O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, janeiro 02, 2008

A TERESINHA DO ANIKI-BOBÓ

A PROPÓSITO DE UM PRÉMIO

Foi um momento único o que vivi na Fundação Cupertino de Miranda, no dia 21 de Dezembro, onde a beleza se vestiu de simplicidade. Não sei o que mais admirar: se a sabedoria e gentileza nas palavras do nosso Bispo, Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, se o humor, a lucidez e a jovialidade do homenageado, se as ressonâncias bíblicas do som da harpa a evocar o salmista: “Louvai o Senhor (…) Louvai-O com a harpa e a flauta”.
Estou a falar da cerimónia de homenagem a Manuel de Oliveira com a entrega do Prémio Padre Manuel Antunes que lhe fora atribuído pela Conferência Episcopal Portuguesa.


Manuel de Oliveira com o Assistente-Geral, Manuel Guimarães, durante as filmagens do Aniki-Bobó - 1942


Porque o “Aniki Bobó” foi a primeira longa-metragem de ficção deste cineasta e a acção se desenrola na zona ribeirinha do Porto, resolvi entrevistar a menina protagonista do filme, uma amiga de longa data.

- Fernanda, espero que os seus netinhos ainda lhe deixem tempo para esta nossa conversa. Sei que tem quatro filhos. E netos quantos são?- Antes de mais, muito me alegra e honra voltar a falar com o (…) pelo qual tenho amizade sincera de há longos anos, gratidão e respeito. Respondendo ao que me perguntou. Sim, tenho quatro filhos, seis netos e uma bisneta, a Alice, que têm sido a minha alegria e razão de viver.
- Agora é Fernanda Grilo. No Aniki Bobó como era referido o seu nome?- Na ficha técnica figurava o meu nome de solteira: Fernanda Matos.
- Ainda se lembra da cantilena infantil que deu nome ao filme? - Como poderia esquecer? Sempre relembro.
Aniki Bebé, Aniki Bobó
Passarinho Totó
Birimbau, cavaquinho
Salmonão, Sacristão
Eu sou polícia,tu és ladrão
Eu não quero ser ladrão
Tenho medo à prisão
Aniki Bebé Aniki Bobó”

- Quantos anos tinha quando participou no filme?- Na altura, tinha 11 anos de idade.
- Lembra-se do modo como foi escolhida?- Foi através de uma minha professora que era amiga da família da esposa de Manuel de Oliveira. Apareceu um grupo de pessoas na escola e então a professora pediu-me para ler um trecho do livro escolar, cantar e recitar. Contei a minha mãe o sucedido, mas esta não deu importância ao assunto. Só que nas férias grandes a minha professora pediu a minha mãe para me levar a passar uma tarde ao Palácio de Cristal e aí voltei a encontrar-me com o mesmo grupo. Fui fotografada por um deles em várias posições. Desta vez minha mãe ficou um pouco surpreendida. Passado algum tempo, foram a minha casa o Manuel de Oliveira e a esposa solicitar autorização a meus pais para que eu fosse interpretar um filme de crianças. Não foi fácil a cedência.
- Sei que “ o batatinhas” vivia na Corujeira. E os outros? - O Eduardito foi encontrado na Ribeira onde residia; o Carlitos, embora não vivesse lá, e como já era um sonhador, gostava de ir contemplar o Rio, aí foi abordado; os restantes faziam parte de um teatrinho no Patronato de Campanhã.
- Que personagem interpretava no filme?
- Eu era a Teresinha.


A Teresinha com o Carlitos – uma cena do Aniki-Bobó

- Diz-se que a Teresinha ocupava um lugar central no enredo do filme. Pode explicar porquê.- Sim, talvez porque era a única menina e a causadora da disputa entre os dois artistas principais.
- É capaz de nos dizer como era essa Teresinha?- A Teresinha era companheira amiga de todos, embora tivesse “um fraquinho” pelo Carlitos e muito medo da força e ameaças do Eduardo, seu rival.
- E a Menina Fernandinha como era? - A “Fernandinha” era uma criança dócil, feliz, alegre, sempre contactando com todos da mesma maneira e “companheira nas gazetas à escola”. Fiz amizade com pessoas da equipa, em especial com António Mendes, o fotógrafo, que recordo ainda hoje com ternura e que me deixou um grande álbum de fotografias.
- E o que foi feito dessa Menina? O que lhe ofereceu a vida?- A esta menina aconteceu ter uns pais extraordinários, infância e juventude felizes, estudou, namorou e casou com um homem que também lhe deu a felicidade que é possível ter-se nesta vida.
- Qual foi para si a cena do filme que mais a emocionou.
- Talvez a cena do comboio, com o acidente do Eduardito e que serviu para a consolidação da amizade entre todos e o esquecer as maldadezinhas feitas uns aos outros: exemplo a seguir na vida real pelos adultos e não só.
- Lembra-se dos locais onde foram filmados os diferentes momentos?- Sim, filmamos na Ribeira, na Sé, na Corticeira, junto ao velho Seminário (hoje Colégio dos Órfãos), e também em Lisboa na Tobis.
- Aqueles telhados por onde Carlitos passou para ir entregar a boneca à Teresinha, onde se situavam?- O salto de telhado para telhado foi real, mas já não sei o nome da rua onde ocorreu, só sei que foi na zona da Sé, o restante desenrolar da cena foi na Tobis.
- Parece-lhe que ainda hoje a nossa sociedade está cheia de “teresinhas”, “carlitos”, “eduardos”,”batatinhas”?- Penso que ainda hoje há crianças que sonham, brincam, zangam-se, fazem as pazes e tudo passa. Mas, infelizmente também, e talvez na grande maioria, que só conhecem a fome, as consequências das guerras que as marcam para sempre e muita falta de amor, por alguns pais que vivem num mundo de materialismo e stress.
- O Mundo actual ainda será uma “loja das tentações”que provoca os mais pobres e os incita à transgressão, como no filme aconteceu ao Carlitos?- Infelizmente o mundo está tremendamente conturbado. A corrupção é imensa, o desemprego assustador e daí as “tentações” são de outra origem bem mais perigosa.
- O Aniki Bobo aparece em contra -corrente com as grandes comédias e as temáticas rurais da época. Assistiu à sua estreia? Como foi recebido? - Assisti à sua estreia no S. João Cine no Porto. Não fui a Lisboa. Não foi bem aceite por alguns críticos e também por algum público. Mas, com o tempo, tudo mudou e ainda hoje ele continua a ser visto como um marco dos filmes do Mestre Manuel de Oliveira. Venceu pela sua singeleza, ternura, poesia, exemplo para os mais velhos dado pela ingenuidade das crianças e, sobretudo, pelo grande profissionalismo de Manuel de Oliveira em todo o decorrer do trama.
- Poderemos considerar que o Aniki Bobó conta uma história simples onde se contrapõe o “bem e o mal, o ódio e o amor, a amizade e a ingratidão” como disse Manuel de Oliveira- Sim, e deixe-me aqui recordar e transcrever algumas das considerações de Rui Grácio no “Horizonte” de 13/1/42: “ Manuel de Oliveira construiu uma história de AMOR INFANTIL como fulcro, articulando neste alguns elementos que constituem parte da vivência psíquica dos garotos daquela idade e daquela vivência: o tédio duma escola arcaica, o medo da polícia, as lendas que envolvem o mistério da morte, o jogo dos polícias e ladrões, a passagem dum comboio com o respectivo desastre, a ingenuidade e mesmo poesia.”
- Podemos afirmar que o filme contém uma mensagem de amor e compreensão, ainda muito útil para os nossos dias?- Apetece-me repetir o que escrevi para o livro “Manuel de Oliveira -Fotobiografia”: “ Amor, paciência e muita arte foram a mágica de Manuel de Oliveira para realizar e apresentar ao público um filme interpretado por um grupo de crianças traquinas, não profissionais, um filme pleno de Ternura, Delicadeza e Subtileza, afinal apanágio do mundo infantil”
- Essa sua primeira experiência como actriz foi continuada? Se não, porquê?- Não. Primeiro, não tive mais nenhum convite mas também não era, nem nunca foi, a minha vocação.
- Manteve contactos com os outros actores? - Apenas com o Horácio (o Carlitos). Temo-nos encontrado em reportagens, homenagens e aniversários de Manuel de Oliveira. Ainda ontem,dia 1 de Janeiro, aparecemos juntos na RTPN, no documentário do jornalista Sérgio C. Andrade com que a RTP homenageou Manuel de Oliveira na passagem do seu 99º aniversário natalício.
- E do Manuel de Oliveira, que recordações tem? É capaz de nos falar dele?- Do tempo de criança, recordo a sua paciência, ternura, gentileza que sempre demonstrou para com todas as crianças. Hoje, como mulher, rendo-lhe as mais humildes homenagens e sinto-me orgulhosa do grande cineasta e Senhor que continuou e desejo continue ainda por alguns anos mais. Agradeço os convites para assistir às homenagens de que tem sido alvo bem como para os seus aniversários a que não falto.
- Agradecendo a sua amabilidade, gostaria que comentasse duas críticas da época.:
A fita é uma infame cilada armada à inocência das crianças e à imprevidência dos pais. É uma verdadeira monstruosidade” Jornal Cidade de Tomar de 24/01/1943
De uma grande honestidade, com pedaços de límpido cinema, tudo bem equilibrado, interpretação admirável, cingida, certa, expressividade, este filme dá o encanto das coisas despretensiosas e belas, no seu aprumo de simplicidade emotiva, recortada duma intenção social irónica e popular. Um artista, muito artista, este Manoel de Oliveira “ Poeta António Botto in Jornal Os Sportes de 04/01/1943
- À primeira crítica dá-me vontade de dizer: “vozes de burro não chegam ao céu.” Quanto à segunda, revela a sensibilidade, simplicidade e valor poético de uma inteligência e sentimentos puros.
Termino agradecendo mais uma vez ao amigo (…) o recordar minha saudosa e querida mãe. Bem haja! E digo: oh que bom, que alegria ter amigos de verdade, sentir que nasce um arco-íris em cada amizade.


Fernanda Grilo

Com esta entrevista, quis prestar homenagem ao cineasta Manuel de Oliveira, em cuja obra “a beleza é como que uma saudade da eternidade”, e às gentes ribeirinhas do Porto tantas vezes esquecidas pelos poderes públicos e denegridas por alguma comunicação social. Para terminar, quero evocar a memória de D. Aida Matos, mãe da D. Fernanda, que muito trabalhou na Capela da Senhora da Paz em S. Roque da Lameira. No seu nome, presto homenagem a todos aqueles que, como ela, ajudaram a criar a Paróquia da Senhora do Calvário, no Porto.