DE OLHOS HUMEDECIDOS...
Dois meses são passados…
Iam húmidos meus olhos quando, na manhã do dia 22 de abril, me encaminhava para a Catedral onde iriam decorrer as exéquias do Dr. Marques, o meu primeiro professor de filosofia. Faltava mais de meia hora para o início da cerimónia. E foi numa igreja ainda vazia, com o seu caixão no chão da capela-mor, que, na penumbra medieval, rebobinei a fita do tempo.
Conheci-o, em 1954, no Seminário de Vilar. Era “o senhor vice-reitor”. Em 1956, fez-se-me mais próximo como professor de filosofia. Pude, então, aperceber-me da clareza das suas ideias, da agudeza do seu espírito e do fino recorte do seu humor. Nasceu-me aí o gosto pela filosofia que marcou a minha vida académica e profissional.
Nas conversas particulares, fazia-se ainda mais próximo e revelava toda a sua preocupação com os alunos como aconteceu comigo na véspera das eleições para a presidência da República de 8/6/1958. Ao ver-me sair, de batina, para ir alugar as “roupas” ao senhor Valverde da rua de Santo Ildefonso e as “cabeleiras” ao senhor Gomes da rua Formosa, para o drama “Deus escreve direito…” que, no dia seguinte, iríamos representar na “Academia de Despedida”, alertou-me para os assomos anticlericais que, então, agitavam a cidade. E foi com um sorriso de satisfação que acolheu o meu regresso.
Nessa ‘Academia’, cantámos “Saudade e gratidão, eis a nossa despedida, saudade porque nos vamos, gratidão por toda a vida”. Com o passar dos anos, a saudade fez-se nostalgia, a gratidão avolumou-se e revivia-se sempre que encontrávamos algum professor.
Foi o que aconteceu em 20 de outubro de 2012, quando o Coro Gregoriano do Porto, a convite do pároco, P. Rodolfo Ferreira, foi cantar a Santo Isidoro, terra do Dr. Marques. No fim da cerimónia, já no adro, ele esperava-nos. Recuámos no tempo. Que alegria! Parecíamos um bando de catraios – já grisalhos- a rodopiar à volta do mestre. Ele sorria e ‘metia-se’ com todos. É bem verdade que, enquanto os nossos professores forem vivos, nós somos sempre meninos…
Experimentei o mesmo sentimento no nosso último encontro. Vinha ele dum tratamento na clínica do Estádio do Dragão. Apaixonado pelo FCP, sentia-se bem por estas bandas. Ao entrarmos no Metro, minha esposa disse-me: -“Vai ali o teu professor”. Sentamo-nos junto dele. Olhou-nos surpreendido. Conversámos. Quis saber da nossa vida, dos filhos e netos. Quando lhe perguntei como conseguia manter a sua boa forma, ele, olhando com um sorriso maroto para minha esposa, respondeu-me: -- “É que eu não tenho mulher”. Foi a última vez que o vimos e ficou-nos esta imagem de humor e carinho que queremos conservar.
Das muitas mensagens que colhi aquando da sua morte, faço-me eco, com vénia, das palavras que o P. António Bacelar partilhou no facebook
“Haveria tanto a escrever sobre tão grande Homem, Padre e Mestre…
Desdobrar-se-á certamente no tempo a sua presença, parte do rasto de luz que ilumina o meu e nosso caminho. São contornos que sustentam o testemunho de uma fé inabalável mas sempre em caminho de busca, de uma paixão pela Igreja que não escondia a força redentora das suas chagas, de vivo interesse pela cultura e humanidade de que se fazia sempre construtor!” (24/6/2021)
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home