O Tanoeiro da Ribeira

segunda-feira, abril 16, 2007

COLÓQUIO EUROPEU DE PARÓUIAS

Há uns tempos atrás, recebi esta mensagem do meu filho João Miguel “ Beijos e abraços desde Munique” a que respondi : ”Olá filho. Lembrei-me de 1971. Bom regresso. Beijos
Estive em Munique na sequência de um Colóquio Europeu de Paróquias que, nesse ano decorreu em Estrasburgo.

O Colóquio Europeu de Paróquias era uma organização aberta a todos os responsáveis paroquiais, padres e leigos, da Europa. Reunia de dois em dois anos numa cidade europeia, na primeira semana de Julho, sendo intercalada por reuniões nacionais. O tema do congresso era escolhido no encontro precedente. Desconheço quando se fundou, mas sei que o Pároco das Antas já esteve presente no Colóquio de 1967. Por convite deste, a minha participação iniciou-se em 1969. A Comissão de Leigos que administrava a minha Paróquia considerava que as despesas da minha participação deveria ser suportada pela Paróquia uma vez que se tratava de um curso de aperfeiçoamento de que ela própria beneficiava. Nesse ano, penso que só participaram padres de Lisboa e Porto. Nos anos seguintes, estiveram presentes outras dioceses.
Estes encontros internacionais para além dos temas tratados por especialistas de renome e os testemunhos de experiências pastorais de vanguarda, permitiu-me um contacto muito enriquecedor com colegas de toda a Europa Ocidental e mesmo com alguns padres doe Leste. Os grandes dinamizadores deste movimento pastoral eram os párocos franceses, holandeses e alemães. Creio mesmo que o fundador foi o Pároco de S. Roque de Paris, o P. Conan (em Portugal, o grande entusiasta era o Pe. Armindo, pároco de Santa Isabel em Lisboa). Não me demorarei com considerações de ordem pastoral, mas quero aqui recordar apenas alguns episódios que marcaram a minha experiência e que se me arquivaram na memória.

1969
TURIM
Deste Colóquio recordo o meu primeiro contacto com o problema das nacionalidades em Espanha. No início do encontro, foi distribuído um crachat a todos os participantes com o nome e a letra inicial do País. No meu caso: João Alves Dias – P. Logo nessa tarde, reparei, com surpresa, que alguns colegas traziam ao peito crachats rasurados. Estranhei, mas nada comentei. À noite, fomos distribuídos por diversos locais para dormir. A mim, calhou-me ir para o Seminário Maior, onde, por acaso também estavam os colegas do crachat rasurado. Em Francês, meti conversa e perguntei-lhes a razão da rasura. E eles em coro responderam, com cara de poucos amigos: não somos Espanhóis, somos Catalães. Só então reparei que o E(spanha) tinha sido coberto com C(atalunha) bem carregado. Quando souberam que eu era português, ( era o único naquele local) deram cabo de mim: “ grandes amigos, vós os portugueses, quando precisaram do apoio da Catalunha na luta contra os Filipes, era tudo amizade. Mas logo que recuperaram a independência nunca se preocuparam connosco, viram-nos as costas. Grandes amigos (Eles é que não conheciam a expressão, se não chamavam-nos “amigos de Peniche”). Reconheci que tinham razão. Era verdade o que disseram não o podia negar. E em nome de Portugal, um português anónimo pediu desculpa a catalães anónimos por esta “safadeza” dos portugueses. Já tinham passado mais de 300 anos e eles continuavam mesmo zangados connosco! O que me valeu é que logo me apareceram uns “gajos porreiros” a dar-me um abraço afirmando quer éramos irmãos. Quem eram estes? Padres galegos. Não posso esquecer o António Vilassó e o Paco, ambos de Santiago. Conversámos e ficámos todos amigos: éramos todos contra Castela/Espanha e contra Franco/Salazar. Com os galegos, foi o início de uma amizade que ainda perdura, apesar de alguns já terem falecido, como é o caso do Paco que era o pai espiritual e o pároco de um teólogo, já então muito preocupado com o problema da “encarnação” da Igreja no Mundo, o Torres Queiruga – grande amigo.
Com os padres franceses, o tema de conversa era o Joaquim Agostinho que se transformara num herói das estradas francesas. Que admiração! Não me falavam do Eusébio mas enchiam a boca com as façanhas do Agostinho na Volta a França. Compartilhávamos o mesmo entusiasmo pelo ciclismo. Bons momentos…
Eu era o único padre português que usava gravata. Os outros ainda usavam cabeção. Deu nas vistasa minha gravata, apesar de muito dos padres estrangeiros já usarem gravata. (Passado dois anos em Estrasburgo, o Guy, pároco de S. João de Montmarte em Paris, ainda me perguntou por ela e me disse que se lembrava de mim por causa da gravata)
No final do Colóquio, o grupo do Porto ficou uns dias em Milão. Lembro-me que estava muito calor e era o tempo em que as mini-saias apareceram avassaladoras,muito atrevidas e reveladoras… Nos eléctricos os bancos não eram em fila, como os nossos, mas estavam colocados de lado, de modo que os passageiros se sentavam de frente uns para os outros. No banco da nossa frente, iam umas italianas bem nutridas… e de mini-saias bem curtinhas. Era um regalo… E eu a brincar dizia para os meus colegas padres, entre os quais o Senhor Abade das Antas e o de Matosinhos: - Senhores Padres, cuidado com esses olhos marotos, lembrem-se que são padres e não podem escandalizar aquelas inocentes meninas; eu cá por mim… (e apontava para a minha gravata). E eles, muito mais velhos que eu, diziam: -ah! Seu tratante!... No outro dia, resolveram tirar o cabeção. Íamos todos a entrar no Scala de Milão e o senhor Abade das Antas comentou: olha para a nossa figura, que mal nos apresentamos (como tinham tirado o cabeção, via-se a camisa com um colarinho à padre e sem gravata), ali o Pe. João é que parece um senhor. Quando chegar ao Porto vou comprar uma gravata e uma camisa à homem. Todos nos rimos. Bons tempos! Tempos de mudança em que todos, na diferença, nos respeitávamos e estimávamos.
Já que falei na mini-saia, ainda me lembro de uma anedota que me contaram os padres franceses. Eu conto. Qual a semelhança entre uma homilia e uma mini-saia? Como a mini-saia, a homilia deve ser curta para prender a atenção, mas suficiente longa para envolver o assunto e deve conduzir ao ofertório. Que jeito me fez esta anedota… Não sei se foi por causa disso que as pessoas gostavam das minhas homilias… Muito se aprendia com os colegas estrangeiros…

1971
Em Paris
Para o Grupo Português, o Colóquio de Estrasburgo foi precedido por uma “semana pastoral”, em Paris. Desta minha presença em Paris, saltam-me à memória três recordações.
No Hotel Du Nort - Uma noite, aproveitei para ir ao cinema. (Qual era o português que estando em Paris, não aproveitava para ir ao cinema?!...). Quando regressava a casa, por volta das 11 horas, estava com uma sede terrível, não sei se causada pela temática do filme, mas certamente porque estava muito calor. Andei, andei e nada, tudo fechado. Até que vi luz no rés-do-chão de um edifício com o reclame “HOTEL DU NORT”. Empurrei a porta, entrei, dirigi-me ao balcão e pedi: une bièrre s’il vous plait. E um rapazinho lá me serviu a bièrre. Quando esta descia lenta e me afagava as goelas ressequidas, ouvi, lá do fundo da sala um “ caralho, esta vazada era minha”. Apercebi-me que estava entre imigrantes portugueses e perguntei: são portugueses? O rapazinho que me serviu, exclamou: amigo, não me peça uma bièrre porque quem lhe oferece uma cerveja sou eu!... Que maravilha, senti-me em casa. A partir daí, passei a ser frequentador do bar todas as noites dessa semana. No dia seguinte, lá fui eu beber a minha cerveja e meter conversa com os meus conterrâneos. Falaram-me das suas agruras, das saudades, dos filhos e da mulher que deixaram em Portugal, dos seus projectos, das suas condições de trabalho e de vida e convidaram-me a visitar os quartos daquele hotel onde viviam. No outro dia, lá me levaram aos quartos. Ainda sinto o cheiro nauseabundo do petróleo da máquina com que cozinhavam as suas refeições, no mesmo quarto onde quatro ou seis beliches se apertavam uns sobre os outros. O Cheiro do petróleo misturava-se com o cheiro da roupa suja e dos sapatos suados colocados por debaixo dos beliches… Sem eles verem, as lágrimas vieram-me aos olhos. Tanto sofrimento apenas com um fim: ganhar um dinheirito para alimentar a família que ficara em Portugal, amealhar uns tostões para mandar fazer uma casa nova na terra e comprar um carrito, mesmo em segunda mão, para trazerem quando viessem a Portugal. Era uma vergonha regressar à terra, sem um automóvel… Boa gente! Escravos… Ainda hoje não sou capaz de recordá-los sem uma emoção que me faz humedecer os olhos. Eram poucos os que pensavam fazer vida em França. Todos desejavam regressar à sua terra de que morriam de saudades para aí gozar da sua reforma. E tiveram toda esta abertura comigo sem eu nunca lhes dizer quem era: só porque era português e ouvia os seus desabafos… Sentiam-se marginalizados em França onde eram estrangeiros, sentiam-se marginalizados nas suas terras onde eram os imigrantes, “os vacanças”. Um Portugal escorraçado… um Portugal em sofrimento.

Uma ida ao Pigalle
– Estar em Paris e não ir uma noite ao Pigalle? Mas aí não queria ir sozinho. Falando com um colega do Porto (ainda hoje pároco na cidade) e outro de Lisboa (então, pároco de Alfeizerão), uma noite, lá fomos até ao Pigalle. Como não tínhamos dinheiro para ir ao Moulin Rouge, contentámo-nos com uma outra qualquer casa de espectáculos. Entrámos e sentámo-nos numa mesa. Já as bailarinas esvoaçavam em pontas, quando uma menina muito simpática nos veio oferecer uma garrafa de champagne. Dizemos que não queríamos. Fomos escorraçados, “por indecente e má figura”, para o sector do bar onde o pagamento mínimo nos dava direito a um sumo ou cerveja. E nós fomos. Pedimos uma cerveja, mas o meu colega: não bebo, pode estar com droga. Ao que respondi: não posso deixar de beber a cerveja mais cara que paguei em toda a minha vida. E bebi. Se tinha droga, não dei por isso. Aí, de pé, assistimos ao espectáculo, mas foi uma desilusão. Mesmo as artistas não eram lá grande coisa… No entanto, para o apresentador todas eram ”la pus belle!...” A grande voga da época eram as “noires”, mas no palco não apareceram…Por onde andariam?...
Quando saímos, encontrámos o nosso colega de Lisboa, que não tinha entrado connosco, muito aflito. Ele suava. Que se passa, perguntámos nós.- Heina, pá, tenho-me visto aflito, todos se metiam comigo, eram elas e eram eles. Pudera, ver um homem parado em pleno Pigalle…àquela hora da noite… Demos uma valente gargalhada.

No metro num domingo de manhã – Eu e o Afonso íamos concelebrar a S. Germain de Près. O Metro, àquela hora da manhã, ia por nossa conta. Até que entrou uma rapariga, alta, cabelos negros que lhe caíam pelas costas até à cintura, elegante na sua saia e casaco, enfim… bonita, elegante, como dizem os nossos amigos espanhóis, um “monumento nacional”. Uma estampa, dizemos nós. Inebriados por tanta beleza, comentámos baixinho: estas francesas são um espanto… As portuguesitas… Continuámos a conversar. A dado momento da viagem, a menina levanta-se e, em vez de se dirigir para a porta, vem ter connosco e pergunta, com um ar muito humilde: desculpem, os senhores trabalham no Consulado? Ficámos engasgados mas lá fomos atinando com a resposta:- Não, menina, não trabalhamos no Consulado. – É que- continua ela- eu vou-me casar e gostava de saber como se trata dos papéis. Como vejo que não são imigrantes… pensei que pudessem trabalhar no Consulado. Nós informámos que se fosse em Portugal, sabíamos que passos havia que dar, mas em França… Mesmo assim, lá dissemos que papéis eram precisos para organizar o processo matrimonial em Portugal e aconselhámo-la a dirigir-se ao Consulado Português. Talvez por causa do nosso acolhimento simpático, a menina começou a contar-nos a sua história. Foi um longo desabafo. Uma história de sofrimento e solidão. Saíra da sua aldeia da Beira Baixa (já não recordo o nome), passara a fronteira a salto, sofreu humilhações e fome, foi violentada na sua dignidade de mulher, sentiu-se só, sem saber falar francês em terra estranha. Longe da família, os seus dias eram cobertos de lágrimas. Agora ia casar com um português que, entretanto, conhecera. Não estava certa se casava por amor ou simplesmente para fugir à solidão. Ficámos impressionados. Ouvimo-la emocionados. Quando saiu, comentámos: quanto sofrimento se esconde num corpo de espantar; é bem verdade que “quem vê caras não vê corações”. E ali mesmo, silenciosamente, pedimos desculpa às mulheres portuguesas. .. E na Eucaristia que celebrámos, rezámos por esta menina, para que fosse feliz e rezámos por todos os nossos concidadãos que, escorraçados por uma terra-madrasta, penavam por terras estrangeiras.

Em Estarsburgo

As sessões do Colóquio decorreram na sede do Parlamento Europeu (ou foi do Conselho da Europa ?- Já não sei especificar). O tema principal foi os Conselhos Paroquiais que começavam a organizar-se em muitas paróquias da Europa. Dos diversos modelos expostos, escolhi um que, de seguida, implantei na minha paróquia, cuja constituição era: 1/3 de membros eleitos por votação secreta dos paroquianos + 1/3 escolhidos pelos diversos organismos da paróquia e + 1/3 por elementos nomeados pelo pároco. O presidente era escolhido pelo plenário do Conselho entre os seus membros. A temática foi um sucesso. Ainda me lembro do testemunho apresentado pelo pároco da zona de Paris onde estava implantada a fábrica da Renault, um especialista de renome mundial em Pedagogia da Fé: quando cheguei à paróquia, havia um café, fechei-o e convidei os paroquianos a irem comigo, no final das missas, aos cafés das redondezas; havia um jornal da paróquia, fechei-o e convidei os seus jornalistas a escreverem para os jornais da cidade como eu próprio comecei a fazer; havia uma escola paroquial, fechei-a e convidei os pais a inscreverem os filhos nas escolas públicas e a meterem-se nas respectivas associações de pais. E concluía: o mal da Igreja não é não ter feito coisas; o mal da igreja é que fez muitas coisas que não são da sua exclusividade/competência e não fez, como devia, aquilo que lhe competia como sua essência: evangelizar. Foi uma lição que deixou a assistência de boca aberta, mas fez pensar.
Algumas peripécias que ainda recordo.
. Alemães e Franceses. Num intervalo das sessões, estava eu a conversar com um colega alemão quando um padre francês se meteu na conversa. Continuámos a conversar. Mas reparei que o Alemão, que comigo falava em francês, respondia sempre em alemão às palavras do colega francês, de modo que este, simpaticamente, se retirou. Então perguntei-lhe por que só falava em alemão com o colega francês quando comigo falava em francês. E a resposta foi: falo contigo em francês porque não sei português e por isso tu não tens obrigação de saber alemão, falámos uma língua que não é a nossa. Já com o colega francês a situação é outra: assim como, quando ele fala na sua língua, eu o entendo, assim também ele tem obrigação de me entender quando eu falo na minha língua. E mais não disse. Apetece-me copiar Fernando Peça e dizer: E esta, hein? Colegas, colegas, línguas à parte…
. Com o Guy e um colega polaco. Numa viagem, organizada pelo Colóquio, que fizemos ao Reno, eu e o Guy, pároco de S. João De Montmarte, de que já falei, fomos acompanhados por um colega polaco. E quando nós nos queixávamos da dessacralização da nossas sociedades, do abandono da igreja por parte de grandes camadas da juventude, e das grandes questões de ordem moral e pastoral com que nos debatíamos, o colega polaco ficava admirado e dizia que na Polónia nada disso se observava. E quando nos entusiasmávamos com os ventos de renovação que o Vaticano II trouxera à Igreja, ele ficava como que à parte, alheio ao que se passava. Ficámos de tal modo surpreendidos que, quando ele nos deixou, interrogámo-nos: será que ele estava a ser sincero ao dizer tão bem da sua terra ou, pelo contrário, não podia dizer a verdade com medo de represálias por parte do governo comunista se soubesse que ele tinha denegrido a imagem da Polónia? Mas depois de analisarmos bem, concluímos que ele era sincero e que o catolicismo polaco deveria ser muito conservador. Lá não chegava o que preocupava e entusiasmava a igreja ocidental. Ainda me recordo de, quando o Papa João Paulo II foi eleito Papa, eu ter dito para quem me perguntou a opinião: espero que ele não seja tão conservador como me pareceu o catolicismo polaco. E foi? Ou não? Renovador “ad extra”, conservador “ad intra”.
Já que falei no Guy, gostava de me alongar mais um pouco. Ficámos amigos, mas perdi-lhe o rasto depois de deixar o exercício sacerdotal. Recordo uma visita que ele fez ao Porto. Levei-o às Caves do Vinho do Porto. E no fim ele, em jeito de agradecimento, disse-me: - disto não te posso oferecer na minha paróquia, mas posso oferecer-te o “preço de dia” quando lá fores e quiseres frequentar qualquer bar no Pigalle ou em Montmarte. Quis saber o que era isso do “preço de dia”e ele explicou-me: os bares, de dia, são muito mais baratos que à noite. A mim, como sou o pároco, pago sempre o “preço de dia” mesmo que vá à noite, o mesmo acontece aos meus acompanhantes. Rimo-nos. E, maroto, perguntei-lhe se isso dava para todos os serviços…Agradeci mas nunca pude beneficiar desse privilégio. Que será feito do Guy? Ainda estará na mesma Paróquia? Que maravilha de colega! Que boa disposição!... Tenho que ir a Paris…

Em Munique

Eu e o Afonso decidimos ir, no final do Colóquio, visitar Munique que considerávamos a “capital cultural da Alemanha.”. Um dia ao almoço, quando estava na fila (ou na bicha? Penso que é na bicha que, para mim, é uma fila em movimento) para me servir, reparei que o colega que estava à minha frente falava francês e no crachat tinha um A (de Áustria). Meti conversa. Disse-me que era descendente de belgas e que, nessa época, era o pároco de S. Pedro em Viena. Falei do meu desejo de ir a Berlim e perguntei-lhe se podia dar boleia a mim e a um outro colega português. Disse que sim com a única condição de as malas serem pequenas. No final do congresso, lá nos levou: fiquei maravilhado com as auto-estradas e, especialmente, porque ele na fronteira nem saiu do carro, limitou-se a mostrar o bilhete de identidade. Que diferença quando nós íamos a Espanha comprar pneus para o carro: que complicação… Eram os benefícios do “Mercado Comum”.

Chegados a Munique, e arranjado o hotel, logo nos dirigimos a uma enorme cervejaria instalada num frondoso parque da cidade.. Estava um calor tremendo e era hora de jantar. Não sabíamos alemão, mas tínhamos levado um livro de conversação onde, em transcrição fonética, dos dizia como pedir num restaurante/cervejaria. Combinámos o que íamos pedir e o Afonso pronunciou, em alemão que nos pareceu correcto de acordo com as orientações do livro, o que queríamos. O empregado encolheu os ombros… Eu repeti o pedido, falando com uma voz mais grossa e o resultado foi o mesmo. Por sorte, nesse momento passava um outro empregado com o que nós pretendíamos. Foi só apontar e logo o nosso interlocutor acenou a cabeça mostrando que entendera. Linguagem gestual, linguagem universal.
- O Francisco - Quando comentávamos o sucedido dizendo aqui, ao menos, podemos falar à vontade, ninguém nos entende (na nossa terra, estávamos em tempo de ditadura onde a liberdade de opinião/expressão era proibida…), sentou-se a nosso lado (as mesas enormes eram de banco corrido) um cavalheiro que, num alemão fluente, pediu o que queria e foi logo entendido e atendido. Começámos a comer e a dar largas à nossa liberdade de expressão, quando o dito senhor nos pergunta: - são brasileiros? Ficámos estupefactos por ouvir falar português: - Não, somos portugueses. - De Lisboa? – Não, do Porto. - Não conheço, mas dizem que é bonito . - Um maravilha. E o Norte? Coisa de encantar… Entabulámos conversa. Ficámos a saber que era brasileiro, de ascendência alemã, proveniente de hugonotes franceses e se chamava Francisco Levoisier. Estava a fazer uma pós-graduação em engenharia na Universidade de Munique. E logo ali ficou combinado que todos as noites nos encontraríamos naquele local e àquela mesma hora.
No dia seguinte, chegámos primeiro. Reservámos logo um lugar para o Francisco porque a cervejaria estava a ficar repleta. Passado pouco tempo lá apareceu ele a tentar encontrar-nos lá do alto dos seus quase dois metros. Ao ver-nos, sorriu e confessou: ontem não vos disse nada mas hoje queria fazer-vos uma surpresa. É que casei há três meses e desejava apresentar-vos a minha esposa. Só há um problema: é que ela não entende uma palavra de português. Agradecemos a gentileza e levantámo-nos para receber tão agradável presença: era uma rapariga miudinha, bonita e com um sorriso angélico. Era alemã mas filha de mãe italiana. Eu logo pensei: para ser tão benfeitinha, bonita e graciosa só podia ser italiana… A partir daí, o Francisco passou a ser o nosso motorista com o seu “carocha” azul. Na sua companhia, subimos à “torre olímpica" que acabava de ser construída (em 1972 foram os Jogos Olímpicos de Munique de fraca memória por causa do ataque terrorista aos atletas judeus). Mas o que mais recordo foi a visita que fizemos ao “Campo de Concentração de Dachau”. O Francisco entrou connosco. A esposa ficou no carro à entrada e, com os olhos humedecidos, pediu ao marido: diz aos teus amigos que eu nunca aqui vim, hoje só vim para os acompanhar, e que, ao verem os horrores do campo, não condenem o povo alemão porque não foram os alemães que cometeram estes horrores mas sim uns poucos alemães loucos.
Percorremos em silêncio todo o campo. Estava cheio de gente: lágrimas, mãos em prece, rostos carregados, cabeças caídas. Um silêncio religioso de campo santo, um silêncio sepulcral. Quando saímos não dissemos palavra. Só começámos a falar quando chegámos a Munique, a uns 40 km de distância. Nessa noite, não fomos à cervejaria.
Na véspera da nossa partida, lá nos encontrámos como de costume. Mas a esposa do Francisco vestiu-se a rigor com os trajes típicos da Baviera. Que bem lhe ficava aquele avental! Ao vê-la assim deslumbrante, comentei para o Francisco:- parabéns, a tua mulher está mesmo linda. Ele sorriu e, o que é mais estranho, ela também. Perguntei ao marido por que é que ela tinha sorrido e ele disse-me: - é que ela percebeu que tu disseste que ela estava bonita. Rimo-nos felizes. E comentámos: um mulher percebe em qualquer língua um piropo gentil… E, nessa noite, foram três canecas de litro… Para todos? Não…

1973
MAASTRICHT

Nunca tinha ouvido falar em semelhante terra ( agora tão conhecida). Fomos de avião de Lisboa até Amesterdão. Daí, num voo doméstico, que fez escala em Eindhoven (o aeroporto parecia um apeadeiro…) seguimos para essa cidade na zona de maior altitude da Holanda, a cerca de uns 70 metros de altitude. O Congresso decorreu na Faculdade de Teologia.
* Para dormir, fomos acolhidos graciosamente por famílias voluntárias. Com um colega de Lisboa, fiquei em casa de uma senhora viúva que muito bem nos recebeu. Sabia falar em francês. Foi o eu nos valeu…Que abundância nos pequenos almoços…
* Quem nos servia à mesa à noite (ao almoço não havia refeição quente, eram apenas umas sandes…) eram os estudantes de teologia, rapazes e raparigas. Foi um espanto. Raparigas em Teologia? Informaram-nos que sim porque as paróquias davam trabalho e pagavam a “assistentes pastorais” que tanto podiam ser rapazes como raparigas. E a forma como serviam: eles de chapéu de grandes abas na cabeça: elas bem decotadas… Coisas novas… e velhas… de que fala Escritura.
* E uma das conferencistas foi uma teóloga alemã com quem conversei porque ela tinha estado vários anos a trabalhar no Brasil com D. Helder da Câmara. Que profundidade teológica e que agudeza na sua análise social.
* Um dia passei a refeição a conversar com o meu colega de lado que se mostrou muito interessado em conhecer a situação que se vivia em Portugal. Usava gravata e tinha apenas uma pequena cruz na lapela do casaco. Ao fim da tarde, a concelebração foi presidida pelo Cardeal Suenens. Só então soube quem fora o meu interlocutor durante a refeição. Era um admirável mundo novo.
* Na recepção que a autarquia local nos ofereceu, o beberete decorreu nos jardins da Câmara, depois de um belíssimo concerto de música clássica. Ainda sinto nos olhos o bruxulear das velas acesas nos nenúfares que enxameavam o lago. Era um espectáculo de luz e sombras em danças fantasmagóricas com vozes em surdina e silêncios de contemplação. Que maravilha! Que beleza!...
CONCLUINDO… Considero que muita da minha actividade pastoral e da minha visão da Igreja e do Mundo se deve à participação nestes Colóquios… Foi o vivenciar da catolicidade da Igreja. Abriu-me os horizontes...