O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, fevereiro 09, 2011

Em memória de um Amigo

Nossos caminhos cruzaram-se, pela primeira vez, já lá vão quase sessenta anos, quando nos encontrámos como alunos do primeiro ano, no Colégio de Ermesinde. A partir daí, correram, ora paralelos, ora divergentes, convergentes na maioria do tempo. Até nas coincidências... Sem sabermos um do outro, acabámos por casar no mesmo dia e quase à mesma hora. Só não nos encontrámos por a Conservatória ser diferente.
Estivemos juntos nas boas e más horas...
No funeral de sua mãe, que tanto acarinhava, pediu-me para ler, na igreja da sua terra, Irivo-Penafiel, uma poesia que compusera em sua honra. E era tão belo esse poema que entusiasmei-o a publicá-lo no jornal Voz Portucalense. No dia do seu funeral, foi a sua esposa que me pediu para eu, no mesmo local onde lera o da mãe, ler um poema do marido. Desta vez, fui eu quem publicou no referido jornal alguns excertos desse poema. Quero aqui transcrever o texto que escrevi, mas, como não tenho limite de espaço, transcrevo o poema na sua versão integral.

" As crónicas com que o Ferreira de Brito enriquecia o nosso jornal jamais serão retomadas. Calou-se a voz daquele a quem o nosso assinante José Melo chamou “pequeno príncipe da Palavra”. “Incansável trabalhador das palavras, cultivou-as com mestria ao longo da sua vida inteira, fazendo-as cantar nas suas mãos, sibilando-as num timbre muito próprio das gentes deste Vale do Sousa, a quem tinha imenso orgulho de pertencer, de corpo e alma”.

A confirmar estas afirmações, quero deixar-vos alguns excertos (neste blog,será em versão integral) do poema/testamento, que ele compôs quando a doença já o consumia, onde, num lirismo saudoso, evoca memórias da infância vivida em Irivo – Penafiel.


eu nasci ali
no monte de São Simão
num Janeiro frio
tendo por padrinho um rio
que desenhou meandros no meu espírito
e galgou as estreitas margens do meu leito

eu nasci ali
e aquele chão modelou-me para sempre o tenro coração

eu renasci ali naquela escola pequenina
a desvendar mistérios de ler e de contar
ai a minha desastrada aritmética
ao querer reduzir a cifrões o infinito!
ai a minha métrica

patética de versos perversos!
No quadro preto da minha existência
Há uma geometria de angústia
em linhas quebradas
e ângulos obtusos.

eu renasci ali naquela igreja
em que o padroeiro tem a seu lado um corvo negro
o seu sino plangente
- um de profundis para quem morre
um hino cósmico para quem nasce -
gravou-me paradoxos terríveis nos sentidos
em horas melancólicas de Trindades

foi ali na igreja do Calvário
que confessei meus pecados
que pequenos eram
e tão grandes são!
ao bom franciscano
era então pecado jogar o pião
roubar botões
faltar à escola
ter maus pensamentos
jogar à bola
e faltar à missa
não comer a sopa de nabiça
e poucas coisas mais
como desobedecer aos pais
e assim entrei na dança dos ritos
na contradança dos mitos

eu nasci ali…
e no apeadeiro da minha aldeia
(duas linhas irritantemente paralelas
sejam rectas ou vielas
na avenida berço – túmulo)
eu fui em vagão
num tro-fo-fá anelante
em busca de solução
para uma viagem constante
ao impossível
com passagem de nível
com guarda
proibida

eu nasci ali
e quero tomar outra vez banho
entre rãs na represa da Sobreira
quero falar de mouras e de bruxas
quero comer orelheira no carnaval
quero lamber a marmelada da minha avó
quero o pão-de- ló da Páscoa
febras da matança
bazulaque de carneiro
anho com arroz de açafrão
vinho à caneca
quero subir à cerejeira do Malaquias
e num-ver-se-te-avias encher o papo
encher o saco
quero enguias
quero trutas
quero frutas
bichentas
estou com desejos dos figos da minha figueira
que parecia um dossel
e dava de comer à freguesia inteira
quero sopas de cavalo cansado
quero ir à azenha do Abilinho
comer a lagarada
regada com azeite quentinho
pois ando enjoado
pois ando enfadado
pois ando enjoado
e isto já não tem cura
nem com uma lasca de bacalhau salgado

eu nasci ali…
quero apanhar pardais
com uma gaiola armadilhada na grainha
quero melros a chilrear de manhãzinha
quero a minha roda com gancheta
que faz girar o mundo
quero saltar minas
desfolhar malmequeres
entrelaçar na igreja os xailes das mulheres
colher flores
sussurrar amores
quero ir de anjinho nas procissões
quero andar num carro de bois amarantinos
fazer recados
guardar o gado no campo ou no monte
ir à agua à fonte

eu nasci aqui
e quero ir ali ao Feijó da minha infância
trocar o meu relógio de dígitos
por um de bolso como antigamente sem nervosismos
sem paroxismos

quero trocar meu stress
por uma prece
quero tocar uma gaita de beiços
e ouvir um clarim bradar no quartel
quero uma resma de papel
para nele gravar
mil rubras sensações
deste meu tempo contrafeito
nesta bela terra de Penafiel

deixem-me ser menino outra vez
nesta terra que Deus fez
mas não me façam nascer em trinta e oito
veio a guerra
veio fome
o mercado negro
o racionamento
a cevadinha
a meia sardinha numa folha de videira

mandem-me outra vez ao catecismo
à Senhora Ernestina que já Deus levou
com o seu bigode e a sua cana
quero voltar a aprender quantos e quais são
os sacramentos
os santos mistérios
os mandamentos
os dogmas terríficos
morte, juízo, inferno ou paraíso
e aquela história infinitamente linda
do limbo para as criancinhas
coitadinhas!
que já se perdeu…

deixem-me outra vez andar cinco quilómetros
a pé
para vir ao quiosque do Laurindo
ler o mundo
do tamanho dos meus sonhos
medonhos
foi aí que comprei por dez mil réis
o meu primeiro maço de tabaco
um «camel» ou «camelo» – não sei bem!
e fumei o primeiro cigarro
parecia um pavio
e ainda por cima sabia a bafio
e fez-me catarro
melhor seria fumar barbas de milho
embrulhadas em papel de cartucho
no campo da Lama
que em tardes de calor nos servia de cama

eu nasci ali…
e se por acaso, algum dia eu morrer,
fica desde já exarado em testamento
- que mo não leve o vento - !

quero ser enterrado aqui
e mais fica dito em profecia
que, se algum dia eu renascer,
quero renascer aqui

quero reincarnar num homem novo
que seja metáfora pura deste povo.