O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, março 27, 2024

PARA MEMÓRIA... A IGREJA E O 25 DE ABRIL (I) - OS PIONEIROS

• Nos bastidores… O ‘Regicídio’, em 1908, com o assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro D. Luís Filipe, feriu a alma portuguesa. A enorme instabilidade governativa – 45 governos em 16 anos – do regime republicano, após 1910, e a desordem social exacerbaram o sentimento de insegurança e insatisfação. A Primeira Guerra Mundial (1914 -18) veio fomentar ainda mais o descontentamento popular porque, para além do sofrimento e morte de soldados, a carestia de bens alimentares semeou a fome em Portugal. A este descontentamento generalizado, acrescia o repúdio dos católicos pela sanha antirreligiosa da República, com a expropriação dos bens da Igreja e a perseguição a padres e bispos como D. António Barroso (cf. VP, 6/3/2024) e D. Sebastião Vasconcelos (cf. VP, 13/3/2024). Na infância, minha mãe sempre me falava dos tormentos que os carbonários infligiram ao ‘Senhor Abade’ que, expulso da residência paroquial em 1911, foi acolhido pelos pais dela na sua ‘Casa da Ponte’. Meu pai, que tocava clarinete num grupo ligado à Igreja, falava-me dos apupos a que estavam sujeitos. A ‘Questão Religiosa’ muito contribuiu para a queda da ‘Primeira República’. O que foi bem compreendido pelos políticos do ‘25 de Abril’, como Mário Soares e Álvaro Cunhal, que, embora não-crentes, sempre a evitaram. D. António Ferreira Gomes dizia, e com razão, que uma democracia desregrada é terreno fértil para o germinar das ditaduras… Não admira, pois, que o ’Golpe Militar de 28 de Maio’, de 1926, tenha sido recebido com alívio por uma parte muito significativa de portugueses. E a esperança redobrou quando, em 1928, o católico, António de Oliveira Salazar, professor da Universidade de Coimbra, foi chamado para a pasta das Finanças. E logo em 1928-29, o orçamento apresentou um saldo positivo. Foi um ‘milagre financeiro’ e a fuga à bancarrota. Mais… A normalização das relações entre o Estado e a Igreja, levada a cabo por este membro ilustre do CADC de Coimbra, deu-lhe a auréola de ‘santo’ a quem até se atribuíam milagres como o de ter escapado ileso, quando ia à missa, de uma bomba que explodiu bem próximo dele (4/6/1937). Todos sabemos que, após um inverno tormentoso, basta um raio de sol e já parece verão… A hierarquia católica cultivava um sentimento de gratidão pelo ‘Salvador a da Pátria’ e ‘Defensor da Religião’. Mas, houve presbíteros que cedo procuraram acordar a Igreja e a sociedade da letargia em que se deixaram embalar. Foram vozes pioneiras em contra corrente… • Os pioneiros - Padre Joaquim Alves Correia - Nasceu em Aguiar de Sousa (5/5/1886) e foi ordenado presbítero em 26 de outubro de 1910. Em 1981, foi agraciado, a título póstumo, com a ‘Ordem da Liberdade’ pelo Presidente da República, Mário Soares. “Opôs.se a todas as formas de totalitarismos de direita e de esquerda, integrando o MUD, em 1945”. Morreu no exílio em 1951. No dizer de D. António Ferreira Gomes, o P. Alves Correia, “grande homem da Igreja, ele é por isso homem de todo o mundo. (…) Homem de inteligência e de cultura cristã, nada de humano e cristão podia considerar-se alheio a si; e, porque o sentiu e o disse, veio a morrer exilado na Norte-América. - Padre Abel Varzim (1902 – 1964) - Formado em Lovaina onde privou com Joseph Cardijn, fundador da JOC, redigiu os estatutos da Ação Católica Portuguesa que, apesar de não ser do agrado do ‘Estado Novo’, foram aprovados pela Santa Sé. Esteve na fundação da LOC e foi o grande impulsionador do jornal ‘O Trabalhador’, órgão dos Operários da Acão Católica. “Conheceu os caminhos amargos da perseguição política (e não só), ao mesmo tempo que realizava com forte empenho ações de formação para trabalhadores e estudantes universitários, naquilo a que hoje chamaríamos ‘formação para a cidadania”. Padre incómodo - líder reconhecido dos “católicos sociais” - por defender os direitos dos trabalhadores, acabou por ser expulso de todos os cargos que exercia na Ação Católica Portuguesa. E, apesar da perseguição, chegaram até hoje estas vozes da Igreja que o ‘Estado Novo’ quis silenciar. Que elas se repercutam em favor do homem e da sociedade! (27/3/2024)

terça-feira, março 19, 2024

"ESTA É A MINHA MÃE!"

Assim começava a mensagem (5/3/2024). E continuava: “Mulher guerreira que no tempo em que as mulheres comiam e calavam, ela não se calou. Lutou contra tudo e contra todos mesmo contra ela própria, quando necessário. Fiel aos seus valores e às suas crenças, educou dois filhos no amor, humildade, caridade e disponibilidade aos outros, seguindo o seu exemplo. Catequista, ministra extraordinária da Comunhão, leitora, membro da Cáritas (e da Conferência Vicentina de Campanhã), do CPM, do (grupo de) jovens; uma vida dedicada aos outros e a espalhar a palavra de Deus. (…) Quis o Pai chamá-la para junto de si durante o dia de hoje. Que Ele me permita continuar a transmitir a sua palavra, o seu exemplo” (Miguel, facebook, 4/3/2024). Vem de longe a minha admiração por esta cristã comprometida, sempre pronta a servir. Com um sorriso carinhoso e uma palavra amiga… Quando o mal que a viria a vitimar se manifestou, o casal Barbeira coordenava os encontros mensais de formação litúrgica da paróquia de Campanhã que eu, a seu pedido, apoiava. Foi uma doença longa e penosa que a obrigou a frequentes internamentos hospitalares, mas não a fez desfalecer na Fé, como confessou na sua última mensagem: “Olá Amigos, sei que têm sentido a falta das minhas mensagens e até dos meus posters. Efectivamente, a minha doença piorou e estou internada nos cuidados paliativos do IPO. Atenção: fui eu que fiquei internada, não a FÉ nem a Esperança. As suas luzes continuam a incentivar para lutar pela Vida, o Dom maravilhoso que Deus nos deu.” (Maria Manuela, facebook, 26/2/2024) Da sua presença diária no facebook, selecionei dois dos últimos textos em que sobressai o seu estado de alma. • “Partilhando…CARPE DIEM! De há 6 anos para cá eu procuro viver a minha vida de uma forma mais tranquila, um dia de cada vez e nada mais, até mesmo porque, não sei quando não haverá algo mais… É difícil viver com este diagnóstico, existe uma angústia constante, medo… muito medo… Mesmo quando me disseram, ao fim de 5 anos, que o cancro estava em remissão o risco continua a existir. A doença voltou, bem mais forte, por isso é preciso encarar o problema e viver um dia de cada vez! A verdade é que começamos a aproveitar melhor a vida. E existe em mim uma Força, a que chamo FÉ, que não me deixa desistir. Como uma vez me disseram, tu tens a doença, mas não tens de estar doente. Um dia de cada vez! Carpe Diem!” (15/2) • “Para Deus nada é impossível – Lucas 1.37. Olá… todos temos direito a uma segunda opinião e nesta expectativa os meus filhos quiseram ouvir outra opinião, agora em Lisboa. Nada de novo… parece não haver mais tratamentos, o linfoma é resistente a qualquer tipo de quínio. E agora??? Restam os cuidados possíveis para ter alguma qualidade de vida. Partilho isto com vocês meus amigos… como partilhei as alegrias… Como estou??? Não sei… umas vezes, calma, outras, revoltada, mas pedindo a Deus a serenidade para aceitar. Continuo a lutar para viver o melhor possível o tempo que me resta. “(21/2) E, no meio deste sofrimento, não esquecia os aniversários dos amigos: ”Parabéns, (…) muita saúde e felicidades junto daqueles que o amam. Abraços Francisco, Manela e Miguel.” (18/2) Nem os tempos litúrgicos: “Olá… Boa tarde. Hoje, quarta-feira de cinzas, começa a quaresma. Quarenta dias até à Páscoa. Que o Senhor nos ajude a chegar à SUA Ressurreição.” (14/2) E, ainda, nos deixava belos testemunhos de fé: “O que é viver com Fé a minha expectativa? Viver da Fé é confiar em Deus, não importando as situações, as aflições e tribulações. A Fé é o que mantém o ser humano firme mesmo nas circunstâncias mais negativas. (…) Viver com Fé na sua vida é um abrigo forte nos piores dias de tribulação.” (8/2) “Vós sois a luz do mundo… Não se acende uma luz e se coloca debaixo do alqueire, mas no candelabro.” (Mt, 5, 14) Quem quiser ver melhor esta ‘luz’, pode ir ao facebook e pesquisar: Maria Manuela Grade Barbeira. “Quem encontrará a mulher forte? Ela é mais preciosa que as pérolas.” (Prov. XXXI, 10) Escrito em Dia da Mulher, o meu texto é ação de graças a Deus por esta ‘mulher forte’ e, nela, homenagem a todas as mulheres, “meia humanidade quiçá a mais importante”, como escreveu, já no século XIX, o ‘nosso’ Venerável D. António Barroso. (20/3/2024)

terça-feira, março 12, 2024

"O APÓSTOLO DA BONDADE"

É o subtítulo do livro “D. Sebastião Leite de Vasconcelos”, de Diogo Ribeiro de Campos, com Prefácio de D. João Marcos, bispo de Beja, e Preâmbulo de D. Manuel Linda, que passarei a citar com grafia atualizada. “Um nosso amigo viu (…) o rev. diretor da Oficina de S. José a (…) descer a rampa do Passeio das Virtudes, examinar aqueles esconderijos e perguntar a uma das mulheres que ali lavavam a roupa, se tinham visto naquele sítio algum vadio. Jornal da Manhã, 1885”. Era o P. Sebastião Vasconcelos à procura de rapazes abandonados para acolher e educar na ‘Oficina de S. José do Porto” que fundou em 1880, na rua D. Hugo, e transferiu, em 1890, para a rua Alexandre Herculano onde funcionou até aos nossos dias. “Que ensinava? Os mandamentos da lei de Deus, a língua materna e um ofício. O Padre multiplicou-se; dizia missa, exortava, mas, além disto, ensinava a ler e escrever; e a tudo adicionava os mesteres de alfaiate, sapateiro, carpinteiro, tipógrafo, encadernador. Para amenizar tudo isto, e entreter as horas de descanso, criou uma banda marcial.” E de tal modo se desenvolveu que, em 1900, o Procurador Régio, José Cancela, escrevia: “A Oficina de S. José do Porto é hoje graças à excecional caridade, atividade e tenacidade do mesmo sacerdote, P. Sebastião, a instituição de caridade do país mais próspera, mais benéfica, mais modelar e que mais se tem imposto ao respeito e admiração de todos os portugueses e de muitos estrangeiros. O incomparável trabalho daquele verdadeiro mestre, na criação e desenvolvimento d’esta gloriosa obra, é uma lição e estímulo…” Em 1 de Agosto de 1907, foi nomeado Bispo de Beja. Na sua ordenação, prometeu “que no governo da sua diocese, não seria encontrado muitas vezes no Paço, mas sim na cadeia, no hospital junto dos doentes (…), junto dos desvalidos e infortunados e nos corredores do Seminário”. Ao entrar na sua diocese (1908), “ofereceu fatos completos a meia centena de crianças pobres” e, mais tarde, “tendo conhecimento de que os presos da enxovia da cadeia civil dormiam sobre o chão húmido e frio, esmolou-os com 20 enxergas”. Mas em Beja encontrou o seu calvário, com os “irmãos Ançãs, dois padres indignos que, ao entrar na diocese, demitiu das suas funções, sendo por eles combatido, naquele contexto da implantação da República em 1910” (D. João Marcos, Prefácio). Andava em visita pastoral por Moura e Barrancos quando foi informado que fora ‘proclamada a República e em Beja se tinham passado graves acontecimentos’ como “a tomada do paço Episcopal, ato levado a cabo por um grupo de desordeiros tendo à cabeça Manuel Ançã (…) que hasteou a bandeira republicana na residência oficial do bispo.” Pressionado, refugiou-se em Rosal de la Frontera, Espanha. “E, apesar de todos as tentativas e pressões, o Governo nunca mais permitiu o seu regresso a Portugal”. Foi a primeira vítima da virulência republicana contra a Igreja. Forçado ao exílio, instalou-se em Sevilha e depois em Lourdes onde escreveu (11/2/1912) “Palavras de um exilado”, um “protesto breve, mas veemente e franco, inspirado pelos mais sagrados princípios da liberdade” de que, dada a acuidade, transcrevo: “Nenhuma incompatibilidade tem a Igreja com as várias formas de governo, que possam para si escolher as nações; mas o que não pode o católico, menos ainda o Bispo, é (…) sujeitar-se a leis atentatórias dos direitos de Deus. (…) Obedecer a uma lei iníqua é um crime, como dizia o Papa Leão XIII”. Como D. António Barroso, que o ordenou bispo, não era contra a República. Protestava, sim, “contra o desprezo sistemático das tradições mais caras ao nosso Portugal, com que um jacobinismo sem ilustração, obedecendo a ódios inconfessáveis de seita, tem espalhado a desordem e a anarquia no país”. Nesse ano, a pedido de Pio X, fixou-se em Roma onde foi nomeado Arcebispo de Damieta e veio a falecer, em 1923. Foi há 100 anos… Os seus restos mortais estão no cemitério do Prado do Repouso. É luminosa a chave com que D. Manuel Linda fecha o seu Preâmbulo: “Mas há uma História com maiúsculas. E essa é devida àqueles que deixaram no tempo marcas indeléveis de bondade e dedicação, obra despertadora de consciências, avanços de civilização e crescimento ético da humanidade. E D. Sebastião Leite de Vasconcelos é um desses. E dos grandes!” (13/3/2024)

terça-feira, março 05, 2024

FAZ, AMANHÃ, CENTO E TREZE ANOS...

Por decreto do Ministério da Justiça (7/3/1911), D. António Barroso foi desterrado da sua diocese por tempo ilimitado. Nesse dia, quando era conduzido da estação de Campolide para o Terreiro do Paço, onde um ‘simulacro’ de tribunal o condenou, foi apedrejado e insultado por populares, a maioria pertencente à carbonária. No dia 9, seguiu, sob prisão, para o Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim onde tinha sido aluno. Em abril, foi obrigado a deixar o Colégio devido a um motim de alunos, instigados por líderes locais da maçonaria, e refugiou-se em casa do seu amigo, Dr. Gualdim de Melo. Em junho, viajou para a sua terra de Remelhe, Barcelos aonde chegou no dia 10. Aí viveu, em exílio, até 1914. E uma pergunta se impõe: Que crime cometeu? Este cidadão-bispo a quem Afonso Costa, no mesmo decreto que o ”destituiu das suas funções episcopais , concedeu uma pensão vitalícia anual, no valor de 1200$00 pelos serviços no ultramar e pelas suas virtudes pessoais” (Réu da República) o que ele sempre recusou receber? Simplesmente porque, sendo bispo do Porto, foi coautor da Pastoral Coletiva dos Bispos; não proibiu a sua leitura na Diocese e teve a ousadia de lembrar a um ‘democrata’, a regra básica da democracia, ou seja, a separação dos poderes: legislativo, executivo e judicial: “ Permita V. E. que, com vista nos altos interesses que me estão confiados, e que tanto importam ao Estado português, eu venha pedir a V. E. que as medidas, que se diz o Governo Provisório da República Portuguesa - Poder Executivo - tenciona tomar, com respeito a assuntos eclesiásticos, não sejam decretadas antes da reunião da Assembleia Constituinte – Poder Legislativo - mas sim sejam a ela presentes.” No número de Outubro/Dezembro, de 2023, do ‘Boletim do Venerável D. António Barroso’, de que é diretor, o Dr. Amadeu Araújo transcreve várias textos sobre o ensino/educação de D. António Barroso, em localidades e circunstâncias bem distintas, que revelam mais uma faceta admirável do ‘nosso’ Bispo Venerável, e nos surpreendem pelo seu caráter inovador e profético. . Missionário em Angola (1880/1891) - Quando na Metrópole 90% das mulheres eram analfabetas, advoga o ensino das raparigas, com argumentos ricos de significado: “Ao lado da escola para rapazes, deve haver a escola para raparigas: não sendo assim, nós estamos a civilizar meia humanidade, mas escapa-se-nos a outra meia, quiçá a mais importante, pelo predomínio que tem na formação dos costumes.” Bispo em Moçambique (1891/1897) – Defende, como forma de emancipação, a criação de cursos profissionais para os ‘indígenas’: “O que era para desejar seria que os pequenos arsenais da província fossem escolas práticas de ofícios, onde o indígena, junto com a língua portuguesa, a leitura e as quatro operações, pudesse aprender um ofício pelo qual se emancipasse da miséria e da vadiagem em que vive, podendo prestar assim ao europeu e ao desenvolvimento da província, os melhores serviços.” Bispo do Porto (1899/1918) – Cria, no seminário diocesano dos Carvalhos, uma cadeira de Ciências Naturais, com o fundamento: “Hoje mais que nunca, é necessário que os estudos feitos nos seminários diocesanos estejam em harmonia com as tendências do século, e que aqueles que lá se preparam e adestram para as lides do sacerdócio, quando deixarem a escola e empreenderem a ação social, possam levar a luz (…) Tomem-se como norma os grandes trabalhos de ciências naturais apresentados nos congressos de Bruxelas, Paris e Frigburgo”. Quanto mais se conhece o seu pensamento e a sua obra mais se admira este ‘missionário’ que um dia (7/5/1889) afirmou: “Deve o missionário africano ser padre e artista, pai e mestre, doutor e homem da terra; deve tão depressa tomar a estola, como empunhar a picareta para arrotear uma courela”. Como foi possível a sua condenação!?... Só a prepotência dum radicalismo ideológico num ateísmo militante a podem explicar, mas nunca justificar e muito menos legitimar… O mal não estava na República - o anticlericalismo já vinha dos tempos da Monarquia - mas, sim, na sanha maçónica e carbonária dos seus governantes. Há quem tenha o condão de conspurcar a água que bebe… (VP, 6/3/2024)