos de vida onde abunda a dor e superabunda a esperança… “Tu, com a transmissão da fé, consegues sempre tranquilizar-me”. “ O medo de não ser aceite devido às minhas diferenças, o medo de que o meu marido deixe de gostar de mim, o medo de voltar a ficar doente”. “Deste meu tempo de doença, que dizer? Considero-o um tempo precioso. Uma dádiva da vida. Andava num frenesim … de repente o tempo mudou. Veio o tempo para ter tempo”. “Sei que os meus pais sabem que eu não estou bem… Vejo neles uma enorme vontade de me ajudarem a ultrapassar estes dias, mas também vejo neles frustração por sentirem que não me conseguem ajudar quanto gostariam. Estou a chorar… Não sei porquê mas emociono-me sempre que penso sobre os meus pais. São um exemplo de força para mim, mesmo quando vacilam…” “Também me senti envergonhada porque as pessoas associam os doentes de cancro a coitadinhos sem cabelo. Não queria que ninguém conhecido me visse. Agora também me irrita quando ouço as pessoas a queixarem-se ou chorar por coisas com pouca significância”. “-Eu nasci para ser eterno? – Sim, assim o cremos. – Então está bem. Obrigado”. “Estou feliz. É possível ser feliz com a doença. Ela enriqueceu-me, torna-me numa melhor pessoa, abre-me horizontes… faz-me viver”. “Nunca te ouvimos uma palavra de revolta, um queixume. Quando estavas internado, sempre procuraste evitar dar trabalho aos que de ti cuidavam. E dizias obrigado, com um sorriso”. “Encontrou no humor uma arma contra a dor. Buscou na sua fé e espiritualidade algumas das respostas almejadas e doces apaziguamentos… Descobriu no Amor o mais profundo sentido da sua vida. Amou tanto e com tanta verdade… Amou o outro, Amou a vida, e… encontrou-se a si no seu verdadeiro Ser!” Cada testemunho origina uma análise minuciosa que levou Ramon Bayés, da Universidade de Barcelona, a escrever “El libro que tiene el lector entre manos, lo acercará a la realidade que supone o cáncer para el professional sanitario, el enfermo y su entorno afectivo”.

Os homens também choram

As Olimpíadas de Londres ainda se fazem ouvir. Os jornais continuam a falar da “lenda” Usain Bolt e do “mito” Michael Phelps. Decorrem, agora, os Jogos Paralímpicos. Para se ganhar, além das imprescindíveis aptidões dos atletas, é essencial uma aturada preparação que exige muito sacrifício como aconteceu com os nossos Emanuel Silva e Fernando Pimenta, a histórica dupla de canoagem, que, para conquistar a medalha de prata, treinam juntos, no mínimo, sete horas por dia, durante 200 dias por ano. Mas não só. As maiores potências desportivas têm agências dedicadas à recolha de informação que podem recorrer à espionagem e levar a avultados investimentos como aconteceu com os Estados Unidos que construíram, na Califórnia, uma réplica da pista do parque olímpico de Londres. Infelizmente, há meandros por onde se escapa muita da desejada verdade desportiva. Ao lema olímpico “Mais rápido, mais alto, mais forte” deveria acrescentar-se ”Mais humano”. Os jogos olímpicos, em honra Zeus, o deus supremo do Olimpo, nasceram sob o signo da concórdia e como fator de unidade dos povos helénicos. Eram os “Jogos da paz”. Durante a sua realização, os Estados gregos interrompiam as guerras. A coroa de louros era a suprema aspiração de cada atleta. Os vencedores, elevados à categoria de heróis, partilhavam com os deuses a honra de serem esculpidos no mármore. O equilíbrio dos movimentos e a harmonia dos seus corpos concretizavam o ideal clássico de beleza. Quem não se lembra da estátua do “discóbolo de Míron”? Mas, por mais idealizados que fossem, não deixavam de ser humanos nos seus limites e emoções. Nas últimas olimpíadas, os afetos ganharam foros de cidadania. As lágrimas humedeciam os olhos dos vencedores quando, no pódio, ouviam tocar o hino nacional e viam subir no mastro a bandeira do seu país. Mas a emoção atingiu o auge quando Félix Sánchez da República Dominicana, logo após conquistar o ouro nos 400 m barreiras, se ajoelhou no chão do estádio e beijou uma fotografia que trazia consigo. Soube-se depois que era a foto da sua avó Lillian. "Eu só queria que ela se sentisse orgulhosa de mim, por isso levo seu nome nas minhas sapatilhas. No dia em que morreu, eu estava em Pequim, e meu coração se partiu. Por isso, corro com sua foto perto do meu coração", afirmou. E foi com a avó no coração que ele chorou copiosamente no pódio durante a cerimónia de entrega da medalha de ouro. Todo o Estádio Olímpico o aplaudiu de pé. E muitos acompanhavam as palmas com lágrimas e gritos de entusiástica partilha. É bom vermos que os homens, mesmo os heróis, também choram… Saber que a gratidão ainda enfeita o coração humano. Como escreveu Lupe Gómez em Repensar a Teoloxia, Recuperar o Cristianismo, “se aprendes a chorar, tamén estás aprendendo a Amar”.

O Monte da Franqueira

No primeiro domingo deste mês, encontrei o Santuário da Franqueira cheio de gente que convivia e rezava. No monte, os horizontes alargam-se sobre o vale do Cávado e, em dias límpidos, alongam-se até ao Gerês. É delícia para os olhos e paz para o espírito. Ao ver a linha azul do “mar da Póvoa”que lhe debrua o poente, surpreendi-me a cantar: “Parte, parte, ó pescador/Vai à pesca da sardinha/Louvado seja o Senhor/Que guia a tua barquinha”. Vem de longe este sentido do sagrado. Atribui-se a Egas Moniz, aio de D. Afonso Henriques que aí também rezou, a fundação da capela dedicada a Nossa Senhora. Em 1908, graças ao Círculo Católico de Operários de Barcelos, passou a atrair grandes peregrinações. E a sua projeção muito se deve a D. António Barroso que, tendo presidido à primeira, se tornou peregrino assíduo desse santuário. A tal ponto que, anos mais tarde, “quando as pernas já não acompanhavam o ardor da sua fé, o Bispo do Porto, percorreu a peregrinação num carro de bois. No fim, humilde, D. António Barroso pediu desculpas pela forma como tinha subido ao Monte da Franqueira. Mas a sua grande devoção a Nossa Senhora levava-o a estar sempre presente nestes momentos intensos e nestes lugares festivos e sagrados do culto mariano” (António da Silva Costa - “Estudos sobre D. António Barroso volume I”) Mas subir à Franqueira é também mergulhar na nossa História e evocar memórias de infância quando o Alcaide de Faria nos era apresentado como um exemplo de amor pátrio. Conta-nos Alexandre Herculano que, durante o reinado de D. Fernando, Portugal foi invadido por Castela. Uma coluna castelhana entrou pelo Minho. Entre as forças defensoras, incluía-se um destacamento comandado pelo alcaide do Castelo de Faria, Nuno Gonçalves de Faria. Derrotadas a tropas portuguesas, o Alcaide foi capturado. Temendo que o filho, ao vê-lo prisioneiro, entregasse o castelo para o libertar, pediu ao comandante invasor que o levasse diante dos muros do seu castelo para solicitar a sua rendição. Chegado à vista do filho, em vez de o aconselhar a render-se, exigiu-lhe que, sob pena de maldição, defendesse o castelo até à morte. Por este ato heróico, foi assassinado diante do filho, mas o castelo resistiu. Vitorioso, o filho, tomou o hábito. O castelo entrou em ruína e parte das suas pedras foi utilizada para a construção do Convento da Franqueira que lhe fica próximo. Dentro de uma pequena citânia com duas linhas de muralhas, vê-se uma torre construída, em 1940, no local onde seria a torre de menagem do velho castelo.

Um amigo é um tesouro

“3 semanas morto em casa onde vivia sozinho.” (JN, 30/7/12) São muitas as notícias más que enchem os jornais. Mas notícias como esta doem de modo muito especial. Como foi possível? Não houve ninguém da família que desse pela sua ausência? E os vizinhos não se aperceberam? Vivemos em tempo de anonimato e de indiferença. É toda uma sociedade que é posta em causa. E mesmo as paróquias… Não será a “pastoral de vizinhança” uma das suas prioridades? Morre só e abandonado quem, certamente, teve família, vizinhos, amigos. E onde para toda esta gente? Mais ainda, onde estão os antigos colegas de trabalho com quem partilhou alegrias e sofrimentos? Queixamo-nos de que os patrões esquecem os trabalhadores quando estes se reformam. Mas os colegas não fazem o mesmo? “Longe da vista, longe do coração”, diz e com razão o povo. Reformou-se, marginalizou-se, esqueceu-se. E há pessoas cuja vida se resumiu a casa - trabalho; trabalho - casa. A única convivência que tinham era com os colegas de emprego. Quando se reformam, fecham-se em casa. Perdem rotinas e referências. E definham rapidamente na solidão. Numa sociedade em que quase só lhes resta o direito à mágoa e à indignação, os idosos não se podem deixar soçobrar no isolamento e no desânimo. A vida é dom de Deus. Tratá-la bem é sinal de respeito por Quem no-la oferece. E porque viver é conviver, não nos podemos fechar no nosso casulo. Neste sentido, gostaria de apresentar a iniciativa de um grupo de professores aposentados duma determinada escola. Tudo é simples. Nada de inscrições ou justificações. O coordenador organiza todos os meses uma atividade de enriquecimento cultural e convívio e envia o convite para os endereços dos colegas do seu, sempre atualizado, banco de dados. Aparecem os que podem e querem. Quem falta não tem de se justificar. A liberdade é total. O encontro é aberto aos cônjuges. A reportagem fotográfica do acontecimento é depois mandada a todos, até aos que não participaram. Não são encontros nem de “bota abaixo” nem de nostalgia do tipo “no meu tempo é que era bom”. Vive-se o presente. E, do passado, só interessam as boas memórias. Sem lamentações. Mantêm vivo aquilo que a reforma não retira: a amizade que se foi criando ao longo de anos de trabalho conjunto. Desenferruja-se a língua e a mente. Desabafam-se mágoas e revoltas. Partilham-se ideias e esperanças. Como isto faz bem!... O verão está a findar. A vida retoma o seu curso normal. Pesadelos não faltam, infelizmente. Se temos um amigo com quem não contactamos há já algum tempo, façamos um telefonema e, se possível, marquemos um encontro para avivar amizades. E por que não organizar convívios com antigos colegas de trabalho? “Um amigo fiel é um remédio de vida e imortalidade” (Ecli,6,16).

Senhora da Orada II

A primitiva capela da Orada, em Albufeira, de que se conserva a imagem da Senhora, foi construída no século XV. Este local, no extremo sul do Algarve, foi escolhido por estar em linha reta com a capela da Senhora da Orada em Melgaço, no extremo norte de Portugal e assinalava o comprimento máximo do território português. De forma implícita, antecipava a consagração de Portugal a Nª Senhora feita, séculos mais tarde, por D. João IV. O culto à Senhora da Orada, vindo de França, encheu o Minho, com os montes a povoarem-se de ermidas em sua honra. (Ainda em Agosto passado, houve grande romaria no monte da Orada, em Cabeceiras de Basto.) A capela de Melgaço, é uma igreja castiçamente românica, coeva da fundação da nacionalidade portuguesa, como diz Sant’Anna Dionísio. A fundação de Portugal foi lenta. Se a presúria do Porto aconteceu em 868 e a conquista de Lisboa em 1147, o Algarve só foi conquistado em 1249. Para chegar do Porto a Faro foram precisos quase quatrocentos anos. Foi uma guerra de vai-e-vem, com avanços e recuos. E as populações, que viam as searas devastadas e as casas pilhadas, iam fugindo dessas terras. As gentes do norte, que, depois, as foram repovoar, levaram consigo os seus usos e costumes, a religião cristã e a língua galaico-portuguesa. Com eles, o culto à Senhora da Orada foi-se expandindo pelas Beiras e Alentejo. No século XIV, recebeu o apoio de São Nuno de Santa Maria que esteve na origem do Convento da Orada em Monsaraz, ofereceu a imagem da Senhora ao convento de Avis e estendeu a sua devoção ao Algarve. Enquanto a religião e a língua iam moldando a alma portuguesa e o povo ia construindo a sua Pátria, Portugal nascia como Estado. Foi no Tratado de Zamora em 1143 mas a sua independência só foi reconhecida internacionalmente em 1179 pela Bula do Papa Alexandre III e as fronteiras, as mais antigas da Europa, foram definidas em Alcanizes no ano de 1297. Neste tratado, D. Dinis, para receber a Comarca de Ribacoa, teve de ceder a Castela vários castelos entre as quais o de Penafiel na margem esquerda do rio Erges, na Beira Baixa. Quando, há tempos, fui visitar esse castelo, umas senhoras de Salvaterra do Extremo, a povoação beirã que lhe fica próxima, disseram-me, muito zangadas, “o castelo é nosso, o rei não tinha nada que dar o que não era dele, Portugal vai até lá longe”e apontavam para um monte distante onde ficava a Cruz de Portugal que assinalaria o termo da terra portuguesa. E já lá vão mais de 700 anos… A Pátria é do Povo. Nem tudo é património do Estado… Assim, Portugal é Nação, Pátria e Estado. Tem por matriz as culturas judaico-cristã e greco-romana e enriqueceu-se com outras gentes. Em tempos de crise, é bom revisitar, por “entre as brumas da memória”, as raízes da nossa identidade.

Senhora da Orada I

A participação, em 15 de Agosto, na festa da Senhora da Orada em Albufeira, levou-me a refletir sobre três conceitos que se implicam mas não se equivalem: Pátria, Nação e Estado. Pátria é o território que um povo considera como a sua terra, onde tem as suas raízes e se sente em casa. A Pátria é como que uma extensão do útero materno, o lugar do nosso aconchego, do perfeito equilíbrio ambiental, e ao qual, segundo Freud, todos desejaríamos regressar em busca de paz e tranquilidade. É este sentimento de segurança e de pertença mútua que nos vincula à Pátria. Não é por acaso que muitos emigrantes constroem nela as suas casas e aí desejam ter o sua “última morada”. Há dias, ao visitar a sinagoga de Castelo de Vide, admirei um poema de Sofia de Mello Breyner “Quando a pátria que temos não temos/Perdida por silêncio ou por renúncia/Até a voz do mar se torna exílio/E a luz que nos rodeia é como grades”. Longe da Pátria, domina a saudade que é um misto de angústia pela ausência e de esperança no retorno. Disse Leonardo Coimbra “A Saudade é a lembrança da Pátria como desejo de regresso”. A Nação é um povo com identidade cultural de tradições, língua, crenças, valores, história e com um sistema padronizado de comportamentos. Embora a Nação tenha um território matricial, não se esgota nele. A nossa está onde estiver a “alma portuguesa” e acompanha os milhões de portugueses da diáspora. É nobre o sentimento nacional e essencial para a preservação de um povo, mas está sujeito a aproveitamentos que podem levar ao chauvinismo, à xenofobia ou mesmo ao racismo. Sabemos como, no “Estado Novo”, a Nação assumia o papel de mediadora para esbater todos os conflitos de tal forma que discordar do Governo era crime de lesa-pátria: “A bem da Nação”; ”Orgulhosamente sós”. O Estado é, idealmente, a Nação politicamente organizada. Enquanto nesta são os laços culturais que unificam, naquele o que vincula os seus membros é o poder. Os Estados precisam de fronteiras bem definidas para saber quem manda e quem obedece a quem. Quando estamos em Tourém, sabemos onde está a fronteira que separa Portugal e Espanha mas não é claro onde acaba a Nação portuguesa e começa a galega. A Nação é a base ideal do Estado mas tal nem sempre acontece. Há Estados que incluem várias Nações, como Espanha, e Nações divididas em vários Estados como Coreia do Norte e Coreia do Sul. E há ainda Nações sem Estado, como o Curdistão que se estende por seis Estados diferentes. Para já não falar do caso de África onde as antigas potências coloniais traçaram as fronteiras a régua e esquadro… Qual a nossa situação? E que tem a Senhora da Orada a ver com este arrazoado? Deixo a resposta para a próxima semana.

O Museu do Fresco

Em agosto, a revista “Visão” fez uma grande reportagem sobre o “acervo histórico e monumental português”. E concluía “de norte a sul, há muitas jóias, ocultas ou ainda sem atenção devida, à espera de serem descobertas”. Destas, quero destacar uma colina que se levanta no meio da planura alentejana, coroada por muralhas medievais que abrigam um magnífico conjunto histórico e artístico. Quando subimos ao castelo de Monsaraz, ficamos deslumbrados pela paisagem, onde o azul do Alqueva contrasta com o verde e o doirado das margens. O horizonte é circular. De noite, a abóbada celeste faz-se próxima e quase nos apetece saltar para tocar as estrelas. Percorrer, em silêncio quase religioso, as ruas deste “Museu Aberto”, onde abundam casas góticas, é um peregrinar pela memória de um povo que foi “couto de homiziados”. Por entre o casario, sobressaem as igrejas da Senhora da Lagoa, da Misericórdia, de Santiago, os Paços da Audiência, a Casa da Inquisição. Para celebrar os quinhentos anos do foral, dado por D. Manuel em 1512, foi inaugurado, este ano, o “Museu do Fresco” cujo nome deriva da surpreendente pintura que cobre uma das suas paredes. Exemplar único em Portugal, só por si merece uma subida a Monsaraz. No século XV, a Sala do Tribunal foi decorada com este fresco que, durante séculos, esteve tapado por um tabique de tijolo. Representa uma clara alegoria à justiça e à corrupção. O quadro está dividido em duas partes. Na parte cimeira, surge a justiça divina com Cristo assente no globo terrestre com a inscrição UROPA e ladeado por dois profetas que exibem o ALFA e o ÓMEGA. No painel inferior, à direita de Cristo, numa alusão ao “vinde benditos de meu Pai” (Mt 25,34), senta-se o bom juiz que, com “dignidade e expressão solene” segura a vara da justiça. Do lado esquerdo -“retirai-vos de mim, malditos!” - está o mau juiz, com a vara partida. O que mais surpreende nesta figura é a sua dupla face, a fazer lembrar uma vinheta de banda desenhada: enquanto a face da esquerda atende um queixoso, a da direita vira-se para alguém que, a seu lado, lhe oferece uma bolsa de dinheiro. A perversão é simbolizada pela cabeça do demónio que espreita por detrás do ombro direito do juiz. É de admirar esta corajosa forma de representar a corrupção da justiça humana. E pensar eu que este fresco decorava, em tempos ditos obscurantistas, a sala de audiências do tribunal, mesmo em frente da cadeira do juiz… Mas, porque incomodava, foi entaipado, e assim ficou durante séculos… E, hoje, não seria visto como um atentado a um órgão de soberania? Quem teria coragem para o fazer? Como este fresco faria jeito em tantos gabinetes e repartições públicas… Já diziam os velhos latinos “Nihil novi sub sole” – “nada de novo debaixo do céu” …

A delicadeza surpreendente de um gesto

Há uns tempos atrás, teria o meu neto uns treze meses, tive, por motivos familiares, de o levar comigo à Missa. Apesar do esforço para o entreter e manter calado, ele, de vez em quando, entusiasmado com as luzes dos altares, dizia;”xaxux”e apontava para uma imagem que lhe ficava próxima. No final, fui à sacristia pedir desculpa ao celebrante pela possível perturbação. O pároco, com a simpatia que lhe conhecemos, respondeu: “pelo contrário, agora é tão raro ouvir um bebé na igreja que até me soube muito bem”. E a sorrir, perguntou: “onde está o meu concorrente?” E foi com muita ternura que lhe deu um beijo e colocou a mão sobre a sua cabeça num gesto de bênção que emocionou os avós e os pais agradeceram. Esta atitude carinhosa fez-me lembrar um episódio que, há anos, vivi em Genebra, numa eucaristia dominical em que participei. Ao entrar na igreja, fiquei admirado por ver que muitos adultos se faziam acompanhar de crianças de tenra idade. No momento da comunhão, os casais, com os filhos/netos pela mão, aproximavam-se do altar. Reparei que as criancitas, que ainda não comungavam, regressavam com um sorriso no rosto e olhavam com alegria para a mãe/ avó. Fiquei surpreendido com este comportamento, porque as crianças, que acompanham os adultos e não comungam, costumam regressar de semblante triste e desconsolado. Ao abeirar-me do altar, encontrei a explicação para aquele ar feliz. Vi que o sacerdote, depois de dar a comunhão aos adultos, fazia o sinal da cruz na fronte e uma leve carícia no rosto da criança que a esperava e recebia como se fosse um rebuçado. Não sei o que pensarão os liturgistas, mas eu fiquei encantado com a ternura deste gesto. Como ele poderá ajudar os pais a falar aos filhos da “ importância do sinal da cruz na manifestação do ser cristão” e da bondade do Jesus que disse ”Deixai vir a mim as criancinhas”(Mt 19,14)… No final da missa, um casal explicou-me que a sua filhita de quatro anos, que os acompanhava, queria vir com eles à igreja só para receber aquela carícia e, durante a missa, aguardava, ansiosamente, o momento de os acompanhar ao altar. Que coisa bonita! Como ela facilita a vida aos pais. E quão reveladora é do Amor de Deus que ora se manifesta na meiguice duma carícia ora na dádiva de Seu Filho. Se, como diz um hino litúrgico, Deus se “regozija e prolonga nas pequenas mãos humanas as suas poderosas mãos criadoras”, quanto se alegrará ao acariciar aquelas crianças com as mãos que oferecem em alimento o Seu próprio Filho! E como nos encheria de alegria ver as igrejas cheias de crianças. É assim a grandeza dos pequenos gestos… A força criadora de quem ama e sabe ler os sinais dos tempos. É bem verdade que “Quem meus filhos beija minha boca adoça”.

Faz o bem e não olhes a quem

Para fazer memória enquanto o “Primeiro de Dezembro” ainda tem honras de feriado. Já lá vão uns anos, fui conhecer o Paço de Lanheses no vale do Lima. Recebeu-me o seu proprietário que se apresentou simplesmente como Luís. Agradeci e informei-o que buscava resposta para três perguntas: por que razão aquele solar tinha o título de paço? Como se explicava a presença dos Almadas em terras do Minho? Se a história do Zé do Telhado era verdadeira? Simpaticamente, começou por contar que, numa 6ª feira, o Zé do Telhado veio pedir à senhora condessa o seu diadema de brilhantes para sua filha levar no casamento e que o devolveria na 2ª feira seguinte. Os dias foram passando e quando a condessa já dava como perdida essa joia de família, o temido salteador veio entregá-la com um enigmático pedido de desculpa pela demora. Só depois é que a condessa reparou que ele tinha mandado colocar um brilhante que, há muito, faltava no diadema. Zé do Telhado também sabia agradecer… Esclareceu, ainda, que o título de paço foi atribuído ao solar por ter acolhido D. António, Prior do Crato, a caminho do exílio, depois de derrotado por Filipe de Espanha. Pode conhecer-se o percurso de D. António, seguindo os solares onde dormiu: Paço de Anha - Paço de Lanheses - Paço Vitorino - Paço Vedro. Disse também que os Almadas advêm de um lorde inglês que recebeu a Vila de Almada por ter ajudado Afonso Henriques a conquistar Lisboa aos Mouros e sua casa-mãe era em Lisboa. Foi por casamento que vieram para o Minho e o paço de Lanheses passou a ser dos Almadas. No ano seguinte, tive como aluna, no Porto, a sua filha R.. Quando soube desta inesperada coincidência, o pai veio falar comigo e, ao cumprimentar-me, disse com um sorriso: “Bem me ensinou minha mãe: faz o bem e não olhes a quem. Quando o recebi, quem poderia imaginar que iria ser professor da minha filha?” Achei interessante fazer esta evocação porque fala duplamente da causa da independência que o “ Primeiro de Dezembro” celebra. O solar acolheu D. António, Prior do Crato que foi aclamado rei pelo povo de Santarém em 1580 e, até 1583, reconhecido como tal nos Açores que se orgulham de ter vencido a armada espanhola, na célebre “Batalha da Salga”. Há historiadores que o consideram o último rei da dinastia de Avis e lamentam que a História oficial o silencie. Mais, foi na casa de D. Antão de Almada em Lisboa, hoje Palácio da Independência, que se planeou a revolução que restaurou a independência perdida, com o derrube da dinastia filipina e a aclamação de D. João IV como rei de Portugal, no dia 1 de dezembro de 1640. Na memória se radica e dela se alimenta a identidade das pessoas e dos povos. Mal vai um Estado, se não engrandece a sua História.

País de brandos costumes?

Ao ouvir um cd para crianças, duas letras me chamaram a atenção. Trata-se do muito popular “Sebastião come tudo, tudo, tudo (…) E depois dá pancada na mulher”. Este verso tem uma nova versão: “E depois dá beijinhos na mulher”. Alteração similar se encontra na canção “O mar enrola na areia”. O verso “ ai bate nela quando quer” é substituído por “pode vê-la quando quer”. “Mea culpa”. Quantas vezes, cantei aqueles versos sem qualquer abalo da consciência! Nem me apercebia das barbaridades que estava a dizer, tal a força da tradição. Quando me congratulava com esta benéfica mudança de mentalidades, fui abalado pela notícia do JN (23/11): “Violência doméstica já matou 30 mulheres só neste ano. (…) O número já é superior ao total do ano passado, mas as participações às forças de segurança estão a baixar. Quer por medo de represálias do agressor e desilusão com o sistema, quer por efeito da crise económica, do desemprego e dos cortes nos apoios que aumentam a vulnerabilidade das mulheres”. Um massacre que nos revolta e interpela. Está em marcha uma ”campanha nacional de sensibilização contra este flagelo”. E não se podem ignorar outras formas mais sub-reptícias de violência: - Ameaçar que irá matar ou provocar lesões a si mesmo ou ao outro, cortar na mesada, abandonar o lar; - Destruir os objetos do outro ou da casa, maltratar os animais de companhia, estragar os momentos festivos, atemorizar com palavrões, murros na mesa e outros gestos agressivos; - Fazer com que o outro se sinta mal consigo mesmo e mentalmente diminuído ou culpado, humilhá-lo, inferiorizá-lo junto de amigos, obrigá-lo a tomar atitudes que, por cobardia, não quer assumir, fazer-se de vítima, ser violento ou fazer chantagem de índole sexual; - Controlar o outro, as suas amizades, com quem fala, o que lê, as deslocações, o que veste, dificultar contactos com a família, obrigá-lo a cortar com velhos amigos, usar o ciúme como justificação, simular doenças; - Fazer o outro sentir-se culpado relativamente aos filhos, usá-los para passar mensagens, ameaçar levá-los de casa, denegrir o outro junto dos filhos ou amigos, aliciá-los em seu favor; - Tratar a mulher como criada, mesmo quando convida amigos para casa, tomar sozinho as decisões mais importantes da família, exigir “ser tratado como um senhor”, não reconhecer a violência dos seus atos; - Evitar que o outro tenha um emprego; forçar o pedido de dinheiro; apossar-se do dinheiro do outro. “Mas somos bons homens” diz o “silva europeu” do romance a máquina de fazer espanhóis de Valter Hugo Mãe. Assim, não. Estes não pertencem, certamente, aos apregoados brandos costumes.