O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, janeiro 27, 2021

DO ALÍVIO À ESPERANÇA

“Um novo dia nasce para a América” (e para o Mundo), disse Joe Biden. Foi há uma semana…. Finalmente, chegou ao fim o execrando mandato do presidente dos EUA que envenenou a convivência entre os seus concidadãos e entre os povos e tornou o mundo um lugar muito mais perigoso. Respirámos de alívio. “Este é o dia da democracia”. Em “7Margens” (16/1/2021,) li um texto assinado por Massimo Faggioli, “historiador do catolicismo e professor de Teologia e Estudos Religiosos na Universidade Villanova (Filadélfia), autor do livro Joe Biden e il cattolicesimo negli Stati Uniti. Sublinhei três razões para a esperança. 1- O conceito: - “Joe Biden é o segundo presidente católico. (…) Durante toda a campanha eleitoral Biden apoiou-se sempre na centralidade da sua fé sem deixar a mínima dúvida de onde proveem as suas raízes e tudo aquilo que o sustenta.” - “Como católico na vida pública, Biden reflecte a convicção de que a política é uma profissão profundamente nobre, uma forma de magistério, uma vocação laical. Biden é um desses crentes para os quais a vida pública não é teatro, a religião não é um conjunto de regras. (…) Biden transcende tudo isto. “ - “Biden é o primeiro presidente católico na história americana que exprime publicamente a sua alma religiosa, não vagamente religiosa mas cristã; ecuménica, mas católica; duma forma militante mas não belicosa, testemunhal.” 2- O testemunho: - “No seu discurso de aceitação a 7 de Novembro, Biden citou quer a Bíblia quer o hino litúrgico “Nas asas da águia” um hino típico do estilo litúrgico da Igreja pós-Concílio Vaticano II, explicando que “representa a fé que me sustém e que eu creio que sustenha a América. E eu espero, espero poder trazer conforto e alívio “. . “Em Junho, Biden foi convidado para falar no funeral de George Floyd, morto pela polícia de Minneapolis durante uma manifestação. Nesse momento de grandes desordens no país tinha afirmado: “Cresci com a doutrina social da Igreja, que me ensinou que uma fé sem obras é uma fé morta e que seremos reconhecidos por aquilo que tivermos feito.” 3- O desafio . “Como católico, Joe Biden terá de enfrentar ventos contrários mais fortes do que os seus predecessores. O carácter problemático e desolador da cultura do consumismo tardo-capitalista tornou uma posição antagonista cujo slogan é “Cristo contra a cultura” extremamente atraente para muitos. Para muitos, mas não para Joe Biden. Além de outras tantas convergências políticas possíveis entre o Papa Francisco e Joe Biden, encontramos aqui uma convergência ainda mais profunda; ou seja, a recusa de renunciar a uma teologia fundada sobre uma avaliação otimista da Criação, quer dizer, uma posição que enfatiza a encarnação e a sacramentalidade. A história é locus pela graça e a graça manifesta- se na luta.” Os governos e as nações têm seus olhos fixos neste homem que pensa, sente, age como cristão e faz da política um ‘serviço’ laical. Que o Papa Francisco, evocado pelo P. Leo O Donovan na sua tomada de posse, o inspire. E a luz da Fé ilumine seus caminhos e ajude a sarar as feridas abertas pelo seu antecessor na América e no Mundo. (27/1/2021)

quarta-feira, janeiro 20, 2021

TOUPEIRAS HUMANAS

A minha neta Clara que frequenta o primeiro ano do ensino básico, no dia do seu 6º aniversário, disse-me, toda feliz, que os pais lhe deram um computador. Perante o meu olhar interrogativo, logo o pai esclareceu: “Ela precisa dele para a escola”. Recordei os meus tempos da «primária» e vi-me com a «lousa» e a «pena» na saca de pano feita por minha mãe… Este regresso ao meu passado levou-me também à minha terra onde se faziam e fazem essas lousas. E veio-me à mente a reportagem “Pedra negra de Valongo continua a «alimentar» gerações” (JN, 25/10/2020) que dizia: “uma lousa faz a vez de milhões de sebentas”. Nós, os mais velhos, ainda lembramos essa lousa que usávamos para os mais diversos exercícios na escola. Raramente, escrevíamos no caderno. Essa reportagem dizia: “Em Campo, Valongo, toda a gente tem alguém que trabalhou ou ainda trabalha nas minas de extração de lousa. História de um passado recente feito de muita miséria e dificuldade, em que grande parte das crianças que não seguiam os estudos, acabavam a trabalhar nas minas”. Embora sendo de família de lavradores, senti, de perto, o sofrimento dos meus vizinhos e colegas. . Muitos dos meus companheiros nem sequer frequentaram a escola e, muito novos começavam a ir com os pais trabalhar em serviços no exterior da pedreira mas muito penosos como confessa um desses «meninos que não tiveram infância»: “O trabalho era tão duro que amarrava as mãos à carrela, com uma corda, para conseguir transportar”. . Muitos dos meus colegas de escola que viviam na zona de São Gemil ajudavam as mães a fazer em casa as “penas” que serviam para escrever nas lousas. . Vi muitos dos meus vizinhos a tossir convulsivamente com o “pó nos pulmões” (silicose) que apanhavam nas minas e os matou ainda bem novos. Uma vida passada debaixo da terra, à luz dos gasómetros, sem sol nem céu. .Eram frequentes os desastres no interior das pedreiras. E muitos lá morriam. Esmagados por um bloco de pedra que se desprendia ou tombava. Afogados pela água duma mina desativada, furada por engano, que invadia as galerias. Abundavam as mulheres vestidas com a cor da viuvez. Apesar disso, as pedreiras mataram a fome a muita gente. Era um trabalho duro, mas “pagava certinho”. E isso viu-se com a crise, motivada pela impossibilidade das exportações durante a II Guerra Mundial, que obrigou os mineiros a ir para o volfrâmio em Alvarenga e Rio de Frades. As mulheres ficavam sós com uma “ranchada” de filhos para alimentar. Muito sofreram. A tia Albina, uma dessas “viúvas de mortos-vivos”, cuidava de mim quando minha mãe ia para os campos. A necessidade era tanta que ela aproveitava e levava-me para o entroncamento do “Pinheiro Manso” na estrada nº 15. Pegava em mim como seu filho e eu, teria uns dois anitos, estendia a mãozita a pedir esmola aos carros que passavam. Havia sempre uma alma caridosa que tinha pena do “pobre menino que não tinha de comer”… Não era o caso… mas muita fome se passou. Pretas, eram as pedras e as lousas escolares… mas negra, negra, era a vida. Gente boa e trabalhadeira. A minha homenagem. (20/1/2021)

quinta-feira, janeiro 14, 2021

"O JARDINEIRO DE DEUS" FALA DE SI

Há dois meses (11/11/2020), faleceu este vulto maior da política e da cultura que, então, recebeu os maiores encómios. Apenas alguns dos mais significativos: “Figura determinante na consolidação e alternativa na democracia portuguesa, pioneiro em Portugal das grandes questões que hoje, mais do que nunca, se mostram decisivas, homem de grande serenidade e de grandes convicções”. (Presidente da República) "Um pioneiro, um homem muito à frente do seu tempo a quem a Universidade de Évora e o país muito devem”. (A Reitora, Ana Costa Freitas) “Foi um católico inconformista e determinado. Subscreveu em 1959 e 1965 três importantes documentos de católicos em denúncia da ausência de liberdade, da censura e da repressão, arcando as consequências de uma tal ousadia” (Guilherme de Oliveira Martins, «Gonçalo – o jardineiro de Deus», in 7Margens, 21/NOV/20). Para conhecermos melhor este português insigne, vamos ler algumas das suas falas (R) na longa entrevista que o Jornal de Negócios publicou em abril de 2009: P - “Em 1958, decide apoiar a candidatura de Humberto Delgado. Nessa altura, o Centro Nacional de Cultura funcionava como uma plataforma de liberdade, uma congregação de gente desigual que não se encaixava em nenhuma das suas casas de origem.” R – “ Era um espaço de liberdade, de encontro. Havia gente católica da Igreja do Rato, o Tareco [Francisco Sousa Tavares], o Nuno Vaz Pinto, a Sophia de Mello Breyner, o Alçada Baptista”. P – “Que relação tem, e foi tendo, com a religião e com o catolicismo? É convicto?” R- “Pretendo ser, porque ninguém é o que é. Tive uma grande influência familiar e do padre Jalhay. Fui apoiante do bispo do Porto. Escrevi um livrinho sobre a reforma agrária que lhe é dedicado, [a propósito da] pastoral sobre “A Miséria Imerecida do Nosso Mundo Rural”. P – “Estava a dizer que pretendia ser profundamente católico.” R – “E por isso fui presidente da Juventude Agrária Católica antes do 25 de Abril. Havia a Juventude Agrária, para os tipos do campo, e havia a Juventude Universitária, [de onde saiu] o Nuno Portas, o Teotónio Pereira e parte do grupo da Capela do Rato.” P – “Que questões é que o inquietavam?” R – “Tudo.” P – “Quem somos, o que fazemos, o problema do Homem?” R – “Porque é que somos, porque estamos aqui?” P – “Apoiava-se na religião para responder a isso, ou, pelo menos, para se sentir mais amparado?” R – “Não há ninguém com quem isto não dê na religião. Tem de dar. A pessoa não tem é certezas. Agora, procuras, tem de as fazer. Todos fazem.” Como já adivinhou, estou a falar do arquiteto Gonçalo Ribeiro Teles que, como «Ministro da Qualidade de Vida», pôs em prática, muitos anos atrás, o pensamento da Igreja claramente expresso no n.º 178 da «Fratelli Tutti»: “Pensar nos que hão de vir não tem utilidade para fins eleitorais, mas é o que exige uma justiça autêntica porque, como ensinaram os bispos de Portugal, a terra «é um empréstimo que cada geração recebe e deve transmitir à geração seguinte». (13/1/2021)

terça-feira, janeiro 12, 2021

"ANALFABETOS DE BONDADE"

“Que nenhuma «pandemia da alma» nos seja impedimento para acolher Jesus”, dizia a mensagem natalícia que recebi da Associação Católica do Porto. Com estes votos, partilho convosco algumas reflexões suscitadas pelo filme «Luísa Spagnoli», transmitido pela RTP2 nas vésperas de Natal. Na sua intriga, mereceu-me especial atenção o simbolismo da ária de “O Barbeiro de Sevilha” onde Don Basílio canta: “ A calúnia é uma brisa, uma aragem assaz suave que, insensível, subtil, ligeiramente, docemente, começa a sussurrar lenta, lentamente, passo a passo, em voz baixa. Sibilando vai correndo, vai zumbindo nos ouvidos da gente. As cabeças e os cérebros atordoa e faz inchar. Boca fora vai saindo, o alarido vai crescendo, ganha força pouco a pouco, vai já de um lado para o outro. Parece trovão, tempestade que no seio da floresta vai silvando. No fim, extravasa e rebenta, propaga-se e duplica-se. E produz uma explosão, um temporal, um tumulto geral.” E recordei o conselho de Sócrates que viveu cerca de 500 anos antes de Jesus. “Certo dia, um conhecido aproximou-se dele e disse: - Sabes o que eu acabei de ouvir acerca daquele teu amigo? - Espera um minuto, respondeu Sócrates. Antes que me digas alguma coisa, gostaria de te fazer o teste do triplo filtro. - Triplo filtro? - Sim, continuou. Antes que me fales do meu amigo, talvez fosse boa ideia parar um momento e filtrar aquilo que vais dizer. E prosseguiu: - O primeiro filtro é a verdade. Tens a certeza absoluta de que aquilo que me vais dizer é perfeitamente verdadeiro? - Não, disse o homem. O que acontece é que ouvi dizer… - Então, não sabes se é verdade. Passemos ao segundo filtro que é a bondade. O que me vais dizer sobre o meu amigo é bom? - Não, muito pelo contrário… - Então, continuou, queres dizer-me algo de mau sobre ele e ainda por cima nem sabes se é ou não verdadeiro. Mas, bem, pode ser que ainda passes no terceiro filtro. O último filtro é a utilidade. O que me vais dizer sobre o meu amigo será útil para mim? - Não, acho que não…- Bem, concluiu o filósofo, se o que me dirás não é bom, nem útil e muito menos verdadeiro, para quê dizer-me?” E também lembrei uma parábola “Um dia, os professores deram a cada aluno um balão para encher, escrever nele o seu nome e, depois, colocar no chão. De seguida, misturaram todos os balões e deram-lhes cinco minutos para que todos encontrassem o seu próprio balão. Apesar da busca frenética, ninguém o encontrou. Então, disseram-lhes que pegassem no primeiro balão que encontrassem e o entregassem ao colega cujo nome estava escrito. Em 5 minutos, todos tinham o seu próprio balão. - Esses balões, disseram os professores, são como a felicidade. Nunca a encontraremos se todos andarem à procura da sua. Mas, se nos preocuparmos com a felicidade dos outros, encontraremos também a nossa.” Se assim procedermos, não seremos “analfabetos em bondade” e estaremos a construir “não uma fraternidade feita de palavras bonitas mas uma fraternidade baseado no amor real”, como desejou o papa Francisco na Missa do Galo e na Mensagem de Natal. (6/1/2021)