O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, junho 30, 2021

SANTIDADE AO PÉ DA PORTA

“Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Esta é muitas vezes a santidade «ao pé da porta», daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus.” Quando, no 3º aniversário da sua publicação (19/3/2018), relia a ‘Exortação Apostólica sobre a Santidade’ encontrei, nos arrumos do confinamento, uma homilia feita em1961 numa aula de Eloquência de que era professor o saudoso Dr. Pardinhas. Ao partilhá-la, quero prestar homenagem aos meus professores do Seminário Maior de que evoco D. Serafim, bispo emérito de Leiria-Fátima, e o Cónego Ferreira dos Santos que connosco peregrinam. Uma oração pelos que já partiram para a Casa do Pai. “Sede perfeitos como vosso Pai é perfeito. Jesus não diz: se quiserdes, sede perfeitos, mas, sim, ‘sede perfeitos’. Não se limita a aconselhar. Ele ordena-nos a santidade.” Que santidade? - “Não uma santidade negativa que consiste só em não pecar. Ele quer, exige uma santidade baseada no amor a Deus e ao próximo. Sim, amor ao próximo porque sem ele não pode haver verdadeiro amor a Deus, como ensina S. João.” Caridade baseada na Fé - “A caridade para com o próximo não é mera simpatia humana, não é simples amizade, não consiste só em sentimentos de compaixão ou em dar esmolas. O amor ao próximo deve ultrapassar as razões humanas para se alicerçar em Deus que é o seu fundamento. Amar o próximo é comungar dos seus sentimentos, é sofrer com a sua dor e alegrar-se com a sua alegria; é compartilhar dos seus problemas.” “Por vezes, fechamo-nos, satisfeitos da vida, na torre duma santidade ilusória, num desinteresse total para com os problemas dos nossos irmãos que, afinal, são problemas do Mundo e da Igreja. Todo aquele que assim procede nada compreendeu do verdadeiro Cristianismo, cuja essência e nota fundamental é a Caridade. Vive um cristianismo à sua maneira que pode ser tudo, menos o autêntico cristianismo.” Oração vital - “A nossa oração deve ser um oferecimento, uma entrega total a Deus – qual criancinha que se abandona nos braços do pai – deve ser feita com a vida. Por vezes, temos uma vida como que dividida em compartimentos estanque, distintos e incomunicáveis. Entre esses, existe também o compartimento da oração que é como outro qualquer. Aqui é que está o erro fundamental. A oração não deve constituir um compartimento à parte, ela está acima, ela deve penetrar todos os sectores da nossa vida, deve ser o órgão ordenador de todos os nossos actos, deve sobrenaturalizar todos os nossos momentos.” Oblação completa - “Ofereçamos a Deus toda a nossa vida tal como ela é, cheia de rosas e espinhos, com suas alegrias e sofrimentos. Este é o meio mais eficaz para nos santificarmos e como tal, contribuirmos para a santificação do nosso próximo pois “uma alma que se eleva, eleva o mundo”. Se assim fizermos, a nossa vida será um rosário contínuo de amor a Deus e ao próximo. Os sofrimentos, os desgostos, os trabalhos já não nos causarão desânimos. Seremos verdadeiros heróis nos mil-e-um sacrifícios que nos exige a vulgaridade de cada dia.“ Que estas reflexões bem antigas nos ajudem a celebrar o fim do mês consagrado ao ‘Coração de Jesus’.(30/6/2021)

terça-feira, junho 22, 2021

DE OLHOS HUMEDECIDOS...

Dois meses são passados… Iam húmidos meus olhos quando, na manhã do dia 22 de abril, me encaminhava para a Catedral onde iriam decorrer as exéquias do Dr. Marques, o meu primeiro professor de filosofia. Faltava mais de meia hora para o início da cerimónia. E foi numa igreja ainda vazia, com o seu caixão no chão da capela-mor, que, na penumbra medieval, rebobinei a fita do tempo. Conheci-o, em 1954, no Seminário de Vilar. Era “o senhor vice-reitor”. Em 1956, fez-se-me mais próximo como professor de filosofia. Pude, então, aperceber-me da clareza das suas ideias, da agudeza do seu espírito e do fino recorte do seu humor. Nasceu-me aí o gosto pela filosofia que marcou a minha vida académica e profissional. Nas conversas particulares, fazia-se ainda mais próximo e revelava toda a sua preocupação com os alunos como aconteceu comigo na véspera das eleições para a presidência da República de 8/6/1958. Ao ver-me sair, de batina, para ir alugar as “roupas” ao senhor Valverde da rua de Santo Ildefonso e as “cabeleiras” ao senhor Gomes da rua Formosa, para o drama “Deus escreve direito…” que, no dia seguinte, iríamos representar na “Academia de Despedida”, alertou-me para os assomos anticlericais que, então, agitavam a cidade. E foi com um sorriso de satisfação que acolheu o meu regresso. Nessa ‘Academia’, cantámos “Saudade e gratidão, eis a nossa despedida, saudade porque nos vamos, gratidão por toda a vida”. Com o passar dos anos, a saudade fez-se nostalgia, a gratidão avolumou-se e revivia-se sempre que encontrávamos algum professor. Foi o que aconteceu em 20 de outubro de 2012, quando o Coro Gregoriano do Porto, a convite do pároco, P. Rodolfo Ferreira, foi cantar a Santo Isidoro, terra do Dr. Marques. No fim da cerimónia, já no adro, ele esperava-nos. Recuámos no tempo. Que alegria! Parecíamos um bando de catraios – já grisalhos- a rodopiar à volta do mestre. Ele sorria e ‘metia-se’ com todos. É bem verdade que, enquanto os nossos professores forem vivos, nós somos sempre meninos… Experimentei o mesmo sentimento no nosso último encontro. Vinha ele dum tratamento na clínica do Estádio do Dragão. Apaixonado pelo FCP, sentia-se bem por estas bandas. Ao entrarmos no Metro, minha esposa disse-me: -“Vai ali o teu professor”. Sentamo-nos junto dele. Olhou-nos surpreendido. Conversámos. Quis saber da nossa vida, dos filhos e netos. Quando lhe perguntei como conseguia manter a sua boa forma, ele, olhando com um sorriso maroto para minha esposa, respondeu-me: -- “É que eu não tenho mulher”. Foi a última vez que o vimos e ficou-nos esta imagem de humor e carinho que queremos conservar. Das muitas mensagens que colhi aquando da sua morte, faço-me eco, com vénia, das palavras que o P. António Bacelar partilhou no facebook “Haveria tanto a escrever sobre tão grande Homem, Padre e Mestre… Desdobrar-se-á certamente no tempo a sua presença, parte do rasto de luz que ilumina o meu e nosso caminho. São contornos que sustentam o testemunho de uma fé inabalável mas sempre em caminho de busca, de uma paixão pela Igreja que não escondia a força redentora das suas chagas, de vivo interesse pela cultura e humanidade de que se fazia sempre construtor!” (24/6/2021)

quarta-feira, junho 16, 2021

AS OVELHAS E O PASTOR

“Eu sou o bom pastor: conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem-me”. (Jo 10, 14) Quando sinto o cheiro a terra lavrada e o São João se vai aproximando, sempre me lembro desta passagem do Evangelho. E por quê? Filho de pequenos lavradores, desde muito cedo, fui associado aos trabalhos da família. Com sacrifícios mas sem traumas. Não me conheço sem trabalhar. Comecei por ajudar minha mãe em casa: segurava no rabo da pá quando ela cozia a fornada e ia às ‘cortes’ buscar a ‘bosta’ com que calafetava a porta do forno; acompanhava-a ao moinho com uma pequena taleiga às costas e ajudava-a a levar a merenda aos campos. Levava os socos ao sapateiro, as foicinhas e as enxadas ao ferreiro. Na véspera do primeiro de Maio, cortava as giestas e colocava-as em todas as portas, incluindo nas cortes do gado e no campo do linho. Era, como se dizia, “o moço dos recados”. Ainda não andava na escola e já tocava os bois na lavra e no ‘engenho’ (nora) de tirar água. Eram horas e horas a fio… Na “primária”, no fim das aulas, ia ter com meus irmãos às agras próximas para os ajudar ou levar uma giga de erva para casa. E, mesmo assim, tinha mais sorte que os meus colegas que iam ajudar as mães a fazer as ‘penas’ das lousas… Na primavera, quando os campos eram lavrados e deixava de haver erva fresca para o gado, eu levava-o para as nossas ‘cavadas’ (bouças) onde abundava o pasto bem tenro tão necessário para as vacas que forneciam leite para as crianças do lugar. Para além destas e dos bois, também iam comigo as ovelhas, as mais difíceis de guardar. Se uma fugia, as outras iam atrás. Um dia, distraí-me e elas, sorrateiramente, desapareceram. Fiquei muito aflito, mas quando cheguei a casa – a mais de três quilómetros - já elas me esperavam junto da porta-fronha. Irrequietas e sem peias, mas fiéis… A estrada em que seguia para o monte era, na primeira quinzena de junho, percorrida, mas em sentido inverso, por rebanhos de ovelhas que iam para o Porto para serem vendidas no São João. Uma vez, cruzei-me com um desses rebanhos. Os bois e as vacas, pachorrentos, seguiram o seu caminho. O pior foram as ovelhas que se misturaram umas com as outras. E como as separar? Pequenito, andava no meio delas a identificar as minhas e a chamar pelo seu nome. Mas qual quê? Elas continuavam em serena convivência... O homem que conduzia o rebanho acabou por se zangar comigo. Agarrou na minha roda e na gancheta e atirou-as para longe. Larguei logo as ovelhas e corri em busca do meu tesouro. A roda, mais pesada, caiu entre as silvas próximas, mas a gancheta foi cair no meio do mato, bem mais distante. Quando a consegui recuperar, já bem picado pelo tojo arnal, olhei para o lado e o que vi? As minhas ovelhas estavam todas ali à minha beira a olhar-me, interrogativas. Que alívio… Eu abandonei-as mas elas, não. Ao verem-me afastar, seguiram-me, sem hesitações nem recriminações. Envergonhei-me. Que grande lição de fidelidade! Apetece-me terminar à maneira das fábulas de Esopo: “o mythos deloi oti”. Esta estória mostra que o Papa Francisco tem toda a razão quando pede aos pastores que tenham o cheiro das ovelhas porque, se assim acontece, também elas ganham o cheiro do pastor. (16/6/2021)

terça-feira, junho 08, 2021

ESTA VIAGEM QUE NOS PLASMA

“A Grande Viagem” é o título dum livro didático, de que sou coautor, editado pela Santillana, para o ensino de “História e Geografia de Portugal”. Lembrei-o ao invocar, nas vésperas do “Dia de Portugal”, o discurso que o madeirense Tolentino Mendonça proferiu nas comemorações do ano passado. D. Tolentino começou por responder à questão ‘O que é amar um país?’, com palavras de Simone Weil’: “Podemos amar um país idealmente, emoldurando-o para que permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando que esta não se modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos. São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas, quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso amor, a chama deste é muito mais pura.” Glorificou os ‘nossos egrégios avós’ em Camões e na sua dádiva, ‘Os Lusíadas’, “que nos leva por mar à Índia” e “faz-nos aportar àquela consciência última de nós mesmos.” E acrescentou que não podemos ficar por aí porque “no itinerário de um país, cada geração é chamada a viver tempos bons e maus, épocas de fortuna e infelizmente também de infortúnio”. Amar o nosso país, é amar este chão onde se agarram raízes antigas e novas vão brotando. Cada geração deve renovar, no seu húmus, a matriz da compaixão e da fraternidade: “O amor a um país, ao nosso país, pede-nos que coloquemos em prática a compaixão – no seu sentido mais nobre – e que essa seja vivida como exercício efetivo da fraternidade. Compaixão e fraternidade são permanentes e necessárias raízes de que nos orgulhamos, não só em relação à história passada de Portugal, mas também àquela hodierna, que o nosso presente escreve. E é nesse chão que precisamos, como comunidade nacional, de vincar ainda novas raízes”. Aconselhou três fertilizantes para enriquecer os nutrientes que o tempo vai esgotando. O primeiro é um pacto comunitário – “Celebrar o Dia de Portugal significa, portanto, reabilitar o pacto comunitário que é a nossa raiz. Sentir que fazemos parte uns dos outros, empenharmo-nos na qualificação fraterna de vida comum, ultrapassando a cultura da indiferença e do descarte.” O segundo exige um pacto intergeracional – “O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual. É um erro pensar ou representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros”. Temos de assinar, ainda, um pacto ambiental: “Precisamos de construir uma ecologia do mundo, onde em vez de senhores despóticos apareçamos como cuidadores sensatos, praticando uma ética da criação”. E assim, sentir-nos-emos participantes e acompanhados nesta “Grande Viagem” que vem de muito longe. “Portugal é uma viagem que fazemos juntos há quase nove séculos. E o bem maior que esta nos tem dado é a possibilidade de ser em comum, a tarefa apaixonante e sempre inacabada de plasmar uma comunidade aberta e justa de mulheres e homens livres, onde todos são necessários, onde todos se sentem – e efetivamente são – corresponsáveis pelo incessante trânsito que liga a multiplicidade das raízes à composição ampla e esperançosa do futuro”. Na última peregrinação de Fátima, D. Tolentino renovou o apelo à Fraternidade e à Esperança. (9/6/2021)

terça-feira, junho 01, 2021

A LUZ E O CANDELABRO

“Não se acende uma candeia e se a coloca debaixo do alqueire, mas no candelabro, pois assim brilha para todos os que estão na casa (Mt, 5, 14)”. Face à exploração iníqua dos imigrantes em Odemira que a pandemia veio pôr a nu, interrogava-me: – “Antes, ninguém sabia? A comunicação social não se deu conta? E as redes sociais? E acima de tudo - esta interrogação deixava-me interiormente magoado - a Igreja local não tinha conhecimento? Foi, pois, com algum alívio que vim a saber que “há anos que a Igreja denuncia situações de verdadeira escravatura no Alentejo, sem conseguir captar a atenção dos média”. Entre 2010 e 2012, ”o então bispo de Beja, D. António Vitalino, denunciou diversas vezes a exploração dos imigrantes” (JN,10/5/2021). No passado dia oito, foi a vez de o arcebispo de Évora, D. Francisco Senra Coelho, num texto “Sobre a humilhante problemática dos migrantes no Alentejo", vir “refrescar a memória cultural, social e política do país” dando realce ao documento "Despovoação e Migração no Alentejo", da Comissão Diocesana Justiça e Paz de Évora, apresentado em conferência de imprensa em 04 de dezembro de 2019. Afirmou que, quando foi divulgado, "nenhuma resposta surgiu - exceto o silêncio de muitos"- para contrariar "esta nova forma de escravatura, mesmo tratando-se de um apelo urgente com consequências de desumanização". E, para explicitar o seu conteúdo, citou várias passagens, evidenciando que os problemas relacionados com a imigração foram diagnosticados e denunciados. Já então, o Alentejo estava a "ser um dos grandes recetores" da imigração, "não só a nível sazonal, mas também a título permanente, sobretudo para trabalhos relacionados com a agricultura". O documento, depois de informar que "a migração em causa é fundamentalmente proveniente do Brasil, dos países de Leste", como "Roménia, Moldávia, Ucrânia", e "da Ásia, [como] Índia, Paquistão, Nepal", punha o dedo na ferida e denunciava com muita clareza e frontalidade: "infelizmente, em muitos destes casos, suspeita-se a existência de tráfico de pessoas com exploração das mesmas, quer por máfias dos seus países de origem, quer pelas entidades empregadoras”. O senhor arcebispo acrescentou que a Igreja, já aí, manifestava a disponibilidade para "ser um parceiro privilegiado neste acolhimento", ajudando ainda "a uma melhor integração". E deixava o repto para a denúncia de "situações anómalas e não compagináveis com os princípios e os valores cristãos" e "da boa convivência entre pessoas", independentemente "da sua raça, género, religião". Mas estas e outras palavras caíram em saco roto e não encontraram eco nos meios de comunicação nem nas instituições políticas. E que divulgação mereceram nos órgãos informativos da Igreja? E nas homilias? E nos múltiplos encontros de formação? E nas escolas católicas? E nas aulas de Educação Moral e Religiosa Católica? E nos organismos pastorais? Acendemos fósforos mas não ateamos a fogueira… Falta-nos unidade no agir profético da denúncia. Razão tem o P. Fernando Calado quando no artigo “Odemira: é preciso saber denunciar!”(JN, 10/5/2021) diz que a Igreja “terá de encontrar melhores formas para passar a sua mensagem”. O País precisa duma Igreja que ‘suje as mãos’ nas impurezas da sociedade. (2/6/2021)