O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, novembro 22, 2023

"UNS ATRÁS DOS OUTROS TOMBAVAM OS MORTOS" (ILÍADA, XVII, 361)

“A Guerra aniquiladora de homens” (Ilíada, X,78). Este grito da Humanidade, que nos chega das profundezas do tempo, ecoa, ‘lancinante’, na oração do Papa Francisco: “Senhor, ensina-nos a repudiar a loucura da guerra que semeia a morte.” (VP, 31/10/2023) A Ilíada, de Homero, “um monumento extraordinário à capacidade humana”, foi escrita - pasme-se - no século VII a.C. E, nela, ecoam tradições orais que podem remontar a mil e quinhentos anos antes de Cristo… . Mais do que a mitologia grega, cujos deuses – “E riu-se Zeus em seu coração quando viu os deuses a lutar uns contra os outros” (XXI, 390) - nada têm a ver com o Deus de Jesus, gosto de partilhar convosco a ternura de duas cenas familiares: - “Mãe, já que me deste à luz para uma vida tão curta (…) /Assim falou Aquiles (o herói grego) vertendo lágrimas; e ouvi-o a excelsa mãe (…) Sentou-se à frente do filho enquanto vertia lágrimas e acariciou-o com a mão. Depois falou-lhe pelo nome e disse: /Meu filho, porque choras? Que dor te chegou ao espírito? / Fala, não escondas o pensamento, para que ambos saibamos.” (Canto I, 352) - “Assim falando, o glorioso Heitor (o herói troiano) foi para abraçar o seu filho, / mas o menino voltou para o regaço da ama / gritando em voz alta, assarapantado pelo aspeto de seu pai (…) Então se riram o pai amado e a excelsa mãe: / e logo da cabeça tirou o elmo / e depô-lo no chão da casa. / De seguida beijou e abraçou o seu filho amado.” (…) “Assim dizendo, nos braços da esposa amada pôs o filho. /Ela recebeu-o no colo, sorrindo por entre lágrimas. / Mas ao aperceber-se de como ela reagiu, o marido sentiu pena, /e acariciando-a com a mão, falou-lhe pelo nome: / ‘Mulher maravilhosa, não me entristeças demasiado o coração’. (…) Sua esposa amada regressou a casa, / voltando-se muitas vezes para trás, em choro abundante “(VI, 466). E, em vez do “canto bélico” (XX,204) da ‘Guerra de Troia’, onde gregos e troianos “se matavam uns aos outros em renhido combate” e “a terra escorria negra de sangue” (XV, 708), deixo-vos o bucolismo dos ‘similes’ (comparações) que pontuam toda a epopeia. “Tal como os rios invernosos se precipitam das montanhas, / atirando juntos o enorme caudal para a embocadura de dois vales / e das poderosas nascentes vêm lançar as águas num oco desfiladeiro, / e lá longe nas montanhas o pastor chega a ouvir-lhes o estrondo - /assim era o eco e o terror dos que embatiam uns contra os outros “(IV, 453). “Tal como o lavrador trata de uma pujante vergôntea de oliveira / em terreno solitário, onde brota quantidade de água :/ árvore bela e frondosa, à qual fazem estremecer as brisas / de todos os ventos e floresce com flores de cor branca; /mas de repente vem uma rajada de uma desmedida tempestade / e arranca a árvore da terra, deixando-a estatelada no chão - /assim…” (XVII, 53). “Tal como quando da nascente de água escura o jardineiro / desvia a corrente de água para as plantas e canteiros / de enxada na mão, retirando do canal os empecilhos; / à medida que flui todos os seixos são arrastados, / e a água sussurrando segue depressa para baixo, descendo/o terreno inclinado até ultrapassar quem a guia - / assim...”. (XXI, 257). “Tal como quando na época da ceifa, o Bóreas seca / o pomar há pouco irrigado e alegra-se o cavador /assim ficou seca toda a planície e os mortos foram /queimados; mas depois virou a chama brilhante contra o rio. / Arderam os ulmeiros e os choupos e os tamarinhos ;/ arderam o lódão e os juncais e a junça, que crescia / com abundância à volta das belas correntes do rio. / Muito sofreram as enguias e os peixes nos torvelinhos; / mergulhavam para cá e para lá nas correntes. “ (XXI, 346) Para um mais completo conhecimento deste poema épico - “o primeiro livro da literatura europeia” - aconselho a sua leitura integral na tradução de Frederico Lourenço cuja “Introdução’ nos ajuda a percorrer um caminho ‘belicoso’ que se alonga por 16.000 versos distribuídos por 24 cantos. É um encontro com a grandeza e a miséria do Homem de todos os tempos “Um anjo caído / do tal Céu que Deus governa; / um monstro saído / do buraco mais fundo da caverna “(Miguel Torga, Livro das Horas). (22/11/2023)

quarta-feira, novembro 15, 2023

O SORRISO - CENTELHA DO DIVINO - II

Não há dúvida: Jesus sorriu. Quem o afirma é o Papa Francisco: “Ao olharmos para um recém-nascido somos levados a sorrir para ele, e se também no seu pequeno rosto desabrocha um sorriso então sentimos uma emoção simples, ingénua. O menino responde ao nosso olhar, mas o seu é um sorriso muito mais ‘poderoso’. (…) Isso aconteceu de uma forma única entre Maria, José e Jesus. A Virgem e o seu esposo, com o seu amor, fizeram brotar o sorriso nos lábios do seu filho recém-nascido” (A Alegria de um sorriso, pág. 9) E, certamente, não foi apenas quando bebé… Três meses são passados sobre as ‘Jornadas Mundiais da Juventude’… E eu pergunto: - O que ficou na nossa memória? Certamente, aquele mar de gente que encheu o Parque Eduardo VII e o Parque Tejo: a alegria dos jovens sem garrafas de cerveja; o silêncio na ‘Adoração ao Santíssimo Sacramento’… - O que resta em nós da presença do Papa Francisco? Uma palavra? Uma frase?... Sem dúvida, a ideia da inclusão. Mas este é um tema fraturante porque, mais do que tolerância, exige respeito que, afirma Kant, o grande filósofo alemão, é a mais importante das virtudes. Por isso, surgiram esclarecimentos quando a mensagem é bem simples: “Todos! Todos! Todos!”. Há, no entanto, algo que tocou a todos: a ternura e a bondade do seu sorriso. Um sorriso que nos levava para além das palavras…Um sorriso que nos traz à mente as palavras de Jesus sobre Natanael: “Eis um verdadeiro israelita, no qual não há falsidade (Jo 1,47) A fotografia que ilustra este texto foi tirada no final do Encontro dos Voluntários, em Algés – o último ato público das ‘Jornadas’… Já todos os discursos e homilias tinham sido feitos. Já se tinha despedido. Mas, a coroar, o Papa Francisco ainda nos quis brindar com este sorriso de bênção. E, ao vê-lo, pensámos: Terá sido assim, com uma bênção e um sorriso, que Jesus se despediu dos discípulos e os enviou em missão: “Ide, fazei discípulos todos os povos… E eis que Eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos tempos” (Mt 28,19-20) - Dos muitos testemunhos dos participantes, qual mais surpreendeu? Para nós, foi a resposta dum jovem espanhol quando um repórter lhe perguntou porque era católico. – “Porque nos leva ao otimismo e a partilhar um sorriso em qualquer situação”. Esta afirmação fez-nos lembrar o que o Papa Francisco escreveu: “Quando estamos na escuridão, nas dificuldades, não surge o sorriso. E é precisamente a esperança que nos ensina a sorrir para encontrarmos o caminho que nos leva a Deus. Uma das primeiras coisas que acontecem àqueles que se afastam de Deus é tornarem-se pessoas sem sorriso. Talvez sejam capazes de dar grandes risadas, umas atrás das outras, de fazer uma piada, de soltar uma gargalhada… mas falta o sorriso! Esse, só o dá a esperança: é o sorriso da esperança de encontrar Deus. (…) Assim, temos de saber ver na vida o caminho da esperança que nos leva a encontrar Deus que se fez Menino por nós. E far-nos-á sorrir, dar-nos-á tudo.” (Idem, pág. 45) - E dos muitos comentários que correram no facebook? Apraz-nos destacar o dum ministro da República: “Como se pode não gostar de um Papa assim? Um Homem que apela a uma igreja (e a uma sociedade) de inclusão, resistindo a tantos que querem propalar divisões e ódios. Mesmo não sendo crente, devo dizer que me sinto muito orgulhoso da receção de Portugal ao Papa Francisco”. À guisa de conclusão… Se o Papa Francisco, com a autoridade que lhe é devida, pôde afirmar que “Jesus é o sorriso de Deus”, nós, na ousadia da nossa pequenez, atrevemo-nos a dizer: - ‘O Papa Francisco é o sorriso de Jesus’…(15/11/2023)

terça-feira, novembro 07, 2023

O SORRISO - CENTELHA DO DIVINO - I

“O Menino que queria encontrar-se com Deus”. É o título dum texto que corre na ‘Net’ de que me faço eco. “Pôs o lanche na mochila e saiu para brincar no parque. Depois de andar um bocado, encontrou um velhinho sentado num banco da praça a observar os pássaros. O menino sentou-se a seu lado, abriu a mochila e preparava-se para comer qualquer coisa quando olhou para o velhinho e percebeu que ele estava com fome. Decidiu oferecer-lhe um pão. O velhinho muito agradecido aceitou e sorriu. O seu sorriso era tão bonito que o menino quis vê-lo de novo; então, ofereceu-lhe um sumo de fruta. Mais uma vez o velhinho sorriu. O menino estava feliz! Continuaram sentados o resto da tarde, comendo e bebendo em silêncio e trocando sorrisos. Quando começou a escurecer, o menino resolveu voltar para casa, mas, antes de sair deu um grande abraço ao velhinho. Foi então que o velhinho retribuiu o abraço com o maior sorriso que o menino já havia recebido. Quando o menino chegou a casa, a mãe surpreendida ao ver a sua cara de felicidade, perguntou: - O que é que te deixou tão feliz assim? Ele respondeu: - Passei toda a tarde com Deus. Ele tem o mais lindo sorriso que eu alguma vez vi… Enquanto isso, o velhinho chegou também a casa com o mais radiante sorriso no rosto e o filho perguntou: - Onde é que o pai esteve, que está tão feliz? E o velhinho respondeu: - Estive a lanchar no parque com Deus. Sabes que Ele é bem mais novo do que eu pensava.” (Autor desconhecido) Foi no verão passado que o lemos e comentámos. Era tempo de pausa na vida de dois avós… Tempo propício à meditação e à partilha… Então lembrei-me da Filosofia Escolástica que afirma o riso como um ‘próprio’ do homem, isto é, só o ser humano tem o privilégio de rir. Ao que minha esposa acrescentou “Mais que o riso - que pode ser uma reação nervosa como quando nos fazem cócegas - é o sorriso que é um riso com intenção”. Esta consideração fez-nos reler o livro “A Alegria de um sorriso” do Papa Francisco que o inicia dizendo: ”O meu desejo resume-se numa palavra: o sorriso”. E, logo na primeira página, confirma a nossa conversa: “O riso é uma expressão de amor, de afeto, tipicamente humana”. E vai mais longe ao afirmar “Jesus é o sorriso de Deus” (pág. 9). Como assim? - perguntámo-nos, se os Evangelhos nunca falam do sorriso de Jesus? Deixando a explicação para quem sabe, considerámos que, sendo verdadeiro Deus, mas também verdadeiro Homem, Jesus terá sorrido muitas vezes ao longo da sua vida. E demorámo-nos a evocar momentos propícios ao sorriso. . Não imaginamos Jesus, nas Bodas de Caná (Jo 2,1), de cara sisuda, sem participar com um sorriso na alegria da festa nupcial. . E também não o vemos, em casa dos seus amigos Lázaro, Marta e Maria (Lc 10,38), de rosto fechado, sem um sorriso de agradecimento aos seus anfitriões. . O mesmo aconteceria quando se sentava à mesa com “pecadores e publicanos” (Mt 9,10). . E quando teve palavras tão carinhosos para mulher que sofria de hemorragias: “Tem coragem, filha, a tua fé te salvou” (Mt 9,22) . E nem o podemos imaginar a entrar em Jerusalém num jumentinho sem acenar e sorrir para a multidão que “apanhou ramos de palmeira, saiu ao seu encontro, e gritava: Hossana!” (Jo 12,12). Há, porém, uma situação em que o menino Jesus, não tenho dúvidas, sorriu. Dizem os psicólogos que, por volta dos três meses, surge o chamado ‘sorriso social’, como reação espontânea da criança ao sorriso da mãe e doutras figuras que lhe são familiares. O Papa Francisco confirma-o… Mas isso ficará para a semana… Se não fosse abuso, atrever-me-ia a: . Sugerir-vos, caros leitores, que pegásseis nos Evangelhos e partísseis em busca destas e outras situações propícias ao sorriso. Garanto-vos que é uma tarefa reconfortante para a alma; . Pedir aos biblistas o favor de nos explicar o que terá levado os evangelistas a nunca referir o sorriso de Jesus quando, pelo contrário, várias vezes nos dizem que Ele chorou - Jo 11,35; Lc 19, 41.(8/11/20239