O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, junho 16, 2021

AS OVELHAS E O PASTOR

“Eu sou o bom pastor: conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem-me”. (Jo 10, 14) Quando sinto o cheiro a terra lavrada e o São João se vai aproximando, sempre me lembro desta passagem do Evangelho. E por quê? Filho de pequenos lavradores, desde muito cedo, fui associado aos trabalhos da família. Com sacrifícios mas sem traumas. Não me conheço sem trabalhar. Comecei por ajudar minha mãe em casa: segurava no rabo da pá quando ela cozia a fornada e ia às ‘cortes’ buscar a ‘bosta’ com que calafetava a porta do forno; acompanhava-a ao moinho com uma pequena taleiga às costas e ajudava-a a levar a merenda aos campos. Levava os socos ao sapateiro, as foicinhas e as enxadas ao ferreiro. Na véspera do primeiro de Maio, cortava as giestas e colocava-as em todas as portas, incluindo nas cortes do gado e no campo do linho. Era, como se dizia, “o moço dos recados”. Ainda não andava na escola e já tocava os bois na lavra e no ‘engenho’ (nora) de tirar água. Eram horas e horas a fio… Na “primária”, no fim das aulas, ia ter com meus irmãos às agras próximas para os ajudar ou levar uma giga de erva para casa. E, mesmo assim, tinha mais sorte que os meus colegas que iam ajudar as mães a fazer as ‘penas’ das lousas… Na primavera, quando os campos eram lavrados e deixava de haver erva fresca para o gado, eu levava-o para as nossas ‘cavadas’ (bouças) onde abundava o pasto bem tenro tão necessário para as vacas que forneciam leite para as crianças do lugar. Para além destas e dos bois, também iam comigo as ovelhas, as mais difíceis de guardar. Se uma fugia, as outras iam atrás. Um dia, distraí-me e elas, sorrateiramente, desapareceram. Fiquei muito aflito, mas quando cheguei a casa – a mais de três quilómetros - já elas me esperavam junto da porta-fronha. Irrequietas e sem peias, mas fiéis… A estrada em que seguia para o monte era, na primeira quinzena de junho, percorrida, mas em sentido inverso, por rebanhos de ovelhas que iam para o Porto para serem vendidas no São João. Uma vez, cruzei-me com um desses rebanhos. Os bois e as vacas, pachorrentos, seguiram o seu caminho. O pior foram as ovelhas que se misturaram umas com as outras. E como as separar? Pequenito, andava no meio delas a identificar as minhas e a chamar pelo seu nome. Mas qual quê? Elas continuavam em serena convivência... O homem que conduzia o rebanho acabou por se zangar comigo. Agarrou na minha roda e na gancheta e atirou-as para longe. Larguei logo as ovelhas e corri em busca do meu tesouro. A roda, mais pesada, caiu entre as silvas próximas, mas a gancheta foi cair no meio do mato, bem mais distante. Quando a consegui recuperar, já bem picado pelo tojo arnal, olhei para o lado e o que vi? As minhas ovelhas estavam todas ali à minha beira a olhar-me, interrogativas. Que alívio… Eu abandonei-as mas elas, não. Ao verem-me afastar, seguiram-me, sem hesitações nem recriminações. Envergonhei-me. Que grande lição de fidelidade! Apetece-me terminar à maneira das fábulas de Esopo: “o mythos deloi oti”. Esta estória mostra que o Papa Francisco tem toda a razão quando pede aos pastores que tenham o cheiro das ovelhas porque, se assim acontece, também elas ganham o cheiro do pastor. (16/6/2021)