O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, março 25, 2015

A fragilidade dos símbolos


Há dias a propósito do artigo “Com maiúscula e com minúscula” (VP 25/2) e da notícia (JN 3/3) sobre um “falso padre, vestido com traje eclesiástico”, falava-se, numa tertúlia, sobre as mudanças das vestes clericais após o Vaticano II. E contaram-se vários episódios...
. Em 1968, num almoço de festa, um padre, de cabeção, ao ver vários colegas que não o traziam, disse, em tom bem audível e um tanto provocatório: “Ó senhor abade, este ano, convidou poucos sacerdotes...”. No almoço, quando todos louvavam o vinho servido, um dos padres visados perguntou: - Senhor abade, donde veio este vinho? - Da pipa da minha adega, respondeu. - Sem rótulo..., acrescentou o jovem padre, com um sorriso e amaciando o pescoço... Como veem, a qualidade está no produto. Fez-se silêncio, trocaram-se sorrisos e o vinho continuou a ser apreciado.
. Em 1971, D. António Ferreira Gomes ofereceu um jantar no Paço a um grupo de padres que se apresentaram de cabeção, exceto dois que vinham de gravata. E foram estes que D. António convidou para se sentarem a seu lado, durante a refeição.
. Um bispo, na década de oitenta, deu boleia a um casal de jovens que encontrou na estrada. Durante a viagem, perguntou-lhes : - Vocês conhecem-me? - Não, responderam. - Mas, pelo menos, sabem o que eu faço? - Não, respondeu o rapaz, mas sei que deve sofrer da coluna. - Porquê, perguntou o Bispo, surpreendido com a resposta – Porque usa esse colar cervical para lhe proteger o pescoço...
. Um dos presentes lembrou, ainda, o artigo Nótulas sobre o espírito e as formas na História do Cristianismo, publicado, em 1963, na revista Ensaios e, recentemente, integrado no livro MANUEL ÁLVARO MADUREIRA in memoriam. O Dr. Madureira era, quando o escreveu, presidente do Conselho de Professores do Seminário Maior do Porto. Dizia “Quando perguntaram a S. Vicente de Paulo qual o hábito que deveriam usar as irmãs de Caridade, respondeu-lhe que usassem o das mulheres do povo, nomeadamente da Bretanha. Queria claramente dizer que vestissem como as outras. Mas entenderam que não. E, assim, não só na Bretanha, como fora dela, aí andam as boas Irmãs, passados séculos, com aqueles chapéus ou toucas extravagantes a chamar a atenção dos transeuntes para um pormenor “folclórico” absolutamente descabido e alheio ao espírito desse inesquecível Fundador. Os hábitos talares, eclesiásticos ou religiosos, são sobrevivências fósseis de séculos recuados, algumas tão antigas que derivam do mundo judaico ou greco-romano. (…) Que pensou Jesus do vestuário? Como vestiu? Não seguiu os costumes dos homens do seu tempo? Não fizeram o mesmo os apóstolos?” Estas perguntas têm mais de 50 anos...
Interrogo-me: já houve algum “falso padre” que se apresentasse de gravata? Quão frágeis são os símbolos...
(25/3/2015)









sexta-feira, março 20, 2015

Bodas de Ouro da Senhora da Paz



    A Data - Corria o ano de 1965. No dia 7 de março, na ausência de D. Florentino de Andrade e Silva, Administrador Apostólico da Diocese do Porto, a participar no Concílio Vaticano II, em Roma, o Pe. João, da Obra Diocesana de Promoção Social, benzeu a imagem, celebrou a primeira Eucaristia e deu à capela o nome de Nossa Senhora da Paz. No seu primeiro aniversário, dia 7 de março de 1966, D. Florentino, num gesto de carinho, veio presidir à Eucaristia em que esteve presente a vereadora, D. Maria José Novais, em representação da Câmara Municipal do Porto
    As razões da escolha – No dia 7 de março de 1965 - primeiro domingo da Quaresma – por decisão do Papa Paulo VI, entrou em vigor a reforma litúrgica do Vaticano II: a Missa deixou de ser em latim e passou a ser na língua de cada país e o sacerdote deixou de estar de costas para o povo e começou a celebrar de frente para os fiéis. A escolha do dia 7 de março para a primeira missa na nova capela quis ser um sinal da “igreja pobre e peregrina”que o Concílio Vaticano II anunciou e a futura paróquia quereria testemunhar: uma igreja próxima, plantada no meio das pessoas. Sopravam ventos de esperança...
    A Origem da Capela - A capela de Nossa Senhora da Paz nasceu do encontro de duas vontades. O desejo de um grupo de moradores do Bairro de S. Roque da Lameira, com realce para os senhores Carlos Pereira e Joaquim Costa e D. Aida Matos, que há muito queria missa no bairro e o plano do P. João que precisava de alargar a sua ação pastoral para fora do Bairro do Cerco, onde vivia, e assim cumprir a missão de criar a paróquia de Nossa Senhora do Calvário que D. Florentino lhe confiara.
    O Edifício - A pedido do sacerdote da Obra Diocesana, a Câmara cedeu, para servir de capela, as instalações onde até aí funcionaram os serviços de jardins, higiene e limpeza que foram transferidos para o bloco 1 do bairro. Inicialmente estava dividido em duas secções. Obras posteriores, feitas pela Câmara, converteram-no no edifício atual.
    O Orago - Nossa Senhora da Paz. 1965 era tempo da Guerra Colonial. Uma guerra que parecia não ter fim, com muita dor e angústia. Muitos jovens partiam cheios de vida e regressavam estropiados ou num caixão. Eram muitas as mulheres vestidas de preto; mães sem filhos, filhas sem pais, viúvas de noivos vivos. Nossa Senhora era a Mãe dolorosa que assistia de pé à agonia do filho (Nossa Senhora do Calvário) e reconfortava as mulheres esmagadas pelo sofrimento (Nossa Senhora da Paz). Senhora da Paz e Senhora do Calvário são, pois, duas invocações marianas que se complementam.
    A Imagem - Foi comprada na Companhia Funerária Portuense, na rua de Santa Catarina, onde, no ano seguinte, iria ser adquirida a imagem de Nossa Senhora do Calvário. Trata-se duma jovem, de rosto bondoso e sereno, que inspira confiança e tranquilidade. Uma bonita imagem da “Senhora da Paz”. Esta foi a primeira imagem da futura paróquia de Nossa Senhora do Calvário. Era ela que, levada em andor, presidia à procissão de velas que, no dia 31 de Maio, unia o Cerco do Porto e S. Roque da Lameira, durante vários anos e apenas terminou quando o Comando Distrital da PSP proibiu a sua passagem na rua de S. Roque.
    A Memória – Muitas noivas depuseram os ramos junto do seu altar. Muitos pais consagraram-lhe os filhos no dia do batizado. Muitas mães choraram junto dela e imploraram a sua proteção para seus filhos. Muitas crianças lhe cantaram nos dias da sua “Primeira Comunhão e da “Comunhão Solene”. Muitas mães e jovens lhe deram graças. Foi confidente de muitos namoros. Abençoou muitos casais. Assistiu à despedida de muitos defuntos. Quantas pessoas lhe rezaram durante os milhares de Eucaristias que aí foram celebradas! Quantas lágrimas secou e quantos sorrisos acolheu! Quantas conversões ela pôde testemunhar! A sua memória tem de ser preservada. A Câmara pôs o edifício ao serviço da Paróquia e esta não o pode desprezar sob pena de o perder e, assim, esquecer todos aqueles que fizeram da capela da Senhora da Paz a sua casa de oração, e ofender a Deus que aí plantou a sua tenda para se encontrar com os homens.
    As Bodas de Ouro – Celebrar uma data não é apenas comemorar o passado. É acima de tudo, perspetivar o futuro. A Senhora da Paz merece uma prenda. Que prenda lhe vamos dar?


Olhar o Passado - Memórias




Quando a “minha Fatinha”, me convidou para dizer umas palavras na apresentação deste livro, logo me preveniu: vais conhecer duas amigas que, apesar de um longo convívio, ainda não conheces”.
Cedo me apercebi de que estava perante uma obra de linguagem fluente mas de estrutura polifacetada. Livro de Memórias? Biografia? Autobiografia? História? Crónica? Sociologia? Teoria Política? , Conto? Teatro? Poesia? Nada disto exclusivamente mas tudo isto de modo inclusivo e complementar. Por isso, mais do que a análise de uma narrativa onde os géneros literários se entrelaçam, gostaria de partilhar convosco as imagens que me foram surgindo no decurso da sua leitura. No início, senti-me no átrio de um templo, não feito de pedras, mas o santuário de uma família que se desdobra em várias gerações, e acima de tudo na intimidade de alguém onde a finitude se conjuga com a infinitude: o infinito do sonho encarnado nas limitações do humano. E, logo aí fiz silêncio e, à semelhança do que fiz na Mesquita Al-Aqsa, apeteceu-me descalçar os sapatos para pisar chão sagrado.

Ao percorrer esse templo humano, a intimidade de uma amiga foi-se revelando em confidências que aumentavam a cada momento. Em primeiro lugar foi a Mulher “Nascida numa época de muito pouca tolerância de costumes, educada por uma mulher de fibra espartana e beata, ela teve de superar a educação recebida, lutando por um lugar ao sol, numa época em que o sol não nascia para todos…” De seguida , foi a Mãe: “Todos os filhos poderão dizer das suas mães aquilo que eu digo da minha. Mas perdoem-me os filhos de outras mães a minha mãe era especial. (…) Nada e criada num ambiente pouco propício ao amor, tendo sofrido por amor, ela não fechou o coração, antes se abriu a todos quantos dela necessitassem: (…) foi a mãe e a “marinha” de muitos afilhados (…) A tia – madrinha lhe chamavam os sobrinhos (...) e a tia-avó amorosa...” Foi a vizinha de quem todas as crianças gostavam, pela paciência devotada com que as acolhia. A todos integrava (...) Foi a trabalhadora/obreira respeitadora e responsável, que ao trabalho se dedicou com devotado amor… “Ela foi a mulher-mãe, sempre grata para com aqueles que a ajudaram a fazer da filha o que esta desejara. Criada com pouco carinho, desdobrou-se num amor inesgotável. Sofreu – muito – mas nunca permitiu que a amargura lhe avinagrasse o coração.
E à maneira do templo de Jerusalém, quando penetrei no lugar mais secreto, apeteceu-me ajoelhar. Na minha frente não se desdobravam as tábuas da Lei mas sim uma carta. E meus olhos humedeceram-se de ternura e pela mãe que teve a coragem da revelação e pela filha que ousou partilhá-la com seus amigos.
Foi então que recordou um recado que a mãe lhe transmitira alguns anos antes: Depois de eu morrer, procura naquela caixa, entre os vários papéis uma carta que te escrevi… Nela encontrarás resposta a algumas dúvidas e perguntas que nunca discutimos, por falta de coragem minha ou desinteresse teu. (…) Com todo o cuidado, com algum pudor, F. começou a vasculhar, as memórias que para ela tinham sido preservadas. (…) e finalmente um sobrescrito que ostentava o seu nome: PARA A MINHA FILHA F.
Com as mãos trémulas, pegou-lhe religiosamente, abriu-o e leu:
28 de Setembro de 1997
Minha querida filha:
Quero agradecer - te todo o amor com que retribuíste o grande amor que te dediquei. “

E por aqui me fico... Quem quiser partilhar desta confidência, siga o caminho que eu percorri.
Se a primeira imagem foi a de um templo, já a segunda, foi a de um teatro contemporâneo onde os espetadores são convidados a seguir os atores através de diferentes locais.
Num amplo pórtico, a narradora começa por apresentar-nos as coordenadas espaço-temporais da ação: Lugar? Centrada primordialmente em Portugal, esta narrativa desenrola-se entre a pequena aldeia de Terronhas, o antigo Chão de Terronhas, e as cidades do Porto e Rio Tinto.  Tempo(s)? Duas destas “mães” nasceram durante o século XIX, em plena Monarquia, ainda que já em crise (1856 e 1881, respetivamente). Outras duas nasceram no século XX: uma – aquela que ouso identificar como a heroína desta estória  nasceu no primeiro quartel do século, numa República cheia de contradições (…) ; outra, a sua filha, nasceu em Ditadura
De seguida, uma porta com a inscrição “Vidas Sofridas” abre-se para um novo cenário: Terronhas, torrão natal da nossa heroína. Este lugar da freguesia de Recarei situa-se num pequeno planalto entres os vales dos rios Ferreira e Sousa, nos limites do concelho de Paredes com o de Valongo. Terra seca, famosa pelos melões de casca de carvalho, e não tanto pelos cereais, era pertença de três ou quatro famílias de lavradores abastados, sendo o resto da população constituída por pequenos agricultores ou simples caseiros que cultivavam jeiras bem exíguas numa agricultura de subsistência. Numa destas famílias pobres, onde “gerações de mulheres suportaram/sustentaram as respetivas famílias, na ausência dos companheiros – um desaparecido no Brasil, sem mais dar ou pedir notícias dos seus, outro morto prematuramente em França e ainda um terceiro, que não soube honrar compromissos, fugindo às responsabilidades familiares”, nasce uma menina a que foi dado o nome de Deolinda, uma das poucas meninas da aldeia a completar o ensino primário. E com que sacrifício o fez!... “Manhã cedo, antes de fazer a custosa caminhada que a levaria à escola, a nossa Linda estava encarregada de acender o lume – a velha lareira onde se perfilavam as panelas de três pernas – e de carregar para casa a lenha e o erguiço que a mãe tinha ido apanhar ao monte… (...) Das tarefas que lhe cabia realizar, fazia parte o levar as ovelhas e cabras ao pasto.”
Eu nasci perto de Terronhas. Por isso, a vivacidade com que a narradora conta a vida dessa aldeia fez-me lembrar medos de infância povoada de bruxas e diabos, tempos de miséria da meia-sardinha, de mulheres carregadas de filhos, da “doença do pó” que vitimava os mineiros das pedreiras de ardósia em S. Martinho, do puritanismo conservador duma religião marcada pelo maniqueísmo e pelo jansenismo que se aproximava mais do Livro de S. Cipriano que do Evangelho, e, com nostalgia, o sino da capela de Terronhas a recordar tempos da minha meninice quando levava os bois e vacas a pastar nas bouças próximas de Terronhas. Esta proximidade fez com que muitas vezes, falássemos da nossa infância, a minha bem menos dura que a dela...
A ação em Terronhas termina aqui porque, como diz na página 69: “Única filha de uma mãe aldeã, viúva e beata, desde os seus onze anos que Linda vivia na grande cidade.” Como o pequeno pastor, da página 273, também ela acreditava que Amanhã nascerá novo dia. Agora é a cidade do Porto que se abre à nossa frente. Um cenário de tempo longo e de muitos espaços. Uma “Via -sacra” de casas. Na padieira da porta está escrito: Em busca do pão. À nossa frente alonga-se um verdadeiro campo de batalha onde uma mulher, numa guerra de vai-vém irá lutar ao longo de muitos anos com triunfos e derrotas, avanços e recuos, alegrias e tristezas, sorrisos e lágrimas, vida e morte, e muita violência... Mas sob o lema “Lutar, lutar”, tudo a nossa heroína supera, sempre de sorriso franco e de coração aberto. Nesse cenário de batalha, chama-me a atenção uma tenda de campanha onde decorre um “efémero romance”. Como se trata duma incursão na intimidade pessoal, limito-me a indicar aos futuros leitores o letreiro que interroga : “Quanto vale uma utopia?”
Ao chegar ao fim desse cenário de sofrimento, apetece-me dizer: que grande mulher e que grande mãe!! Como se já não lhe bastassem as preocupações com o trabalho e a criação da filha,razão de ser de toda a sua vida, ainda sofreu a violência de quem lhe deveria dar apoio. Valeu-lhe a filha, companheira de toda a hora e cúmplice em todas as batalhas numa relação nem sempre isenta de sofrimento. E os amigos, os muitos amigos que foi granjeando com a sua simpatia e afabilidade. É bem verdade que quem dá sempre recebe e quem semeia sempre colhe...
Como as histórias se cruzam num plano infinito em que tudo se encaixa!...” diz na página 182. Esta afirmação fez-me lembrar François Mauriac, laureado com o prêmio Nobel de Literatura de 1952 que, em 1951, disse: “Sinto que estou a envelhecer como um carneiro que vai perdendo lã nas sarças dos caminhos; mas sei que a vida tem sentido; nada fica sem recompensa, nem uma lágrima, nem uma gota de sangue...”
A narrativa termina com “O Epílogo - Folhas soltas arrancadas a um diário” que me suscitou a imagem de um caminho que se alonga pela montanha, debruado a luz e sombras, com paragens a olhar o caminho percorrido e a repousar para novas metas, com revoltas e cansaços, com a nostalgia dos vales e a miragem de novos horizontes, com desilusões e novas esperanças... Apenas alguns extratos desse diário:
Sombras são o que me resta: só na minha memória poderei rever o teu sorriso bem-disposto...”
Sei que a mãe não compreenderá a minha dor, satisfeita que está com a forma como o assunto lhe parece resolvido a contento da maioria.”
Saímos para a noite de alma cheia, apesar de alguma desilusão que não podíamos ocultar.
Mas “A Luta Continua!” tem de continuar, por que nada é adquirido, tudo tem de ser conquistado palmo a palmo, centímetro a centímetro.”
Saudade é o termo!
Dizem que é uma palavra tipicamente portuguesa, mas, embora preservando as memórias – cada vez mais se torna necessário não as deixar apagar nem branquear – devemos continuar a olhar em frente, rumo ao futuro.”
Não deixei de viver e ter momentos felizes: realizei-me como filha, como irmã, como educadora, como gestora, como escritora, como viajante mas...
E as incertezas voltam de novo ao de cima.”
Afogar a tristeza, ocultar a desilusão passou a ser uma diretiva que segui, aparentemente com sucesso, como sucesso tive em outros campos da vida. Mas ela, a mágoa, continuou a laborar em surdina – fechando-me a outras experiências...
Chamam-me dura, sem saber que debaixo da capa de rudeza está um coração que sofreu.
Absorta, só passado algum tempo me dei conta de uma visita inesperada: uma borboleta, de asas acastanhadas, vinda sabe Deus de onde, pousou-me no ombro e ali permaneceu por alguns segundos.”
E vem-me a interrogação: Que seiva alimenta esta obra? Memória agradecida? Catarse libertadora? Utopia vivenciada? Ou “O aconchego das raízes”? E a resposta encontrei-a, em metáfora, no que Luísa Dacosta (para ela a nossa homenagem) escreveu a respeito da cidade do Porto: “Somos ânsia e memória – é o que em nós fica e nos estremece. Memória somos, até de pedras. Memória de cidades, perdidas, que nos habitam, como rostos. Esfumadas numa névoa leitosa que os crepúsculos ou os néons tornam rosa e mel, permanecem no perfil das suas torres, tocadas de luz ou no recorte dos telhados, lavados pela chuva. Nos cunhais, ressumam as nossas próprias dores que se perspetivam em linhas entrecruzadas a perderem-se fundo, íntimas: a estrutura das janelas, cega pelo sal das lágrimas.” (citada por Hélder Pacheco in JN, 28/2/2015)
O livro termina com “Testemunhos /depoimentos” fazendo lembrar o painel do Museu Cargaleiro em Castelo Branco com pensamentos dos seus amigos e admiradores. Por isso, em honra de D. Deolinda, aqui vos deixo o buquê que alindei com excertos dessas memórias.
    1. Forte, decidida, de antes quebrar que torcer.”
  1. Deste-me tudo o que pudeste E por ti sempre fui querido.
  2. Desdobrava-se em esforços para responder, adequadamente, às solicitações dos seus “meninos” e das suas “meninas” como, carinhosamente, chamava aos atletas do CDUP
  3. Contava-me a história da sua vida difícil, de “viúva de marido vivo” e com uma filha, extraordinária que era a sua companhia e amparo.(...) Tudo o que deixei escrito é pouco, sobre esta mulher, GRANDE MULHER E MÃE.
  4. Há mães universais, que estendem o seu manto a outros filhos...
  5. Da Senhora D. Deolinda tenho recordação da extrema delicadeza que usava no relacionamento com os utentes.(CDUP)
  6. Eu adorava ir para a casa da Bi e da Tá quando era miúda – havia sempre tanto que conversar e ver: lembro-me da Bi a fazer as meias e as camisolas quentinhas.
  7. Ser vizinha da D. Deolinda – Bi e da Tá, foi dar um nome completamente diferente a esse conceito – de vizinhas fomos amigas, amigas para toda uma vida, com um carinho e apoio que não se esquecem.
  8. Ora a minha tia Linda, com os seus cabelos brancos, a sua face alegre e a sua paciência, é a imagem mais próxima da avó que nunca tive.
  9. Mulher de fibra, determinada, sempre com resposta para tudo e ao mesmo tempo, meiga, delicada com toda a gente, brincalhona e muito vaidosa.
  10. Logo ali nos apresentamos e ficamos amigas, pois tinha um coração aberto e cheio de amor.
  11. Também eu a via como mãe não só pela ternura que me dedicava mas porque era a imagem de minha mãe. A mesma doçura nas palavras, a mesma meiguice no olhar. (…) Sempre disposta para uma piada, para uma maroteira.
  12. Quando penso em ti, as primeiras memórias que aparecem, fazem-me rir, muito, pois são as músicas marotas que costumavas cantar,
  13. Força na alma,/ Força no coração,/ Coração sempre aberto./Sempre a dar a mão.
  14. A Deolinda era uma mulher muito boa, generosa e sempre muito amiga do seu amigo.
  15. Era uma boa senhora que me tratava como família e até como confidente. Ela gostava muito de mim e eu também gostava muito dela.
  16. Senhora afável, meiga, sociável, conhecedora e de fortes convicções. Era assim a Lindinha... Honesta e Amiga, sempre pronta a ajudar...
  17. Falar da minha Madrinha “Linda”, é falar de uma grande Mulher de vida, sempre preocupada com o bem-estar da família, e de todos os que a rodeavam, mesmo em detrimento de si própria.  
  18. Lia, conversava sobre qualquer assunto com todo o interesse, gostava de conviver, de receber e… de passear.
  19. D. Deolinda era uma Mulher com M maiúsculo: corajosa, inteligente, amiga, conselheira, trabalhadora, mãe amiga dedicada, atenta, afetuosa.
Na página 66, a narradora fala da paixão de juventude da heroína desta epopeia: “Seria evocando estes encontros que anos mais tarde, muitos anos decorridos, ela cantava alegremente em casa dos amigos da filha a canção: “Manuel, cabelo loiro, penteado à peralta...”? Que saudades! (…) Aquele Manuel era mesmo aperaltado, ostentando orgulhosamente a posição socioeconómica que detinha.
No final desta apresentação iremos evocar esse cântico. Mas isso fica para mais tarde. Por agora, resta-me dizer-vos obrigado pela atenção com que nos ouviram.
Como se diz no Principezinho “Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”.


Porque os amigos nunca morrem no coração de quem os ama, convido-vos a cantar connosco essa canção que tem a “marotice” do Minho de que ela tanto gostava...
Manuel, cabelo loiro,
Penteado à peralta
Eu só queria a tua cara
Cabelo loiro não falta

Vai por i que eu por vou qui
Meu raminho de alecrim
Eu só queria saber
A raiva que tens de mim

Hei-de arranjar um namoro
Na Senhora da Abadia
E hei-de -lhe pôr os cornos 
A toda a hora do dia”


quarta-feira, março 18, 2015

O PORTO VISTO À MINHA MANEIRA : uma exposição de memória



No passado dia 12, na Casa do Infante foi inaugurada, com a colaboração e intervenção do Coro Gregoriano do Porto, a exposição fotográfica “O Porto visto à minha maneira”, de Serafim Marques, que faz memória do Porto e suas gentes no 3.º quartel do século passado. O seu autor, natural do Bonfim, foi durante cinquenta anos (1939-1989) fotógrafo de “O Primeiro de Janeiro” e professor em várias escolas com destaque para a Escola Soares dos Reis, no Porto e Escola EB2,3 de Rio Tinto donde, aos 70 anos, se aposentou. Como diz o cartaz da exposição, “continua interessado no mundo que o cerca. Continua a fotografar o que vê e o que sente. A cidade onde nasceu merece-lhe um carinho especial” Por isso, caminheiro incansável, na verticalidade dos seus 92 anos, é vê-lo, de máquina a tiracolo, calcorrear o Porto em busca de um recanto, dum ângulo, duma tonalidade, dum instantâneo, como o vem fazendo ao longo de muitas dezenas de anos. Homem discreto e humilde, nunca quis expor o seu trabalho porque, dizia,”isso era vaidade”. E só aceitou fazê-lo quando amigos o convenceram de que era uma obrigação que devia à sua cidade. Esta exposição representa uma pequeníssima parte do seu enorme legado fotográfico. São 36 fotografias a preto e branco, legendadas em português e inglês, pontilhadas por textos/poemas sobre o Porto, de Carlos T, José Gomes Ferreira, Luís Veiga Leitão, Pedro Homem de Mello, José Saramago, Eugénio de Andrade, Miguel Torga. Os técnicos da Casa do Infante deram-lhe um enquadramento de luz e uma organização espacial que os dignifica e honra os seus visitantes. São dignos de louvor. Para além da beleza das fotografias que, por vezes, parecem pinturas, a exposição oferece-nos um rico e raro acervo documental que nos permite rever/conhecer não só como era a cidade nesse tempo, mas também os tipos humanos, o vestuário, o modo de ser e viver de um povo que fez do trabalho o brasão da sua nobreza. Sem desprimor para as restantes, gostaria de realçar, pela sua densidade humana e pelas imagens que já são apenas memória: Alfândega – comboios de mercadoria (1960); Avenida dos Aliados (1960) que nos traz a saudade dos canteiros em flor; Trabalho duro – Upa.upa! (1963); Barcos saveiros (1967) a dormitar junto da Ribeira (1967); Mercado da Ribeira “Ó freguesa! Olhó bom peixe... fresquinho! (1967); O homem da bicicleta (1967); Olhó graxa! C'roa ou caixa! (1967), Esperando a subida das águascheias (1968).
Está de parabéns a Casa do Infante por mais este serviço à cultura e à memória do Porto. A exposição, de entrada gratuita, está patente até 19 de abril. Quem quiser conhecer melhor a cidade do Porto, poderá aproveitar esta visita para percorrer os espaços disponíveis da Casa do Infante que nos falam duma cidade que, no passado, encontra as raízes da sua identidade. Merece uma visita..

( 18/3/2015)

E o "Dia dos Pais"?


As avós - Uma avó é uma mulher que não tem filhos: por isso gosta dos filhos dos outros. As avós não têm nada que fazer, é só estarem ali. Quando nos levam a passear, andam de vagar e não pisam as folhas nem as lagartas. Nunca dizem despacha-te. Normalmente são gordas, mas mesmo assim conseguem atar-nos os sapatos. Sabem sempre que a gente quer mais uma fatia de bolo, ou uma fatia maior. Uma avó de verdade nunca bate numa criança: zanga-se mas a rir. As avós usam óculos, e às vezes até conseguem tirar os dentes. Quando nos lêem histórias, nunca saltam bocados e não se importam de contar as mesmas histórias várias vezes. As avós são as unicas pessoas grandes que têm sempre tempo. Não são fracas como elas dizem, apesar de morrerem mais vezes do que nós. Toda a gente deve fazer o possível para ter uma avó, sobretudo se não tiver televisão.
Acabava de receber um email com esta redação de criança, quando ouvi um menino de 4 anos a falar com a avó sobre a prenda que estava a fazer para o “Dia do Pai”. - Quando é, avó? – É no próximo dia 19. - Porquê ? - É o dia de S. José. - O pai de Jesus que eu vi de pé no presépio? - Esse mesmo. - E o “Dia da Mãe?- continuou ele. - É no primeiro domingo de maio, o “Mês de Maria” - A mãe de Jesus que estava no presépio? - Sim, Nossa Senhora. - E o “Dia dos Avós”? - É no dia 26 de julho. - E porquê? - Porque é dia de Santa Ana e São Joaquim, os avós de Jesus. - Engraçado. Mas eles não estavam no presépio, pois não. Porquê? - Porque viviam muito longe. - E o “Dia dos Pais”? Perante o silêncio da avó, o neto esclareceu: -Sim, o dia do pai e da mãe? A avó, surpreendida, lá encontrou uma resposta: - O Dia dos Pais é o dia de Natal. - Porquê? - Porque é quando Jesus nasceu, e o dia dos pais é o dia do nascimento dos filhos. - Ó avó, conta-me a história dos Reis Magos. A avó respirou de alívio... Mas a pergunta ficou e interpela-nos: e o “Dia dos Pais”?
Quão belo é este diálogo! É muito significativo que o Santo Padre tenha escolhido para tema do 49º Dia Mundial das Comunicações Sociais:Comunicar a família - ambiente privilegiado do encontro na gratuidade do amor”. Diz: “O ventre que nos abriga é a primeira “escola” de comunicação (...) Este encontro entre dois seres simultaneamente tão íntimos e ainda tão alheios um ao outro, um encontro cheio de promessas, é a nossa primeira experiência de comunicação. (...) Mesmo depois de termos chegado ao mundo, em certo sentido permanecemos num “ventre”, que é a família. Um ventre feito de pessoas diferentes, interrelacionando-se: a família é “o espaço onde se aprende a conviver na diferença”.
O diálogo intergeracional, que se faz de afeto e enriquece na diferença, torna a família o paradigma de toda a comunicação. E o “Dia dos Pais”?...
( 18/3/2015)



quarta-feira, março 11, 2015

A Casa da Música faz dez anos...


A Casa da Música, inaugurada em 2005, iniciou as celebrações do seu 10º aniversário com um concerto de órgão na igreja dos Clérigos no dia 16 de janeiro que apresentou obras de Bach e Buxtehude. Foi à hora de almoço e, mesmo assim, o templo encheu-se por completo... até no coro alto e nos varandins laterais. Um bem-haja para a Casa da Música e para a Irmandade dos Clérigos por esta abertura à cidade. À noite, a Sala Suggia tornou-se pequena para o concerto “Alemanha em concerto” em que a Orquestra Sinfónica do Porto deu vida a obras dos compositores alemães Weber, Lachenmann e Beethoven. Se o Schreiben de Lachenmann, “compositor em Residência 2015”, que subiu ao palco, foi uma surpresa pela inusitada simbiose de ruídos e sons, foi o concerto para piano e orquestra de Beethoven que levantou a assistência pela excelência do seu intérprete, Pedro Burmester, de ascendência alemã, que, após vários anos, se reencontra com a Cidade e seus dirigentes. “Contar uma história da Alemanha através dos seus maiores compositores, desde o século XVI até à atualidade, é o mote da primeira narrativa que anuncia o País Tema de 2015 e se estende ao longo de todo o ano.” Este privilegiar da Alemanha que, no dizer do diretor artístico da CdM, tem na música o “dominador comum que formou o magma da identidade nacional”, não fecha a Casa da Música a outras iniciativas. E assim, no dia 1 de fevereiro ao meio-dia, a Banda Sinfónica Portuguesa apresentou um concerto com obras de compositores portugueses: Cândido Lima, Coros e Danças Medievais; Pedro Lima Soares, Sopro do Côncavo; Rui Rodrigues, A viagem de balão; Diogo Novo Carvalho, Gestos e Lino Guerreiro, al-Uqsur “Luxor”. Todos os compositores subiram ao palco com a exceção de Rui Rodrigues, a estudar em Viena. No final do concerto, o diretor da Banda Sinfónica Portuguesa e da Academia de Música Costa Cabral agradeceu e enalteceu a qualidade dos intervenientes, todos portugueses, incluindo o diretor musical Pedro Soares, maestro titular da Orquestra Clássica de Espinho. Foi uma viagem que nos transportou a tempos da Idade Média e do Antigo Egípcio; que nos levou a viajar por mundos imaginários e nos fez mergulhar na profundidade da introspeção. E nos gestos sentimos a interação entre o som e as emoções. Foi, no entanto, o Sopro do Côncavo que mais me prendeu a atenção: tudo começa no silêncio de um sopro no seio materno que, pouco a pouco, se faz turbulência na agitação do vida para vir a mergulhar, numa progressiva solidão, no silêncio absoluto dum túmulo. Não fora a fé na Ressurreição...
Com a Casa da Música, o Porto passou a contar com um equipamento cultural que faz dele um polo de atração para nacionais e estrangeiros. Saibamos aproveitá-lo.
(11/3/2015)












quarta-feira, março 04, 2015

Música para a Quaresma



Nada de tão material como a música: a voz, instrumentos de sopro, de percussão e de cordas e disso tudo resulta o que nos enleva, nos transporta para a transcendência, nos coloca lá no donde viemos e lá para onde verdadeiramente queremos ir e habitar. Feita de tempo, a música pára o tempo, transcende o tempo e tange o eterno. Ali, onde quereríamos estar sempre, e já não há morte.”
No início desta quaresma, dois momentos houve que me fizeram lembrar este texto do P. Anselmo Borges. O primeiro foi na noite de 21 de fevereiro quando, na igreja de S. Martinho de Bougado, assistia à Oratória cantada por Teresa Salgueiro, com a colaboração do coro dessa comunidade paroquial. Foi uma verdadeira paraliturgia com leituras bíblicas a enquadrarem os “Cânticos da tarde e da manhã” que a voz sublime de Teresa Salgueiro trouxe até nós. Foi um momento único de espiritualidade. A transcendência fez-nos esquecer o frio dessa noite chuvosa e transportou-nos para um “outro mundo” sem tempo e sem sofrimento.
O segundo aconteceu no dia 27 de fevereiro quando ouvia o cd “Via Sacra”, editado pela “Ecclesialis” da Diocese do Porto. Como esclarece o libreto, “A Via Sacra constitui a referência fundamental para as imagens musicais densas, dramáticas e de cores fortes que estão formalizadas nestas quatorze improvisações, gravadas no magnífico órgão ibérico de São Lourenço do Seminário Maior do Porto. Estas meditações trabalhadas numa óptica perfomativa sinfónica, oferecem-nos quadros musicais complexos, atingindo quase uma verdadeira orquestra que canta a paixão de Cristo.” O seu criador é Giampaolo Di Rosa, organista titular dos grandes órgãos de Santo António dos Portugueses em Roma e organista residente da Sé Catedral de Leon em Espanha.
A música é sempre uma comunicação expressiva. A linguagem da arte é subjetiva e própria para traduzir o mais íntimo. É uma forma de desocultar o que nos vai na alma. Pela arte, vemos o que é invisível e ouvimos o que é inaudível. A ambiguidade dos sinais permite uma multiplicidade de interpretações. Aberta ao diálogo, possui um conteúdo renovado para quem a usufrui que se torna recriador de significação.
No cd “Cânticos da tarde e da manhã”, a poesia, a música e a voz elevam-nos até Deus e a sua mensagem torna-se explícita na objetividade das palavras. Já em “Via Sacra”, apenas música, é dado campo à subjetividade: do organista que cria e do ouvinte que recria. O grito estridente do “Crucifica-o” contrasta com a serenidade do “Tudo está consumado” e o quase silêncio do sepulcro...
Sem querer meter foice em seara alheia, parece que estes dois CDs, disponíveis na nossa livraria, poderão contribuir para uma mais intensa vivência quaresmal das pessoas e das comunidades.
(4/3/2015)













segunda-feira, março 02, 2015

O Auto da Paixão em Vilar de Perdizes


Ao passar em Montalegre, no derradeiro sábado do ano, o P. Fontes disse-me que, após 17 anos, o povo de Vilar de Perdizes iria repor o Auto da Paixão na sexta feira santa, dia 3 de abril. A seu convite, fui assistir ao ensaio. O salão estava cheio de figurantes, familiares e vizinhos. Reconheci o Judas e o Acusador. Perguntei pelo diabo e disseram-me que não estava presente porque vive no Porto e, como já sabe o papel, só virá aos últimos ensaios. A Verónica também não estava. O Jesus e Nossa Senhora vão representar pela primeira vez e, por isso, embora com voz bem timbrada, ainda estavam muito preocupados em decorar o seu longo texto ( E quem já fez teatro sabe como é difícil representar um auto que, todo em verso, não permite improvisações...).
No final, o P. Fontes, com anuência do novo pároco, pediu-me para lhes dirigir uma palavra de incentivo. Então, virando-me para o cartaz “Congresso de Medicina Popular”, exposto na sala , disse: “contrariamente a muita gente, não foi o congresso que me trouxe a Vilar de Perdizes. Muito antes dele, já eu demandara estas terras barrosãs. O filme de Manuel de Oliveira, O Acto da Primavera, despertara-me a curiosidade. Quando soube que, em Vilar de Perdizes, se iria representar o Auto da Paixão, logo vim em sua demanda. Foi na década de setenta. Mais do que os congressos que puseram Vilar de Perdizes no mapa mas também atraíram alguns charlatães que lhes roubaram autenticidade, a representação do auto envolve toda a aldeia. Este sim é símbolo da vossa cultura. Havia sorrisos e gestos de concordância. Disseram-me, então, que só figurantes são setenta: crianças, jovens, adultos e idosos. E há que contar ainda com os que confecionam roupas e adereços, fazem e montam os cenários e preparam o muito mais que é necessário.
Após o ensaio e já em sua casa, ao calor da lareira e com a companhia do novo pároco, o P. Fontes mostrou-me o texto, numa edição feita no Porto no século XIX. Soube que a sua representação em Vilar de Perdizes já se faz há mais de cem anos. Trata-se do quinhentista Auto da Paixão de N.º Senhor Jesus Cristo”, escrito por Francisco Vaz de Guimarães.
Para aguçar a curiosidade, deixo apenas duas pequenas falas:
N.ª Senhora- Filho meu, e meu amor,/de temor estou cercada,/estou tão cheia de dor,/que não sei, Filho e Senhor,/como seja consolada.
Jesus -Antes de minha Paixão,/piedoso Senhor Padre,/peço-te do coração,/que hajas, Senhor, compaixão/de minha tão triste Madre./Também sejam amparados/meus Discípulos, Senhor,/porque andam derramados,/corridos e destroçados,/como gado sem pastor.
Amigo leitor, se puder, aproveite esta oportunidade. Poderá não haver outra... porque, como já avisava o P. Fontes no seu livro Etnografia Transmontana, é “um mundo a acabar”...
(25/2/2015)