O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, setembro 28, 2022

REBOBINANDO A FITA DO TEMPO...

No dia 15 de setembro, o Jornal de Notícias publicava na sua primeira página uma grande fotografia do ‘Mercado do Bolhão’ com a seguinte caixa: “Bolhão - Regresso ao passado com arquitetura de futuro- Mercado emblemático do Porto reabre hoje após quatro anos de obras”. No interior, ocupava duas páginas com fotografias do ‘histórico e renovado Bolhão’ e escrevia: “Perdeu um pouco da velha patina que tinha, mas que não eram mais do que marcas de décadas de falta de intervenção e de investimento que resultaram na degradação e insalubridade. Este Bolhão pode parecer menos castiço aos mais puristas mas, como afirmam os comerciantes ‘o que define o mercado é a alma das pessoas’ e essa persiste”. No dia da reabertura, a RTP1 emitiu o ‘Jornal da Tarde’ a partir desse local simbólico que está no coração da cidade. Enquanto o jornalista Hélder Silva falava da história e da presença da RTP nesse mercado, corria, em rodapé, a legenda “Primeiras imagens são da Visita Pascal de 1964”. A exibição, que se seguiu, dessa relíquia dos seus arquivos (pode ser visto na net, no ‘sítio’: hhps://www.rtp.pt/noticias/pais/memorias-do-mercado-do-bolhao-no-arquivo-historico-da-rtp_v1433193), fez-me rebobinar o fio da memória e viajar até esses tempos de gratas vivências. Já lá vão mais de 58 anos… A Visita Pascal ao Bolhão e às casas comerciais das ruas adjacentes realizou-se na 3ª feira de Páscoa: nos dias anteriores, o comércio estava encerrado. Como essa zona da cidade pertencia à paróquia de Santo Ildefonso, competia ao seu pároco – P. Adriano Martins – a sua organização. Dado que os anos já lhe iam pesando, delegou no ‘coadjutor’ a sua representação. As ruas engalanaram-se de colchas e as casas comerciais enfeitaram as montras. Era uma festa que muita gente gostava de apreciar. Da parte da tarde, à medida que o Bolhão se aproximava, a romaria foi crescendo. A entrada no Mercado fez-se pela porta norte que abre para rua Fernandes Tomás. Quando chegámos ao parapeito sobre o interior do mercado, foi o deslumbramento: colchas de variadas cores pendiam das varandas e varandins, flores perfumavam os ares e uma multidão comprimia-se em todos os espaços livres. Fez-se silêncio e aprimoraram-se as posturas… No patamar intermédio da escadaria, o sacerdote começou por fazer, em latim, a aclamação ritual: “Haec dies, quam fecit Dominus: exsultemos et laetemur in ea (Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos com alegria!). Após uma breve palavra de saudação, aspergiu, com gestos largos e abrangentes, as pessoas que se apinhavam na escadaria e se alongavam pelo mercado. De seguida… num primeiro momento gerou-se alguma confusão: todos, especialmente os mais jovens, queriam ser os primeiros a chegar à cruz. Depois de a dar beijar aos muitos clientes do mercado que enchiam as coxias – ir ‘beijar a cruz’ ao Bolhão era um hábito - o compasso passou pelas lojas onde era acolhido com sorrisos e gestos de fé pelos donos e familiares. Ao final da tarde, o ‘Senhor Abade’ juntou-se ao compasso e presidiu ao seu encerramento. A celebração pascal terminou com um jantar festivo, organizado para e pelos comerciantes que convidaram as autoridades e outras pessoas gradas da cidade e arredores. Quem nunca faltava era o Senhor Padre Grilo, envolto na sua capa preta. A presença deste sacerdote benemérito e querido dos vendedores tinha um objetivo bem conhecido e que se repetia todos os anos: angariar fundos par a sua ‘Obra’, em Matosinhos. E saiu de lá com palavras e gestos de gratidão. Os comerciantes do Bolhão eram e são gente de generosidade e de fé como testemunha a imagem de Nossa Senhora da Conceição – a sua patrona - que colocaram na entrada principal, virada à rua Formosa. A Senhora lhes sirva de conforto nas horas tristes e os acompanhe nas suas alegrias. Que os portuenses, na linha dos seus antepassados, façam do Bolhão um lugar de convívio e de compras. O tempo passa mas a alma do mercado permanece: pessoas genuínas, de coração amigo, espontâneas nas suas emoções e com uma piada na ponta da língua. É gente com rosto e com história que bem merece ser apoiada. (28//2022)

quinta-feira, setembro 22, 2022

A POESIA 'ENTRE AS PANELAS DA COZINHA'

Já um mês é passado… A comunicação social informou: ontem, dia 5 de agosto, morreu a poeta, escritora, tradutora, professora Ana Luísa Amaral, recentemente galardoada com o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana. A Universidade do Porto recordou a ‘sua’ professora como “uma autora extraordinária, uma académica distinta e uma cidadã empenhada”. Entre muitos testemunhos, relevo Uma ausência que dói, de Teresa Vasconcelos, do Movimento do Graal (7Margens, 6 de agosto): “Morreu-me uma irmã. Ana Luísa Amaral “desabitou” este mundo. Partiu para o Infinito deixando-nos o rasto de luz da sua poesia. Que esteja na plenitude que tanto desejou ao longo dos anos e que a desinquietou levando-a a fazer poesia. Como quem respira. (…) Uma força da natureza. Mulher solar: um girassol. (…) Mulher também do quotidiano e do transcendente”. Quando leio os seus poemas, saltam-me ao pensamento as palavras do papa Francisco que parafraseei no título: “Muitas vezes se fez da santidade uma meta inacessível em vez de a procurar e abraçar na existência quotidiana, no pó da estrada, nas aflições da vida concreta e – como dizia Teresa de Ávila às suas irmãs – ‘entre as panelas da cozinha”. (Missa da canonização de Carlos de Foucauld). E porquê? Porque a poeta, atenta aos ritmos domésticos, comove-se com gestos do dia-a-dia. Se, para Aristóteles (Metafísica) o espanto está na origem da filosofia, para ela, as coisas mais comezinhas são ”fontes de espanto polifónico” e portadoras de silêncio contemplativo: “uma migalha entre as folhas de um livro”; ”sentei-me com um copo em restos de champanhe a olhar o nada”; ”minha filha partiu uma tigela na cozinha”; ”descascar ervilhas ao ritmo de um verso”; “o lavar os dentes ao abrir do dia”; “cebolas outra vez, os cumes coroando-se montanhas”; “Mostrar-te leite-creme é um prazer”. Como escreveu Maria Irene Ramalho no Posfácio do livro “Ana Luísa Amaral - O Olhar Diagonal das Coisas”, Assírio & Alvim, abril de 2022, que integra os 17 livros de poemas publicados até essa data: “No romântico Shelley, a musa anda associada às alturas, na nossa contemporânea ou, talvez mais bem dito, pós-romântica Ana Luísa Amaral, são as coisas do chão que inspiram – como amendoins ‘apanhados do prato vorazmente’”. E a propósito do último livro até então publicado, Mundo, comenta: “Abre com dez ‘observações’ bíblicas a ecoar no nosso vário e situado ser ‘do mundo’: a formiga lutadora em contramão; a centopeia engolfada pelo dilúvio, a elegante pega equilibrista, o peixe preso no anzol, a aranha de fascínio aterrador, a abelha portadora de vida em seu corpo; o pavão ufano da desasada beleza. (…) Os ‘observados’ falam de si e de todos nós”. São alegorias que acicatam a nossa consciência individual e coletiva, como em “Dois cavalos: Paisagem – Estão lado a lado, / naquela praça em frente da igreja, /nesse calor de quando o mundo oscila/na linha do horizonte, /e o rio quase defronte, /uma miragem. (…) Arreios, cabeçadas, todos os instrumentos /do que parece ser mansa tortura/ mais freio, ou bridão,/parecido com aquele colocado na boca das mulheres que desobedecem,/ E era assim há muito tempo,/pelo menos quatro séculos,/ou semelhante ao que se usava/ nos escravos, cobrindo-lhes a boca/para que não se envenenassem,/porque se recusavam a viver/escravos/e era isso quase agora, no século passado.” O dia-a-dia não se esgota em si mesmo, é uma janela para o transcendente, uma escada para o divino. Essa a raiz da nossa esperança que o ‘Discurso da Montanha’ (Mt 5,1-7,29) alimenta e transfigura. (21/9/2022)

quarta-feira, setembro 14, 2022

A PAZ É PARA OS FORTES - A GUERRA PARA OS FRACOS

Esta afirmação paradoxal que ouvi numa entrevista a uma historiadora russa (Antena I – 29/5/2022) fez-me lembrar dois textos que agora proponho à reflexão. O primeiro, sob o título” Em louvor da paz”, é o “sermão 357” de Santo Agostinho (354 – 430) que me foi enviado pelo Secretariado da Pastoral da Cultura. Louvor da paz “Agora é o tempo de vos exortar a amar a paz com toda a força que o Senhor vos dá e a rezar ao Senhor pela paz. Aqueles que amam verdadeiramente a paz também amam os inimigos da paz. Que coisa boa é amar! Amar já é possuir. Aí está onde tu estás: basta que ames a paz, e ela está contigo. A paz é um bem do coração.” Comunicar a paz com paz “Cultivai a paz entre vós. Se quiseres atrair outros para a paz, deves tê-la em primeiro lugar; sê tu, antes de mais, inabalável na paz. A fim de acender outros nela, vós próprios deveis ter uma luz dentro de vós mesmos. Tu, amigo da paz, reflete, e saboreia, primeiro, o encantamento da tua amada. Ergue-te em amor, para que possas atrair outros para o mesmo amor, para que eles possam ver o que vês, amar o que amas, possuir o que possuis.” Remédio da oração “Foi decretado que os cristãos devem viver em paz. Longe de nós a discórdia. És um amigo da paz? Fica interiormente sereno com a tua amada. Mas não digas: ‘Então não há nada a fazer!’. É claro que há muito a fazer: eliminar as disputas. Deita mão da oração; em vez de repelires o insulto com insulto, reza por aquele que o faz. Gostarias de retorquir, de falar como ele, contra ele. Em vez disso, fala a Deus sobre ele. Com o Senhor, oração fervorosa, com os irmãos, caridade.” O segundo, sob o título “A Paz é o fruto da Justiça”, é a Declaração da reunião dos Secretários Gerais de Justiça e Paz da Europa - (15/5/2022), na Hungria. Há princípios inegociáveis “A 24 de fevereiro de 2022 o governo russo iniciou uma invasão, brutal e não declarada, da Ucrânia. Embora a diplomacia continue a ser essencial, nós, como Comissões de Justiça e Paz, reafirmamos, no contexto dos nossos valores e convicções cristãs, que alguns princípios não são negociáveis, em particular o respeito pela dignidade de cada ser humano, os direitos humanos universais e indivisíveis e o imperativo da não-agressão, que é a base da coexistência pacífica.” A doutrina social católica sobre a paz defende explicitamente o direito individual e coletivo à autodefesa consagrado no direito internacional.” Os meios militares não são fontes de paz “No entanto, como Comissões de Justiça e Paz, é nossa tarefa acompanhar estes desenvolvimentos com discernimento. Queremos salientar que os meios militares, por si só, não podem trazer uma paz duradoura. Além disso, acarretam grandes riscos de escalada. É, portanto, essencial evitar a retórica da guerra e manter os esforços diplomáticos através de vários canais e multilaterais.” Ação dos cristãos “Onde os povos e a paz são ameaçados pela agressão e pela guerra, as Igrejas e os seus representantes atuarão mais estreitamente em conjunto e com outras comunidades religiosas em prol da justiça e da paz no mundo; A extraordinária força das orações ecuménicas pela paz continuará a ser um raio de luz num mundo dilacerado pela guerra.” Nestes dois textos, distantes no tempo e nas circunstâncias, ecoam as mesmas palavras do Mestre: “Felizes os que fazem a paz (Mt 5,9)”. Construir a paz no nosso dia-a-dia e denunciar a guerra é ajudar a construir o Reino de que S. Paulo fala na Epístola aos Romanos (14,17-19). “Aqueles que amam verdadeiramente a paz também amam os inimigos da paz”- é fácil dizer-se mas de prática bem difícil, especialmente quando nos aparece o rosto de quem é o culpado duma guerra que o papa Francisco, segundo um comunicado da Santa Sé, do passado dia 30, condenou como ”moralmente injusta, inaceitável, bárbara, sem sentido, repugnante e sacrílega”. (14/9/2022)

domingo, setembro 11, 2022

VAMOS CONHECER A NOSSA TERRA II - MARCO DE CANAVESES

O tempo ainda convida… A nossa viagem continua pelo vale do Tâmega. Agora, com uma paragem no miradouro do Torrão para contemplar o encontro das suas águas com as do Douro. Ao fundo avistámos a ponte que substituiu a “Hintze Ribeiro”. E elevámos a Deus uma oração pelos que morreram na trágica noite (4/3/2001) e seus familiares que ainda hoje choram a sua morte. Estamos em terras do antigo concelho de Bom Viver. Descemos até ao cais de Bitetos e nossos olhos pousaram nos reflexos da ‘Ilha dos Amores’, na foz do Paiva, que tremeluzem à passagem dum cruzeiro. E lembrei “velhos” amigos… Em Alpendorada, depois de muito procurar, encontrámos o seu “memorial”, um monumento funerário do século XIII que a tradição liga ao cortejo fúnebre da beata D. Mafalda, do mosteiro de Rio Tinto, onde faleceu, para o de Arouca onde repousa. Descemos ao mosteiro de origens medievais (século XI) e totalmente remodelado nos seculos XVII e XVIII. Das primitivas estruturas românicas apenas restam alguns silhares na sua fachada maneirista. Em Vila Boa do Bispo, mergulhados no silêncio, admirámos a grandiosidade do seu mosteiro (séc. XII/XIII) e, na sua fachada, duas arcadas cegas caraterísticas do românico bracarense. Fomos surpreendidos pelos contrafortes da parede sul que nos indiciam o primor da sua primitiva construção românica. Já em Soalhães, fomos recebidos pelo pelourinho, orgulho dos seus habitantes e símbolo do seu poder concelhio até 1852. Na igreja matriz, de raiz românica, realçámos o seu portal protogótico e, no interior, um túmulo do seculo XIII. Prosseguimos até ao rio Ovelha para, em cima do elegante arco apontado da “Ponte do Arco”, ouvir o marulhar das águas na cascata que lhe banha os pés. Parámos junto da igreja de Tabuado (século XIII) que conserva muito da sua feição românica, com relevo para a torre sineira e o pórtico principal. Rezei pelo P. Cunha, um amigo e seu carismático pároco, e lembrámos outros amigos que aí repousam. Veio-me à mente a letra que, na minha adolescência, escrevi e que, depois de musicada, foi cantada pelas jovens da Ação Católica: “Tabuado, rosa linda…” Descemos à antiga vila, sede do concelho de Canaveses. E parámos junto da igreja românica de S. Nicolau (sec. XIV), não longe do local onde D. Mafalda, esposa de D. Afonso Henriques, mandou construir a “Albergaria da Rainha” e uma ponte românica que “assentava em sete arcos circulares”. É celebrada num monumento que diz: “Aos bravos defensores da antiga ponte românica que… conseguiram heroicamente suster o ímpeto dos invasores franceses nos dia 31 de março e 1 de Abril, de 1809, salvando a população do Douro dos malefícios da guerra”. Em 1944, foi substituída por uma outra que foi submersa pela albufeira do Torrão. Na margem esquerda, eleva-se a também românica, igreja de Santa Maria de Sobretâmega. É um local idílico… Bom para descansar e meditar… Em Vila Boa de Quires, apreciámos a bela igreja românica (séc. XIII) e surpreendeu-nos a grandiosa e inacabada fachada rococó da ‘Casa do Fidalgo’. Tongóbriga, uma cidade castreja romanizada, e a igreja de Santa Maria, de Siza Vieira, merecem uma visita mais alongada… O Marco deixa marcas de saudade na memória das suas gentes. Como bem escreveu Ilídio Mota, no poema ‘Marco da Diferença’, publicado no jornal local ‘A Verdade’ (10/1/1990): “Aqui, só uma vez numa vida/Se foi criança e adolescente/ Se foi jovem, ambição perdida /No alvor do teu sol nascente.” (7/9/2022)