O Tanoeiro da Ribeira

quinta-feira, julho 27, 2017


 CONTRADIÇÕES OU TALVEZ NÃO?


Foi já no final da sua vida. Mas ainda a tempo de conhecer este homem, de carácter inquebrantável num corpo franzino, poeta e contista, que bem cedo partiu de Póvoa de Lanhoso, rumo ao Brasil, no caminho duro da emigração: ”Quis suster as lágrimas, não consegui, chorei também. Tinha apenas onze anos de idade” (Rumo).


Regressado a Portugal, foi preso muitas vezes e torturado pela PIDE. E resistiu e não vergou. Nunca atraiçoou os amigos mesmo nas horas das mais terríveis ameaças: “A tua cova já está aberta e não temos trabalho: mesmo por cima do muro lá vais cair” (Um homem na Rua). Nem nunca esqueceu a família que sempre o acompanhou.


Gondomar, onde viveu, honra-o numa rua com o seu nome, em Baguim do Monte: Poeta Dário Bastos.

Fiz parte do elenco que representou o drama “25 de Abril, meu Poema de Natal”, que narra a sua primeira prisão, ocorrida numa Noite de Natal. Eu encarnava a personagem do Pai que era ele próprio. Nas primeiras representações, senti a emoção e a responsabilidade de o ter a assistir, sentado na primeira fila.


Da nossa conversa, nasceu-me uma profunda admiração. Com projetos diferentes, unia-nos a mesma visão humanista da fraternidade universal.


Quando faleceu, não teve “funeral religioso”. Sobre o esquife, literalmente coberto de cravos vermelhos, foi estendida a bandeira do Partido Comunista de que era militante desde 1938. À entrada do cemitério, sua filha Lígia pediu-me para dizer umas palavras em sua memória. Seria o único a falar. E assim foi, apesar da presença de vários dirigentes nacionais do seu partido. Não recordo o que disse, mas sei que as palavras foram profundamente sentidas, brotaram-me do coração. Enalteci o homem íntegro, de antes quebrar que torcer, o cidadão impoluto, o humanista lutador pela causa da liberdade e dos oprimidos, sem alusões a partidos ou religiões.


Contradições? Este homem que, por convicções pessoais, não quis ter a presidir ao seu funeral um representante da instituição eclesiástica que, salvo raras e honrosas exceções, não foi clara na denúncia da repressão do “Estado Novo” nem na defesa da Liberdade, acabou por ter um presbítero a prestar-lhe a última homenagem.


Não, não há contradições quando nos deixamos guiar por valores de humanidade. Estes não são propriedade de nenhum partido nem património exclusivo de nenhuma religião. Por sobre os partidos e as igrejas, o que une os “ homens a quem Deus quer bem” (cf.Lc 2,14) é o humanismo e a fraternidade. Apesar de todas diferenças nos caminhos, os homens estão irmanados quando são “norteados pela Justiça!... Paz!... e Amor!”.


Que o Deus de Jesus, - “Príncipe da Paz” - o recompense pelo muito que sofreu na luta pela vida e na defesa dos oprimidos. Que o tenha na Sua paz.


( 26/7/2017)

sexta-feira, julho 21, 2017


EM LOUVOR DE SANTA JUSTA


Era uma vez um menino da aldeia, o benjamim duma família de lavradores.
Naquela manhã, não saiu para o campo nem foi tocar os bois no engenho. Porque era dia de arranque da batata, ficou a ajudar mãe a fazer o jantar (agora, diz-se almoço). Enquanto ela ia com o caneco à fonte, ele deveria ir ao quinteiro buscar queirós para atear a fogueira.
Ao descer a escadaria de granito, sem corrimão, na ânsia de, cá do alto, descobrir as melhores acendalhas, nem reparou que se abeirava do vão da escada. Caiu desamparado. Sozinho, arrastou-se até à porta da rua para pedir ajuda. Quando regressou, a mãe, muito aflita, levou-o ao colo para a cama.
À refeição, ainda se levantou para ir à mesa comer com os vizinhos que tinham vindo ajudar a família. Mas ninguém lhe deu grande importância porque, pensavam, tudo não passaria de traquinice dos 7 anos… Mas, não…
Foi tarde e noite de sofrimento atroz, com fortíssimas picadelas na barriga.
Na manhã seguinte, o médico, Dr. João Vale, ao vê-lo, chamou imediatamente a ambulância para o transportar para a Ordem do Carmo onde operava o bem conhecido cirurgião, Professor Fernando Magano. Este logo diagnosticou uma rotura do baço. Na queda, ao bater no granito, as costelas flutuantes perfuraram o baço, o sangue espalhou-se por todo o corpo e já se acumulava na virilha. A infeção seria rápida e fatal.
Com autorização do pai que assumiu a responsabilidade pelos custos, foi anestesiado com clorofórmio e sujeito a uma “operação de barriga aberta”.
Foram quatro dias, com delírios e febres altíssimas, entre a vida e a morte. Recebeu a “Extrema-Unção”.
 Durante esse tempo, sua mãe não mais abrira as janelas da casa e a chaminé da cozinha não mais deitou fumo… A vizinhança também chorava e as senhoras faziam promessas. A quem? Naquele fim-de-semana, celebrava-se a festa de Santa Justa, na capelinha que branquejava lá longe no cume da serra que tem o seu nome.
E aconteceu…
Na noite de domingo para 2ª feira, o dia da festa, a febre foi descendo… e, para espanto de todos, o menino começou a melhorar.
Salvou-se e sem sequelas, até porque o baço não lhe foi retirado… Este regresso à vida de quem esteve às portas da morte, foi visto como um milagre de Santa Justa. Por isso, o menino subiu várias vezes a serra, amortalhado, e acompanhou, de vela acesa na mão, as vizinhas que, de joelhos, davam as prometidas voltas à capela. Milagre. Da medicina? Do amor dos pais? Do carinho dos vizinhos? De Santa Justa?
A verdade é que, ainda hoje, passados mais de 70 anos, aquele menino, sempre que avista a capela, reza a Santa Justa pelos dois médicos, pelos pais e irmãos e, também, pelos vizinhos. E, na próxima 2ª feira, irá novamente subir a serra para agradecer a Deus o dom da vida. (19/7/2017)

sexta-feira, julho 14, 2017

 UM PADRE DE RIJA TÊMPERA...



O 29.º Colóquio Europeu de Paróquias que está a decorrer em Barcelona fez-me recuar ao colóquio que se realizou nessa cidade em 1967. Nele, ficou memorável a intervenção do Paco, um humilde cura galego. Exigiu falar na sua língua materna, e não em espanhol, para enfrentar os padres do norte da Europa que assumiam uma postura de sobranceria frente aos portugueses e espanhóis que não passariam duns “pobrezitos” numa Igreja periférica. E disse, com voz segura: “ Sim, nós somos padres de uma Igreja pobre. Vós sois duma Igreja rica. Mas à custa de quê? À custa das matérias-primas e da miséria dos povos do Terceiro Mundo. Sois a Igreja dos exploradores. A vossa riqueza cheira a sangue…”

Fizemos amizade no Colóquio de Turim, em 1969. A partir de então, reservava a 2ª feira de Páscoa para vir ao Porto. Na de 1970, foi recebido por D. António Ferreira Gomes na sua casa de família em S. Martinho de Milhundos.

Padre e galego dos quatro costados, partilhava da desolação de Rosalia:Galiza…Tens mães que não têm filhos./ Filhos que não têm pai. / Viúvas de vivos mortos/”. Sofria as dores das famílias dos pescadores naufragados na Costa da Morte cujos corpos não mais apareciam. Para estas, ergueu, no cemitério local, um impressionante monumento ao “Marinheiro Desconhecido”, onde, com flores, podiam fazer o luto dos seus mortos. E construiu o sacrário da igreja com “godos” do mar, berço e túmulo dos seus paroquianos…

Na “via-sacra” que mandou fazer para a sua igreja, o Calvário de Jesus reatualizava-se no dia-a-dia dum povo amordaçado, proibido até de, na igreja, rezar na sua língua. Num cenário de paisagens galegas, Jesus, Maria e os Apóstolos surgem com feições e roupas camponesas e os soldados romanos com fardas e armas da Guarda Civil espanhola. Era um clamor evangélico contra a opressão do Estado e uma denúncia da Igreja serva dos poderosos, de que é exemplo o comentário que escreveu para a 11ª Estação: “A nossa Igrexa galega, de onde é? de Galicia?, e fala castelán? É unha Igreja de vivos ou de mortos? De culto ou de liberación? Dos pobres ou de quen? (cf. Encrucillada,- nº 71)”

Um moscardo a espicaçar as mentes adormecidas. Corajoso e frontal. Perseguido e mal visto pelos poderes dominantes e pelos bem instalados. Em contraste, o povo de Aguiño amava-o.  E lembra-o numa rua a que deu o seu nome de batismo: Francisco Lorenzo Mariño. Que falta fazem os Pacos!…

( 12 de julho de 2017)

 

domingo, julho 09, 2017

A SEMENTE FOI LANÇADA...


A paróquia de Nossa Senhora do Calvário está em festa.
Situada no vale do rio Tinto em Campanhã, o seu território desenvolve-se, quase totalmente, entre a Circunvalação e a linha férrea Minho-Douro. Era terra de campos e pinhais, atravessada pela estrada Porto-Vila Real. Nos anos cinquenta, foi ocupada por cinco bairros sociais: dois do Estado - S. Roque da Lameira e Salazar -, dois camarários - Cerco do Porto e S. Roque da Lameira - e um da PSP. Muita gente numa zona onde a Igreja não tinha qualquer centro de culto, apenas a memória dum antigo calvário. Eram, em grande maioria, moradores “transplantados” das “ilhas” do Porto.


D. Florentino criou a “Obra dos Bairros” e o seu “sacerdote responsável” foi morar no bairro do Cerco para se fazer “próximo” destas “ovelhas sem pastor” e lançar os alicerces da paróquia. Foi em 1964. E a paróquia nasceu em 1967.

D. António Taipa, que aí fez estágio diaconal, carateriza assim os tempos da sua criação: “Estávamos na década de sessenta do século passado. Tomava forma um enorme entusiasmo nascido e sustentado por uma forte esperança no Vaticano II cujos documentos, começavam a aparecer em letra de forma. Constituições. Decretos. Declarações. Respirava-se novidade. Um tempo novo. Uma primavera abençoada. A abertura da Gaudium et Spes (As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e de todos os aflitos, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo) constituía-se numa mola impulsionadora duma Igreja em renovação, duma igreja-povo, pobre, mais próxima daqueles com quem o seu fundador se identificou, os deserdados deste mundo. Uma Igreja “em saída”, uma Igreja pobre para os pobres, como tantas vezes nos proclama, hoje, o nosso querido Papa Francisco” (No Princípio foi assim…”).

E a raiz fez-se árvore…

A propósito da celebração das “bodas de ouro”, o pároco atual, cónego Fernando Milheiro, escreveu: “Bem original o início da Paróquia! O Bispo mandou um padre para conhecer e acompanhar um povo das periferias. No decurso da vida, sentiram a necessidade de encontros… uma escola da Fé. Os espaços são as casas e a escola… só depois aparecem uma e outra capela: Senhora da Paz e Senhora do Calvário. A Paróquia nasce como Igreja no meio das casas e com a força de família de famílias. Os cristãos são reconhecidos como gente que acolhe e acompanha, serve e partilha. Milhares de pessoas aqui caídas sentem que a Igreja ali é diferente. Aproximam-se e colaboram cada um à sua medida. Não é outra Igreja, mas uma Igreja outra, menos pesada mas mais feliz. Esta intuição ainda palpita ”.

Parabéns a quantos ajudam a manter vivo o projeto original duma Igreja próxima, pobre entre pobres…

(5/7/2017)