O Tanoeiro da Ribeira

domingo, outubro 15, 2006

CONTRADIÇÕES ? OU TALVEZ NÃO…

Hoje, ao arrumar os livros que possuo com dedicatória de autor, veio-me à mão o “ Rumo” (1975) de Dário Bastos, com a seguinte dedicatória:
João
Muito obrigado pela “Lição de História” que, hoje, deste ao pessoal da Escola.
Que tu e todos os teus continuem norteados pela: Justiça!... Paz!... e Amor!
Com muita amizade
“Pelo autor” Lígia
(filha do autor) 25–Abril-99”

Abri o livro e li: “ Agosto de 1914. (…). Na estação dos Caminhos de Ferro, em Braga, entrei para o comboio que me havia de levar ao Porto e daqui para Leixões, para embarcar com destino à Baía (…)
À minha volta tudo era tristeza e mais tristeza. Vejo a minha mãe dizendo-me adeus e a chorar convulsivamente. Quis suster as lágrimas, não consegui, chorei também. Nessa data eu estava a desabrochar para a vida, pois tinha apenas onze anos de idade”
(…)
Foi em 1926 que (…) cheguei a Portugal. (…) Aconselharam-me a que voltasse para o Brasil. (…) Entendi que não devia ir-me embora (…) Aqui era o nosso lugar e embora viéssemos a sofrer perseguições, era nosso dever lutar contra a feroz ditadura. (…) e lutei sempre, sem desânimo, contra a opressão
fascista”

Do livro “Um homem na Rua”(1996) de que possuo um exemplar com dedicatória do próprio autor, que, no momento, não posso citar porque o tenho na Póvoa de Varzim, transcrevo uma passagem que eu e a Maria de Fátima Silva, amiga e companheira de alongados caminhos, inserimos no livro de História do 6º ano de Escolaridade -“A Grande Viagem”, da Santillana -, de que somos autores.

Ao romper do dia, o mesmo polícia que me havia prendido foi-me buscar e nessa tarde dei entrada na Informação (PVDE/PIDE), situada na rua do Heroísmo, no Porto, mesmo ao lado do cemitério.
O movimento de presos a serem interrogados e espancados era intenso. Fui metido num cubículo, a que chamavam “segredo”, que era por debaixo de umas escadas. Mal me podia mexer, de tão acanhado que era. Não havia luz, nem natural nem artificial (...). Para as necessidades fisiológicas existia um balde...
Pela madrugada, foram-me buscar. (...) Levaram-me para uma casota, a que chamavam “ Casa del Campo”, situada junto a um muro que circundava o cemitério. Eram oito polícias e um deles apontou para o cemitério e disse-me:
- A tua cova já está aberta e não temos mais trabalho: mesmo por cima do muro lá vais cair.
Cada qual empunhava um bastão de borracha e, após ter dado entrada na tal casa de torturas, principiaram a desabar sobre mim fortes doses de pancadaria.
Depois de descansarem uns escassos minutos, voltaram a interrogar-me, mas como não lhes respondesse conforme queriam, as pancadas recaíram sobre mim, tanto nas costas, como nas pernas e fortes bofetadas na cara.
Houve um momento em que caí, mas um deles levantou-me e ao mesmo tempo disse-me:
-Assim suja a roupa, vamos tirar-lhe o pó.
Mais pancadaria!... Sentia-me exausto e julguei que iam cumprir o que me disseram: atirarem comigo para o cemitério.
Surge à porta o director daquela sinistra polícia e com modos bruscos perguntou:
- Então esse bicho já falou?
-Só tem dito mentiras...
- Levem-no novamente para o “segredo” e amanhã continuem o interrogatório, mas que seja mais severo... Espremam-no bem, pois tem muito que dar”

Esta evocação levou-me a escrever esta pequena homenagem a Dário Bastos. Conheci-o já na fase final da sua vida, quando a sua filha Lígia, amiga e colega , mo apresentou. Mas ainda foi a tempo de conhecer este homem, de carácter inquebrantável num corpo franzino, que bem cedo partiu de Póvoa de Lanhoso, creio que de Fonte Arcada, “rumo” ao Brasil, no caminho duro da emigração (e lembrei-me de outro escritor, emigrante de tenra idade em terras brasileiras, que muito admiro, Ferreira de Castro).
Foi preso muitas vezes, sofreu as atrocidades da tortura nas prisões da PIDE. E resistiu e não quebrou e não vergou. Nunca atraiçoou os amigos mesmo nas horas mais dramáticas nem nunca esqueceu a família que sempre o acompanhou, sofrendo e lutando, irmanada no mesmo ideal.
No final desta minha evocação, apresento um texto dramático escrito pela Lígia onde ela narra, creio, a primeira vez em que o seu pai foi preso e que aconteceu numa véspera de natal, quando ela era ainda criança -“25 de Abril, meu Poema de Natal”. É um testemunho impressionante de partilha e de coragem.
Fiz parte do elenco que o levou à cena, nas comemorações do 25 de Abril, na escola de Rio Tinto (em vários anos seguidos: a primeira vez que foi representado terá sido, se a memória me não atraiçoa, na comemoração dos “20 Anos de Abril – ou foi nos 25 Anos? Já não tenho a certeza) e numa escola em S. Pedro da Cova. Eu encarnava a personagem do Pai que era o próprio Dário Bastos. Nas primeiras representações, tive a alegria, a emoção e a responsabilidade de o ter a assistir, sentado na primeira fila do polivalente.
Desde o tempo de estudante do 6º ano do curso complementar, foram muitas as peças em que entrei: “ a Bandeira Roubada”, “Auto do Natal”, “ A Muralha” , “ Natal na Rua”, “ Deus escreve direito…” e muitas outras. De todas, esta era a representação em que eu menos falava e, no entanto, foi aquela em que mais me emocionei e que muito me marcou.
Da conversa entre o actor e a pessoa representada, nasceu-me uma profunda admiração e mesmo uma amizade. Unia-nos a mesma visão humanista de solidariedade/fraternidade. No entanto, nunca abordámos o binómio cristianismo/marxismo.
Quando faleceu, não teve “funeral religioso”. Sobre o esquife, literalmente coberto de cravos vermelhos, foi estendida a bandeira do Partido Comunista.
Antes de entrarmos no cemitério de Paranhos onde foi sepultado, a Lígia veio ter comigo e disse-me: João, eu muito te agradecia se, antes do caixão descer à sepultura, tu dissesses umas palavras em honra do meu pai. As lágrimas afluíram-me aos olhos e ela continuou: embora te custe, acho que o meu pai to merece. Serás o único a falar. E assim foi, apesar de estarem presentes muitos dirigentes do Partido. Já não sei o que disse, mas sei que as palavras foram profundamente sentidas: fixei-me no homem, no humanista, no lutador pela causa da liberdade e dos oprimidos, sem qualquer alusão ao partido e à religião.
Fiquei feliz com este meu acto de homenagem, e interroguei-me: contradições ou talvez não? Este homem que, por convicções pessoais, não quis ter a presidir ao seu funeral um sacerdote, representante da instituição eclesial que, no tempo da Ditadura, salvo honrosas excepções, não assumiu claramente a luta pela liberdade e não se bateu pelos seus defensores, teve um presbítero da Igreja, “desactivado”, como diz o meu colega José Miguel, a prestar-lhe a última homenagem com palavras singelas mas autênticas. Não, não há contradições quando nos deixamos guiar por sentimentos universais de humanidade. Estes não são propriedade de nenhum partido nem exclusivos de nenhuma religião. Por sobre os partidos e as religiões o que une os “ homens de boa vontade” é o humanismo e a solidariedade/fraternidade. Apesar de todas diferenças nos caminhos e na estratégias, os homens estão irmanados na mesma humanidade quando são “norteados pela: Justiça!...Paz!...e Amor!”
Obrigado, amigo Dário e que o Deus verdadeiro, o Deus dos meus pais em que acredito, te recompense pelo muito que sofreste em favor dos oprimidos e na luta pela liberdade. Eu continuo a pensar que o ateísmo de Marx foi conjuntural, fruto da análise feita a uma sociedade marcada pela mais desabrida exploração humana da revolução industrial e em que a religião aparecia como “ópio do povo”. Por isso, assim como um psicanalista não tem que ser ateu porque Freud, o pai da Psicanálise, o foi, também um marxista não tem que ser necessariamente ateu embora o seu fundador o tenha sido. Se a psicanálise pode ser assumida como uma concepção do homem, uma técnica para desvendar os mistérios psíquicos e um processo de cura das doenças psico-somáticas; o marxismo pode ser encarado como uma concepção da sociedade, uma técnica de análise social e uma estratégia de luta contra as desigualdades sociais. (Não será que Cristo e Marx, ambos judeus, não queriam o mesmo, fraternidade humana, embora pregassem estratégias opostos: a do amor/paz entre os homens e a da luta/ódio de classes?). O Marxismo não poderá integrar-se na corrente do “como se…” - ( “luta pelos teus direitos, pela tua dignidade, pela igualdade social, como se tudo dependesse de ti , com se Deus não existisse…” o que se aproximaria da sentença popular “fia-te na virgem… e não corras!”). A este propósito, lembro o que Fidel Castro disse ao brasileiro Frei Leonardo Boff: “ Fui interno dos jesuítas por vários anos; eles deram-me disciplina, mas não me ensinaram a pensar. Na prisão, lendo Marx, aprendi a pensar. Por causa da pressão norte-americana, tive que me aproximar da União Soviética. Mas se tivesse na época uma teologia da libertação, eu seguramente tê-la-ia abraçado e aplicado em Cuba” –Fraternizar, nº 163-Outubro/Dezembro
Amiga Lígia, talvez nunca leias este texto mas ele é também uma homenagem à tua coragem, à tua alegria, à tua energia de “antes quebrar que torcer”, ao teu amor filial, e mesmo à tua dedicação aos animais: uma vez disseste, e eu nunca mais esqueci, que “quem gosta de animais não pode ser má pessoa”. Sabes uma coisa, o meu filho João e a minha filha Eliana – sabias que eu agora também tenho uma filha? – levaram daqui uma gatinha para a sua casa em Genebra? Puseram-lhe o nome de Aia (divina/santa) que era o nome da mesquita que hoje é a basílica de Santa Sofia em Istambul. Terá sido uma forma de recordar a sua viagem de núpcias, homenagear um povo de que muito gostaram e repudiarem a guerra entre culturas. (É interessante que, na semana em que estou a escrever este texto, o Prémio Nobel da Literatura foi atribuído a Orham Pamuk, natural de Istambul que “ em busca da alma melancólica da sua cidade natal, descobriu novos símbolos para o choque e o cruzamento de culturas” e que é uma figura polémica no seu país pelas intervenções sobre a liberdade de expressão e direitos humanos). Coincidências... Caminhos…

" 25 de Abril, meu Poema de Natal”

Narrador

A peça que vos vamos apresentar é verdadeira.
A sua autora, aqui representada na figura da criança, viveu-a e sofreu-a com tal intensidade que, ainda hoje, passados tantos anos, a recorda de lágrimas nos olhos e com o coração a sangrar.

Apresenta-se em três momentos distintos, sendo dois no tempo do fascismo e o último após o 25 de Abril

Cena 1 – Ano de 1935 – Véspera de Natal/Noite de Consoada ( no centro da cena, um pinheiro com uma bola grande, colorida e uma mesa posta para a “Ceia de Natal”)

Criança- Estás triste, mãe?
Mãe ( suspirando)- Não, minha filha. Estou um pouco preocupada. Brinca, que o pai não tarda.
Criança – O pinheiro não se importa se eu lhe tirar a bola, pois não?
Mãe – Não. Ele não vê. Não sente.
Criança – Tadinho!... Os homens tiraram-lhe a vida...
O pai demora-se tanto... Porquê?
Mãe- Não sei, minha filha...
Criança – Se calhar, foi comprar-me alguma prendinha, mas não era preciso. Ele já me deu esta bola e é tão linda. Nunca vi bola tão linda!....
Mãe – Tens fome? É melhor jantares.
Criança – É noite de Natal. Não como sem o pai...

( Batem à porta. A mãe abre a porta e a filha corre para o pai)

Narrador
E o pai esperado vem com duas feras, de dentes afiados, garras aduncas, qual mancha de horror num quadro de amor e paz.

Mãe.- Quem são os senhores?
Pide 1 – Vamos levar o seu marido. Vai preso.
M. – Mas porquê? Que fez ele?
Pide 2 – Porquê? Então não sabe que ele é um criminoso? Luta contra o fascismo. Luta pela liberdade do pensamento. Por uma igualdade de direitos.
Mãe- Desde quando lutar pela liberdade é crime? Ele é um bom marido, um bom pai...
P 1. - Cale-se que não temos tempo para explicações. Viemos aqui para revistar a casa. (Enquanto os pides revistam a casa, pai, mãe e filha abraçam-se em silêncio)
Pai – Deixem-me passar a consoada. Venham amanhã...
P2. – Cala-te. Nem devias ter direito a respirar, quanto mais a comer. (Dá-lhe um encontrão)
Criança – (Desata aos pontapés). Homens feios... maus...
Não levam o meu pai. Não levam... Quem são eles, pai?
Pai- São pides, minha filha... São pides. Não chores...
P1. – Despachemo-nos. Temos a família à espera.
Vamos cear tardíssimo.
C. – Senhores pides... deixem ficar o meu paizinho...
P2. – Cala-te, catraia mal educada. Tens uma bola tão linda... Dá cá. (arranca-a da mão e pisa-a quebrando a bola com estrondo)

Narrador- E a bola linda, linda, desfez-se em mil bocados e a criança chora. Não sabe se chora os dedos pisados, se a ceia que não come, se o pai que parte.

Cena 2 – Mãe e filha frente à sede da PIDE, no Porto

Criança - É naquela casa grande e feia, que está o pai?
Mãe – Não sei, mas creio que sim.
(Aparece uma senhora a chorar contidamente)

Mãe - Que tem a senhora?
Senhora - O meu marido acaba de partir com aquele amontoado de farrapos humanos . Não sei para onde o levam, talvez para o Forte de Peniche, talvez para o Tarrafal, para Cabo Verde...
Mãe- Cabo Verde?
Senhora -. Sim. Na ilha de Santiago. É terrível. Lá, colocam-nos na frigideira. É um espaço pequeno, rodeado de paredes altas, por onde entra o sol
Quando entrou o seu marido?
Mãe- Na véspera de natal. Não mo deixam ver. Nem dizem onde está.
Senhora – Deve estar na Enxovia; chamam-lhe “ segredo”.
É uma cave escura, por onde escorre água. O chão está coberto de lama. Veja se consegue chamá-lo, ali, nas grades.
Criança- ( Chama junto das grades, rentes ao chão) Pai! Estás aí?! Dá um sinal!
Mãe! Acendeu-se uma luzinha...
S.- Sim, está ali o seu marido. Acendeu um fósforo.
C. – Pai! Anda para casa. A mãe chora muito!

Narrador – O fósforo fazia sinais e na sua luz minúscula dizia: estou vivo. Estou aqui.
Mãe- A sua cara não me é estranha. Quem é a senhora, que tem tanta prática destas coisas?
Senhora- Sou a Virgínia Moura. O meu marido esteve cá muito tempo... Assistiu e foi vítima de brutais espancamentos. Levam-no tão doente... Mas hei-de continuar a sua obra: lutar pela liberdade e por todos os direitos da humanidade.
M.- E não teme que a prendam?
S. Minha amiga, quando se luta com as armas da justiça e da razão, nada se receia. E se o medo nos amarrar, seremos eternamente vassalos deste fascismo. Havemos de vencer!
Criança- Mãe! Também quero ajudar. Vamos à luta, que nada havemos de temer. Vem, mãe! Parece que há muito que fazer.
Havemos de vencer e eu sentirei orgulho de ser filha dum prisioneiro da Pide.


Narrador
E o pai regressou a casa. E o pai voltou a ser prisioneiro várias vezes e o pai regressava a casa. À casa sempre rodeada de figuras sinistras, que roubavam a paz, invadiam a intimidade, amordaçavam a boca, controlavam o escrever e empurravam os jovens para matar os seus irmãos de cor...


Cena 3 – 25 de Abril de 1974

(Ouve-se, em fundo, a “ Grândola, Vila Morena” )

Filha (já adulta- de mãos dadas com a mãe e com o pai, exclama excitada): – Minha mãe! Meu pai! Li-ber-da-de ! Vamos para a rua, festejar com toda a gente!
Valeu a pena lutar. Chegou a vitória merecida!
Mãe- Oh! Madrugada de 25 de Abril!
Valorosos capitães, arautos das lutas de muitos pais, muitas mães e crianças!...
Pai- Bem hajam! Devolveram-me a vida! Soltaram esta pena que escreve! Acabaram as mordaças e as grades... do meu pensamento!...
Filha- E trouxeram os jovens inteiros... ou partidos como a minha bola de cristal

Pai- 25 de Abril, minha liberdade! Minha luta de 40 anos!

Filha- 25 de Abril, meu poema de Natal!


(No fundo da cena, “ manifestação” de jovens com slogans de Abril).
A terminar:
Todos: “ O Povo unido jamais será vencido!”; “ 25 de Abril Sempre, Fascismo nunca mais”; 25 de Abril Sempre” ( Ao dizerem avançam para a boca da cena, empunhando cartazes com os slogans mais vulgares da revolução de Abril)

segunda-feira, outubro 09, 2006

CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES?

1ª Etapa

Quando era criança, comecei muito cedo a ouvir falar dos Mouros. Nas minhas primeiras memórias, os Mouros eram pessoas inteligentes, fantásticas, finas, elegantes e bonitas. Maus eram os Judeus e os Romanos que tinham crucificado Jesus.
A propósito da Serra de Valongo, “Cuca-Macuca” para os Mouros, contava-se que eles, quando foram expulsos, cantavam, chorando:
“ Ó serra da Cuca-Macuca
Tanta pena nos deixais.
Atirais com ouro às cabras
E não sabeis com qu’atirais.”
E minha mãe explicava-me que os “fojos” (poços muito profundos que rasgam a serra e sobre os quais se contavam histórias mirabolantes) da serra de Santa Justa foram feitos pelos Mouros que de lá tiraram muito ouro, mas os pastores que viviam na serra não sabiam que, ao atirarem pedras às cabras, estavam a atirar pedaços de ouro. E eu pensava : os Mouros é que eram inteligentes. E admirava-os porque conseguiram fazer poços tão fundos só para irem buscar ouro. Parvos eram os pastores.
A primeira vez que fui ao S. João de Sobrado, para ver a luta entre os Mourisqueiros (Mouros) e os Bugios (Cristãos), fiquei impressionado. Os Mourisqueiros vestiam casacos ricos e brilhantes, engalanavam-se com chapéus coloridos e com vidrilhos, o chefe montava um lindo cavalo e todos tinham um comportamento de grande dignidade que impunha respeito. Os Bugios, pelo contrário, vestiam pobremente, metiam-se com as pessoas e faziam patuscadas, por vezes, atrevidas e malcriadas, de que eu não gostava. Sei que no fim da luta, eram os bugios que ganhavam mas era porque Nosso Senhor protegia os cristãos.
Quando me contavam histórias de Mouras, estas eram sempre princesas muito bonitas e ricas que se apaixonavam por cavaleiros cristãos.

2ª Etapa
Mais tarde, na escola, comecei a estudar a história de Portugal, fiquei a saber que os Mouros eram maus. Bom era D. Afonso Henriques que os derrotou e a quem Nosso Senhor apareceu em Ourique. Ele, sim, era um santo… Os Mouros eram infiéis e inimigos dos portugueses. Esta impressão negativa substituiu a anterior e perdurou durante algum tempo.

3ª Etapa
Quando, mais tarde, soube que foram os filósofos árabes que deram a conhecer Aristóteles ao Ocidente, que o grande S. Tomás de Aquino fora acusado de averroísta (Averróis e Avicena foram grandes filósofos árabes)… que os melhores médicos dos nossos reis eram judeus e mouros… que a primeira fábrica de papel da Europa foi criada pelos Árabes na Península Ibérica… que foram os Mouros que trouxeram para a nossa terra a nora ( que na minha aldeia se chamava “engenho” e à volta do qual passara muitas horas a tocar os bois ) e o açude ( que se chamava “levada” onde muitas vezes tomei banho)…que trouxeram as laranjeiras, as figueiras…Quando, ainda mais tarde, me extasiei perante a beleza do Alhambra…comparei a luz, a elegância das colunas e dos arcos da Mesquita de Córdoba com o aspecto pesado, sombrio e atarracado das nossas igrejas românicas…quando soube como os Mouros tratavam os “Moçárabes” (cristãos que viviam nas terras conquistadas pelos Mouros), como respeitavam o exercício da sua religião…
… recordei as minhas primeiras impressões de infância e admirei a cultura desses povos que, nessa época, viviam num florescimento civilizacional muito superior aos povos cristãos europeus. Era uma cultura urbana e comercial enquanto os cristãos viviam numa cultura profundamente rural e agro-pecuária de subsistência. Era de facto uma cultura superior e tolerante. Atrasados éramos nós com inquisições e cruzadas…

4ª Etapa
E actualmente? Que se passou? Como se explica que as duas culturas tivessem feito evoluções tão contraditórias?
Sei que o Ocidente muito deve a uma plêiade de pensadores e homens de ciência do início da Idade Moderna, de que destaco Galileu no domínio da Ciência (revolução técnico-científica) e Descartes (revolução antropológica- o homem como sujeito de direitos). E a cultura ocidental transformou-se na grande defensora dos direitos humanos, da democracia e em grande factor de progresso, embora, por vezes, com excessos que romperam com o equilíbrio ecológico e, não posso esquecer, fabricou e usou a bomba atómica. E a Igreja foi capaz de produzir um “Concílio Vaticano II”. Quão longe estamos do espírito de cruzada que marcou a Idade Média, embora apareçam alguma expressões cristãs retrógradas e fundamentalistas, especialmente nos E.U.A, de que é exemplo o próprio presidente Bush.
E o Mundo Islâmico?
* Salmon Rutscid (?) é condenado à morte por ter publicado “Os Versículos Satânicos” com uma concepção tida como herética pelos líderes muçulmanos.
* Bento XVI é ameaçado de morte, surgem ameaças de bombardeamento do Vaticano, uma freira é assassinada, porque o Papa, numa lição dada na sua Universidade de Ratisbona que versava as relações entre a Fé e a Razão, citou um Imperador bizantino do séc. XIV, com uma frase que os extremistas islâmicos aproveitaram para acicatar os crentes contra o Ocidente (mesmo assim, penso ter-se tratado de uma citação inoportuna porque, retirada do contexto, pode parecer que o alinha com as teses belicistas de Bush e desnecessária porque não fazia falta à clara exposição da sua tese)
* Foi o caso das caricaturas de Maomé na Dinamarca e toda a questão da liberdade de imprensa que os radicais islâmicos não compreenderam nem aceitaram.
* A Deutsche Oper de Berlim eliminou do seu reportório (temporariamente?) a ópera Idomeneo de Mozart porque não quis que os seus funcionários e o próprio edifício fossem objecto de um ataque terrorista islâmico só porque, no final da peça, apareciam várias cabeças decepadas entre as quais a de Maomé e a de Cristo ( por que não temeram um ataque dos cristãos?)
* Duas aldeias do sul de Espanha suspenderam as suas festas tradicionais porque os muçulmanos e o próprio Maomé não eram muito bem tratados e temeram represálias terroristas.
* A questão do véu, que já tantos problemas levantou na França, republicana e laica, surgiu novamente, agora na Inglaterra, monárquica e anglicana, onde o antigo ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Jack Straw afirmou que prefere ver a cara das mulheres que falam com ele. Esta simples palavras suscitaram reacções nos responsáveis muçulmanos que as consideraram como “ofensivas e perturbadoras”. E, no entanto, o Corão diz apenas que as mulheres não devem exibir a sua beleza na presença de homens que não sejam o marido ou familiares. Por isso, as exigências divergem: há quem afirme que o hijad (o véu que cobre cabelos e pescoço) não é suficiente e recomende o niqab que tapa toda a cabeça e rosto deixando apenas espaço para os olhos; enquanto há outros, como os talibans que impunham a burqa (manto que tapa toda a mulher, com uma rede na frente dos olhos) Há mulheres que usam, ainda, luvas de modo a não exibir qualquer pedaço de pele.
* Será que nós vamos voltar a ter um Lusíadas com censuras em que os pontinhos (………..) substituem as passagens que se referem a Maomé e aos Mouros de modo depreciativo ( “torpe ismaelita”, “bárbaro gentio”) , à maneira do que se fazia nos meus tempos de estudante a propósito de certas passagens mais eróticas como o Canto IX?
* Será que no S. João de Sobrado o final do combate terá de ser alterado?

Choque de civilizações?
Homi Bahabha, indiano, educado em Oxford, investigador em Harvard, afirma que não há choque de civilizações mas sim antagonismos políticos. Os antagonismos têm mais a ver com a forma como evoluíram as relações (políticas, históricas, sociais e morais) entre as culturas do que com a natureza da cultura em si. E eu estou de acordo.
Os gregos diziam que a boa harmonia de uma sociedade política assenta no equilíbrio de um tripé: o “pathos” (a emoção/paixão), o “logos” (a razão) e o “ethos” (a ética/virtude). Interrogo-me: não será que os conflitos entre o Islamismo e o Ocidente não resultará duma hipertrofia/hipotrofia de um dos pés? Não será que a civilização ocidental exagera o “logos” sem “pathos” em que a razão económica é quase exlusiva, com razão a mais e emoção a menos? Os líderes islâmicos radicais não estarão a aproveitar-se de um “pathos” sem “logos” para levar muitos crentes ao martírio suicida dos “homens-bomba, emoção a mais e razão a menos?
Por tudo isto gostei da atitude de Bento XVI que explicou aos diplomatas dos países muçulmanos o seu pensamento que, na linha do explícito no Vaticano II, respeitava profundamente o islamismo que, como nós, adora o Deus Único Abraâmico e apelava ao diálogo inter-religioso. Mas…Ainda não entendi a postura do Papa. Por que fez aquela citação? Quando foi mais autêntico consigo próprio em Ratisbona ou no encontro com os embaixadores? Por que não pediu desculpa? Aos muçulmanos? - À freira que terá sido assassinada por sua causa. Poderá dizer-se que ele não teve culpa na sua morte. Para mim teve. Trata-se da situação que em Ética se chama um acto voluntário “in causa”.
O caminho é a diálogo inter-cultural com especial relevância para o diálogo inter-religioso: autêntico, sem etnocentrismos mas também sem relativismos.

quinta-feira, outubro 05, 2006

A PROPÓSITO DE UM PRÉMIO

Ontem, dia 4 de Outubro, foi atribuído ao médico, Dr. Albino Aroso, o I Prémio Nacional de Saúde de 2006 pelos “contributos inequívocos, prestados no decurso do seu longo desempenho profissional”, e a quem, em Outubro de 2004, a Associação Médica Mundial colocou na restrita lista de 65 clínicos de todo o mundo “mais dedicados a causa públicas no campo da saúde”.
Quero aproveitar esta data para me associar a estas homenagens a um homem que foi meu apoio, e com o qual me identifiquei, num assunto muito delicado da minha actividade pastoral. Seguindo uma expressão em voga, direi: foi assim.

O início da minha actividade pastoral (década de sessenta) coincidiu com a divulgação da pílula como método anticoncepcional. Reinava uma enorme confusão sobre as incidências desse método na ética cristã e, por isso, debatíamo-nos com muitas incertezas e inseguranças. Alguns sacerdotes mais antigos não tinham grandes problemas em negar a absolvição às mulheres que usassem a pílula. Mas, eu…
Foi, por isso, com grande ansiedade e esperança, que me inscrevi numa quinzena pastoral que decorreu no Seminário da Sé. Para além de outros temas de ordem pastoral com muito interesse e acuidade, o problema da pílula foi desenvolvido pelo Dr. Albino Aroso que, com todo o entusiasmo, saber e sensibilidade humana e cristã, nos falou da necessidade do planeamento familiar. Explicou os diversos métodos de controlo de natalidade, desde o da temperatura até ao da pílula. Apontou vantagens e desvantagens de cada um dos diversos métodos, mas indicou claramente que o da pílula era o que apresentava maior eficácia, não contrariando a ética cristã e, por, isso, como médico, não tinha qualquer problema de consciência em o prescrever. No entanto, avisou que, como qualquer medicamento, não deveria ser tomado sem o conselho de um médico. No final da conferência e após muitos esclarecimentos, D. Florentino, Administrador Apostólico da Diocese do Porto, durante o exílio do Bispo Residencial, D. António Ferreira Gomes, disse, de modo muito claro: “ a pílula é um problema de ordem médica, os sacerdotes não têm que se meter nem dar conselhos sobre um assunto médico, mas devem orientar as pessoas para consultar um médico com boa consciência cristã”. Foi o que eu queria ouvir. A partir de aí, sempre que me aparecia uma senhora com o problema da pílula, eu aconselhava-a a dirigir-se ao Dr Albino Aroso e ao serviço de planeamento familiar do hospital de Santo António que este dirigia. Não tive mais problemas de consciência: se não era pecado não tinha que dar ou negar a absolvição.
Sempre pensei que a Igreja é, pela vontade do seu fundador, uma instituição colegial e não monárquica, e muito menos imperial, porque Cristo, ao dizer anunciai o evangelho a todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-os a observar tudo o que eu vos mandei, concedeu o poder sacerdotal a todo o colégio apostólico de que os bispos são sucessores. O Papa é o Bispo de Roma e, como tal, sucessor de Pedro a quem Cristo constituiu garante da unidade da Fé, vínculo da Caridade e o primeiro no Serviço, como “ servo dos servos de Deus”, dando-lhe o primado entre os apóstolos, um primado de poder, na medida em que na igreja poder é servir. O Sacramento da Ordem contém três graus: diaconado, presbiterado e episcopado. O papado não é sacramento. Cada Bispo é o responsável pela Palavra de Deus, pelos Sacramentos e pela Administração/Caridade, na sua Diocese, como parcela do Povo que Deus lhe confiou. Eu, como pároco, detinha um poder vicarial cuja fonte de legitimidade era o meu Bispo. Nunca entendi por que razão, sendo cada Bispo o único responsável pela ordenação de um sacerdote, sem qualquer interferência do Papa, só este tenha o poder de conceder a dispensa das obrigações inerentes ao estado sacerdotal quando um presbítero pretende deixar o exercício do sacerdócio. Tenho medo das instituições onde é mais fácil entrar do que sair…
Com o decorrer dos anos, comecei a ter algumas dúvidas porque as orientações do Papa começavam a divergir com o que nos dissera D. Florentino.
Mas, como este nem o D. António, nunca deram orientações contrárias ao que nos fora dito, eu mantive-me fiel a essas orientações, no domínio da consciência privada. As maiores interrogações advinham-me quando realizávamos cursos de noivos. Porém nunca contradisse o médico que tratava o tema “diálogo carnal”, onde o assunto do planeamento familiar e do uso da pílula era desenvolvido. “ Os jovens já têm tantos problemas… não vamos nós, cristãos, ainda criar-lhes mais problemas de consciência”, dizia-me o Dr. Ferronha. E eu tinha que concordar e lembrava-me de S. João que dizia Deus é Amor e de S. Paulo que afirmava a lei mata, o espírito vivifica. Mas, embora sabendo que em Moral não há Dogmas, embora a moral seja dogmática, não ficava totalmente descansado. Como cristão, não tinha dúvidas, mas como ministro da instituição eclesiástica…
Sentia-me numa situação paradoxal e interrogava-me se seria correcto continuar ministro de uma instituição com a qual não me identificava num tema tão importante para a vida das pessoas. Não estaria a atraiçoar uma instituição que confiava em mim, não defendendo todas as suas teses? Não estaria a atraiçoar as pessoas que confiavam em mim, apresentando-lhes uma face demasiadamente simpática e atraindo-as para uma instituição que não corresponderia totalmente aquela que lhes apresentava? Não estaria a atraiçoar-me a mim próprio que pusera ao serviço da igreja o meu sacerdócio mas não renunciara à minha humanidade? Perguntas, questões…

domingo, outubro 01, 2006

CONVERSANDO COM UM AMIGO...

Anteontem, foi lançado um livro cujo título - “O Último Papa”- fora objecto de uma muito bem orquestrada campanha publicitária. Ao ler uma recensão no jornal “Público” de hoje, fiquei muito espantado porque “o livro defende uma teoria da conspiração que mistura o assassinato, em 1978, de Albino Luciano, que foi Papa, João Paulo I, com a morte de Francisco Sá Carneiro num desastre de avião em 1980”.
Não tinha intenção de ler esse livro porque estou cansado de “trillers” históricos que, com uma intriga policial, exploram o tema religioso porque este vende bem quando se envereda por caminhos imaginativos e apócrifos. Mas, e nisso mostram que foram espertos, irei lê-lo para me inteirar do modo como o autor aborda uma tese que, à primeira vista, me parece absurda. Irei lê-lo, especialmente, porque fala de um Papa que, nos seus 33 dias de papado, me pareceu um homem simples, humilde e pouco identificado com a magnificência da Cúria Romana, cuja morte ficou sempre envolta em mistério e fala de si por quem, além da amizade, nutro muita estima e a quem me ligam muitas e boas recordações.
Foi, por isso, que resolvi fazer uma romagem à memória e vivenciar alguns momentos belos que partilhámos.

CONVITE PARA A DIRECÇÃO DA OBRA DIOCESANA DE PROÇÃO SOCIAL DA CIDADE DO PORTO
O nosso primeiro contacto foi em 1969, quando, como representante do senhor Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, lhe telefonei solicitando uma audiência. Recebeu-me no seu escritório na rua da Picaria.
Comecei por me apresentar como sacerdote responsável pela Obra Diocesana, criada pelo D. Florentino, em 1964. Expliquei-lhe que o D. António estava muito interessado em promover a Obra, desejando nomear nova Direcção. Essa a razão da minha presença: queria convidá-lo para Presidente da Obra Diocesana. Explicou-me que não estava “ muito enfronhado” nesses assuntos, e, razão principal, estava a preparar um projecto-lei para, como deputado, apresentar à Assembleia Nacional que iria causar muita fricção junto da hierarquia católica e do catolicismo tradicional: iria propor uma alteração à Concordata que possibilitasse aos casais casados catolicamente poderem pedir divórcio civil, como acontecia aos que casavam só pelo civil. Confessei-lhe que essa lei me causava angústia sempre presidia à celebração de um casamento porque “acorrentava” os católicos perante a lei civil e garanti que isso não seria impedimento para a sua participação na Direcção. Compreendia, no entanto, as suas reticências por causa das suas deslocações a Lisboa e, por isso, convidava-o para fazer parte da Direcção Disse-lhe, ainda que iria convidar para a Direcção duas pessoas que talvez conhecesse: o Arquitecto Fernando Távora e a Assistente Social D. Elisa Acceioli Barbosa que assumiria, possivelmente, o cargo de presidente. Então, afirmou-me que aceitava o convite e teria muito gosto em trabalhar connosco.

NA DIRECÇÃO DA OBRA
Depois da posse, começámos a encontrar-nos às 4ªs feiras na reunião de Direcção, nas instalações da Obra, na Casa Episcopal.
Para além da seriedade que punha em todas as discussões, habituei-me a admirar a clareza das suas ideias e a lógica do seu raciocínio. Relembro apenas alguns pormenores…
Quando íamos reunir com a Câmara Municipal do Porto, com quem as relações não eram as melhores após a morte do Dr. Nuno Pinheiro Torrres, sempre nos lembrava: “ se a mãe estiver, eu não falo” (a mãe era a D. Maria Francisca Lumbrales Sá Carneiro que, à época, era a vereadora da Assistência Social). De facto, quando a D. Maria Francisca estava presente, era vê-lo em silêncio do princípio ao fim do encontro: a conversa ficava a cargo dos outros elementos presentes. Admirei sempre essa preocupação de nunca entrar em conflito com a mãe.
Lembra-se da profecia do Arquitecto Fernando Távora. Já não recordo o ano (talvez 1972, 1973). Foi numa época em que as relações da Obra com o Governo viviam momentos difíceis. E quando, preocupados, nos interrogávamos sobre os caminhos a trilhar, o Arquitecto diz calmamente: “estamos para aqui tão preocupados com o Governo quando daqui a algum tempo tudo será resolvido.” Todos olhámos surpreendidos para ele: como? E com a serenidade que lhe conhecíamos, afirma: “porque, daqui a algum tempo, quem vai mandar nisto (no Governo) é aqui o Chico.” Rimo-nos. E o Arquitecto, muito sério, reafirmou:” não tenham dúvidas!”
Retenho, ainda, dois episódios que relembro muitas vezes. Uma vez, disse-me: “ Isto está a mudar por dentro. Um afilhado do Marcelo Caetano começa a estar do nosso lado. É um rapaz muito esperto”.(Mais tarde, apercebi-me de que estava a falar do Marcelo Rebelo de Sousa). Num outro dia, disse-me: “ Hoje fui entrevistado por um jornalista do “República” que me deu muito trabalho para me desviar das suas intenções. É um rapaz novo, açoriano, muito inteligente e muito perspicaz.” (Penso que esse rapaz era o Jaime Gama.)

DEPOIS DO 25 DE ABRIL
Os nossos caminhos separaram-se.
Como sabe, alguns padres novos do Porto, unidos no essencial, divergíamos quanto aos nossos patronos jurídicos: havia um grupo que se aproximava mais do Mário Brochado Coelho, que depois foi um dos líderes da UDP, e eu era dos que tínhamos a si como nosso patrono jurídico/político. Sabe que partilhávamos as mesmas ideias sobre um Estado de Direito (Ainda guardo o livro “VALE A PENA SER DEPUTADO” que me ofereceu com a sua dedicatória, em 9 de Janeiro de 1974, quando eu lhe entreguei um exemplar da homilia que um grupo de 17 padres do Porto fez no dia da Paz desse ano – 1 de Janeiro - e que nos valeu a suspensão do passaporte).
Fiquei atento e esperançado quando fundou o Partido Popular Democrático. Inicialmente, fui leitor atento do “Povo Livre”. Mas depois verifiquei que algumas das pessoas que, na minha paróquia, apareciam ligadas ao partido eram daquelas que, antes, alinhavam com o regime, não aceitavam as suas intervenções na Assembleia Nacional e me acusavam de fazer política contra o Governo. Fiquei desiludido. Por isso, me desviei , pensando que, assim, estaria a ser mais coerente com aquilo que partilháramos.

O ÚLTIMO ENCONTRO
Foi em Novembro (?) de 1980, na inauguração das novas instalações do Centro Social de S. Roque da Obra Diocesana de Promoção Social do Porto. A direcção da Obra Diocesana, de então, resolveu fazer-lhe uma surpresa a si que, como Primeiro-Ministro, vinha presidir a essa inauguração. Para isso, convidaram os elementos da Direcção da Obra a que você pertencera. Recordo-me como se fora hoje. Quando saiu do carro e nos viu, ficou com ar de espanto mas muito feliz. Foi a Elisa Barbosa que primeiro o cumprimentou, seguindo-se um abraço ao Arquitecto Távora. Quando chegou a mim, que me fazia acompanhar pelo meu filhito João Miguel, de três anos, ficou um pouco hesitante. (Desde que foi para Lisboa, nunca mais nos víramos. Eu, entretanto, deixara o exercício do sacerdócio, o meu bigode crescera preto e farfalhudo, casara e já tinha dois filhos.)
O Arquitecto, com aquele ar brincalhão que lhe conhecíamos, diz-lhe: -“ Não está a reconhecer”. – “ Lembro-me da voz, mas…” - “ E se eu lhe disser que é o nosso Padre João?”- “Pois é! Mas que se passou?” (e deu-me um apertado abraço). Então, eu sorri-me e disse: - Agora já não sou o Padre João, mas sim o Pai João (e apresentei-lhe o meu filho João que segurava pela mão). Esqueceu-se da comitiva, meteu-me o braço, e, enquanto nos dirigíamos para o Centro Social, quis saber tudo o que me tinha acontecido. Mesmo depois da inauguração e enquanto visitávamos a instalações inauguradas, continuámos a conversar e o João Miguel, baixinho, ia-me dizendo “ quero fazer uma pergunta”. Perante tanta insistência, interrompi a nossa conversa e informei-o do desejo do meu filho. Inclinou-se e, afagando-lhe a cabeça, perguntou: -“Então diz-me cá o que queres saber?” E o João Miguel não perde tempo e dispara: “ Ontem, eu vi-o na minha televisão. Como é que saiu de lá?” Demos uma enorme gargalhada, pegou nele ao colo o que muito espantou toda a comitiva que nos seguia. Não sei se a sua explicação o convenceu, o que lhe posso garantir é que ganhou um amigo. Nos dias seguintes, sempre que o via na televisão, não se cansava de repetir “olha o meu amigo!” .Foi com grande estupefacção e enorme mágoa que soubemos da sua morte, mas, para não traumatizar o menino, foi assunto de que não se falou durante vários dias. Mudávamos de canal sempre que se falava da sua morte.
Amigo, esta é uma das grandes vantagens da memória: se ” não há machado que corte a raiz ao pensamento… não há morte” para uma amizade que se cimentou no respeito, na estima, no trabalho e na cumplicidade.