O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, julho 29, 2015

A FRENTE ATLÂNTICA





No início deste mês, realizou-se o “primeiro grande projeto desportivo internacional da Frente Atlântica do Porto” (JN,4/7)
Longe vão os tempos em que Porto, Gaia e Matosinhos viviam de costas voltadas. Apesar do bairrismo das suas gentes, formam um todo que convém harmonizar na busca duma complementaridade que a todos enriquece. Se no Porto se privilegia o carisma e o património e em Gaia as caves e a frente marítima que se estende até Espinho, já Matosinhos faz-nos lembrar a Ode Marítima, de Pessoa “Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!"
“Não venham vender-nos praias que isso não nos falta, ofereçam-nos história que é o que não temos”, dizia um americano, ao ver um cartaz do Algarve, em Nova Iorque. E história não falta ao Porto. Começou por chamar-se “Cale”- rochedo/pena/penha, na raiz indo-europeia -, no cimo do monte da Penaventosa e deu nome aos Calaicos, o povo que, então, vivia a norte do rio Douro. Vieram os Romanos e estenderam a Calécia até ao mar Cantábrico. Daí nasceu a Galiza. E, porque, se situava na confluência do rio Douro com a estrada de Olisipo para Bracara, chamaram-lhe “Portucale”, nome que, séculos mais tarde, está na origem de Portugal”. No século XII, com o bispo D. Hugo, fez-se “cidade episcopal” e esteve na Conquista de Lisboa, em 1147, com o bispo D. Pedro Pitões e os Cruzados; na crise de 1383/85, apoiou o Mestre de Avis; esteve na Conquista de Ceuta em 1415, com a armada do Infante D. Henrique; lutou contra o domínio filipino no “Motim das Maçarocas” e contra o absolutismo do Marquês de Pombal na “Revolta dos Taberneiros”; sofreu e expulsou os franceses da 2ª invasão em 1809; com a revolução liberal de 1820, lançou as bases da Monarquia Constitucional; combateu pela liberdade ao lado de D. Pedro no Cerco do Porto; em 31 de janeiro de 1891, gritou na rua contra o Ultimato Inglês e clamou pela República; resistiu à sanha maçónica e carbonária na 1ª República, com D. António Barroso; não se vergou ao “Estado Novo” com D. António Ferreira Gomes. Com Pires Veloso, o "vice-rei do Norte", opôs-se aos desvios do pós 25 de Abril.
Percorrer as ruas do Porto é dedilhar um livro de história. Mas, para apreciar a encadernação, tem de se passar para Gaia e extasiar-se com a cascata burguesa que, do alto da Sé, se debruça sobre o Douro. Em rito de celebração, há que entrar nas caves para degustar o néctar que levou o nome do Porto a todo o Mundo e descansar nas praias de areia dourada.
E para terminar em beleza, só falta saborear o peixe em Matosinhos e admirar o novo terminal de cruzeiros de Leixões. .
Uma sugestão para este verão: visitar o Museu da Misericórdia do Porto, na rua das Flores, um sonho com mais de 120 anos que acaba de ser realizado.

(
29/7/2015)

quarta-feira, julho 22, 2015

O Pequeno Pastor


As andorinhas enchem os beirais,
já se ouve o cuco nas serras,
A flor do linho borda a azul
As agras da beira-rio,
E, nas leivas, debicam boieiras.

O pequeno pastor,
no monte, sozinho,
vigia o gado que retouça
a erva fresca das cavadas.
E descobre um ninho de gaio
lá bem no alto dos pinheiros.
Um zumbido rodopia,
nas flores mourejam abelhas.
Numa ramada, verdejam videiras
onde carriças escondem o ninho.
Um chasco, cor de cinza,
disfarça os ovos
em touça de carqueja.

Tudo floresce. É primavera.

Os bois não abocanham
o tojo que esconde espinhos
no amarelo queimado das flores.
Borboletas esvoaçam suaves
Em lampejos de luz e cor.
Os estorninhos riscam o céu
Com o negro das asas.
Num sobreiro, duas pegas esvoaçam
Em augúrio de boa sorte.
E num carvalho, o pica-pau marca o ritmo
duma sinfonia sem partitura.
Tojos, giestas, carquejas matizam amarelos
com o violeta da queiró
que papoilas salpicam de sangue
e estevas debruam de brancura.

E o pequeno pastor,
de alma enamorada, canta:
A primavera tem lindas flores,
todas diferentes nenhumas iguais
A primavera vai e volta sempre,
a mocidade vai e não volta mais”.
Contempla… admira… Sonha…
E esquece as ovelhas que esgaçam
os rebentos tenros das videiras.
- Ai, que desgraça!...
Corre, gesticula, grita.
E as ovelhas saboreiam
o petisco da transgressão…
É tempo do regresso.
Dolentes, já bateram as “trindades”
Na capela de Terronhas
e o sol escondeu-se na serra da Pia.

Amanhã outro dia virá….”

PARTILHA DE AFETOS


Em 10 de junho, o Santo Padre disse que a fraqueza dos nossos familiares pode ser uma escola de vida se for acompanhada da oração e da presença afetuosa dos seus membros.
Naquele dia 17 de julho, já lá vão muitos anos, o “pequeno pastor” não saiu com o gado para o monte, como era seu hábito de todas as manhãs. Ficara a ajudar a mãe a fazer o “jantar” para os vizinhos que tinham vindo ajudar a “arrancar batata”. Como não havia água canalizada, a mãe teve de ir à fonte buscar um caneco. Enquanto isso, e por sua ordem, o filho foi ao quinteiro procurar a carqueja mais seca para ela acender a fogueira quando chegasse. Ao descer a escadaria de granito sem corrimão, falseou-lhe um pé, caiu e as costelas flutuantes perfuraram-lhe o baço. No outro dia, foi levado de urgência para um hospital do Porto e, de urgência, tinha de ser operado. Mas só o seria se o pai se responsabilizasse pelo pagamento da conta hospitalar. Nesse tempo, não havia Serviço Nacional de Saúde... e quem não podia pagar... O pai não tinha dinheiro e, em momento de aflição, nem sabia como o arranjar, mas não hesitou: -” se há uma esperança, opere-se.” E o menino, que tinha feito a primeira comunhão no mês anterior, foi operado. Penou quatro dias entre a vida e a morte. O pai sempre o acompanhou. Enquanto isso, a mãe, cerradas as portadas das janelas, mantinha apagada a lareira e, com as vizinhas, rezava a Santa Justa, cuja capela branquejava lá longe no alto da serra. E foi no dia da sua festa que ele começou a melhorar. Salvou-se. Nunca lhe foi dito quanto se gastou nem os sacrifícios que a família teve de suportar para pagar o que pedira emprestado. E a despesa total rondou os vinte contos... Uma quantia muito significativa na década de quarenta do século passado. Que o digam os mais antigos...
A gravidade da “operação” fragilizou-o e retardou a sua entrada na escola, mas a família logo decidiu que, se “tivesse cabeça para aprender, deveria seguir os estudos”. E estudou à custa do exíguo pecúlio familiar, enquanto os irmãos continuaram a amealhar para a casa, no trabalho duro do campo. Sem um queixume ou outra motivação que não fosse o amor à família.
Razão tem o Papa Francisco quando na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais. escreveu: “Na família é sobretudo a capacidade de se abraçar, apoiar, acompanhar, decifrar olhares e silêncios, rir e chorar juntos, entre pessoas que não se escolheram e todavia são tão importantes uma para a outra...(...) Além disso, num mundo onde frequentemente se amaldiçoa, insulta, semeia discórdia, polui com murmurações o nosso ambiente humano, a família pode ser uma escola de comunicação feita de bênção”.
Benditos pais e felizes os filhos que crescem em tais famílias!

22/7/2015)

quarta-feira, julho 15, 2015

O Ateísmo Freudiano (II)


    Freud reconhece a pouca firmeza da sua argumentação: “Se as ideias religiosas não podem, racionalmente, ser provadas também não podem ser negadas”. Ao ler seus escritos sobre religião (Actos Obsessivos e Práticas Religiosas, 1907; Totem e Tabu, 1913; O Futuro duma Ilusão, 1927; Moisés e o Monoteísmo, 1939), ficou-me a impressão de que, ao longo de 32 anos, buscou argumentos para justificar a sua tese. Porquê esta fixação? Por que é que Freud nunca ousou psicanalisar o seu ateísmo?
    Três factores costumam ser apresentados.
    1. A psicanálise nasce ligada ao cientismo do século XIX. O conhecimento científico assumia-se, então, como o único válido e absoluto. A. Comte, paladino do positivismo, “ensinara mesmo que as explicações científicas dos fenómenos naturais e sociais deveriam ser complementadas com a institucionalização de uma nova religião” (Amadeu Araújo, Um erro de Afonso Costa)
    2. Em criança, teve uma ama católica que o levava a assistir aos atos religiosos. Severa perante as transgressões, ameaçava-o com o fogo do inferno. Esta “velha pré-histórica” fora despedida de sua casa por ter roubado. Sofreu e sentiu uma grande desilusão quando soube a motivação. Também em criança, viu o pai, por ser judeu, ser humilhado pelos vizinhos.
    3. Abrigava preconceitos contra o cristianismo em geral, a religião que através dos séculos havia infligido tão incontáveis sofrimentos ao seu povo. Sentia-se marginalizado e em 1938, com a invasão nazi, teve de fugir de Viena e refugiar-se em Londres onde morreu em 1939.
Concluindo... Viviam-se dias de incerteza. Como escreveu Brecht em1928, “Porque eu já o tinha esquecido/ao trucidado, e faz-me lembrar/Diariamente de vós, que estais vivos,/De vós que não fostes abatidos./Afinal porque não?” Freud é filho desse tempo e duma nação vítima do holocausto. O seu pessimismo leva-o a negar Deus porque “seria bom de mais que ele existisse”. Isto, porém, não retira pertinência à sua análise de cariz antropológico. Seria fácil dizer que não passa duma teoria sem base histórica ou experimental como seria de exigir ao “pai da psicanálise”; que o que estava a seu favor também podia ser contra; que a religião de que fala não é cristã; que lhe falta fundamentação teológica... Mas a verdade é que, ainda hoje, há práticas, ditas cristãs, que continuam a dar-lhe argumentos.
Para terminar lembro as palavras introdutórias da Encíclica “Fé e Razão” de João Paulo II: “A fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio.”

(15/7/2015)

terça-feira, julho 14, 2015

O Ateísmo Freudiano (I)


Foi num funeral com a igreja cheia. Muitos estavam ali por razões meramente sociais. O celebrante falou como se estivesse perante uma pouco letrada assembleia de missa diária quando a maioria tinha formação académica superior e alguns uma perspetiva religiosa com forte influência freudiana. E veio-me à mente um texto que li em maio de 1974. Dizia:
“Se, no presente, as críticas feitas à religião seguem na linha de Marx, parece-me que, as de futuro, estarão muito mais na linha de Freud. Com as suas análises psicológicas, Freud vai muito mais fundo. É o homem das grandes intuições e, por isso, as suas conclusões, apesar de pouco fundamentadas teologicamente, devem merecer à Igreja muita atenção.”
E quais são essas as críticas?
Paul Ricoeur identificou três “mestres da suspeita”: Nietzsche, Marx e Freud. São estes os “pais” do ateísmo contemporâneo. Se Marx fala da religião como “ópio do povo” e, para Nietzsche, o cristianismo nada mais é que um “platonismo popular”, já Freud considera a religião como uma ilusão útil, mas transitória, para uma sociedade em menoridade. O homem precisa de viver em sociedade mas sofre com as suas exigências até porque “em cada pessoa existem tendências destrutivas, anti-sociais e anti-culturais”. A cultura, porque repousa sobre a obrigação de trabalho e a renúncia dos instintos individuais, tem de possuir meios de reconciliar o indivíduo consigo próprio e o recompensar desses sacrifícios. Ela dá desgosto e prazer, priva e satisfaz, proíbe e consola. Interdita mas, ao mesmo tempo, protege os homens e reconcilia-os uns com os outros. A formação da consciência moral, com a introjeção das normas parentais, substitui os meios externos de coação. A religião, “a parte mais importante do inventário psíquico duma civilização”, aparece como instrumento ideal ao serviço da ambivalência cultural. Sentindo-se impotente perante a natureza e a morte, o homem deseja libertar-se dessa angústia e , por isso, cria um pai todo poderoso, senhor do universo e da vida, que o defende e recompensa. Assim como a criança, quando cresce, deixa a nevrose infantil, assim também a humanidade, à medida que se for tornando adulta, libertar-se-á das ideias religiosas. Esta libertação terá de ser progressiva. Inicialmente, o homem vai sentir-se só, vai encontrar-se consigo mesmo sem alienações nem infantilismos. Aprenderá a aguentar os reveses da vida sem consolações alienantes. Freud reconhece que a ciência não poderá dar ao homem tudo o que a religião prometia, ou seja, a realização dos seus desejos mais profundos. Porque isso seria bom de mais, conclui que a religião não passa duma doce ilusão. Não acreditava na felicidade. Não admitia a escatologia. Renegava toda e qualquer “teologia da esperança”. (Continua)


(8/7/2015)

quarta-feira, julho 01, 2015

"NÓS SOMOS DOENTES..."


Há imagens que se agarram à memória de infância e seguem-nos toda a vida. Tempos atrás, ao passar junto ao “Conde Ferreira”, o Francisco, de quatro anos, surpreendeu-me: “Avô, este é o hospital dos maluquinhos”. Para desvanecer esta imagem e expurgar as minhas memórias, fomos, com os amigos do “Boa Memória”, visitá-lo. 
Inaugurado em 1883, fruto dum legado do Conde Ferreira, foi o primeiro edifício construído em Portugal para doenças psiquiátricas. “No Conde Ferreira despontava nesse tempo uma aurora radiosa que haveria de cobrir de prestígio a Medicina portuguesa. António Maria de Sena, director do hospital, acabava de chegar de Paris e de Viena. (...) Sena tinha como assistentes no novo hospital, que de resto era dos mais modernos e bem equipados da Europa, dois jovens que haveriam de marcar com letras de ouro a Medicina portuguesa: Júlio de Matos e Magalhães Lemos (Carlos Mota Cardoso, O louco, o médico e o génio). Atualmente, para além do internamento, tem o Centro de Dia de Alzheimer e a Unidade de Cuidados Continuados Integrados.
 Ao percorrermos o hospital, os doentes saudavam-nos e vinham, com um sorriso, cumprimentar o Francisco. Visitámos o Panótico onde se “prendiam os doentes mais agitados” e a biblioteca com “primeiras edições” e livros únicos. No final, meu neto concluía: “este hospital não é de maluquinhos, são doentes que não se magoaram nas pernas nem nos braços, são doentes da cabeça”. Já no fim, um doente veio dizer-me que apareceu no filme Pára-me de repente o pensamento.
À noite, fui vê-lo. “O ator Miguel Borges passou três semanas com os atuais doentes do hospital. Durante esse tempo, partilhou com eles as conversas, as refeições, as terapias, o café e os cigarros. Jorge Pelicano seguiu os seus passos e filmou 250 horas desse convívio e aprendizagem de que resultou um tratado, de hora e meia, sobre a loucura e a lucidez.” (Público) Um dos doentes-atores sintetizava: Nós somos doentes, não somos malucos. “Utentes vagueiam pelos corredores. Circulam sós. Esperam. Mais um cigarro que morre em beata. Terapias que apelam aos sentidos. É a vida que se repete num hospital psiquiátrico. A lucidez e a loucura vivem juntas. Do mundo exterior chega um ator que procura a sua personagem para uma peça de teatro, submergindo no mundo dos esquizofrénicos. Os doentes são parte do processo de construção. No meio da névoa, o ator depara-se com um poema do poeta pintor Ângelo de Lima”, que, entre 1894 e 1898, esteve internado neste hospital: Pára-me de repente o pensamento / Como que de repente refreado / Na doida correria em que levado /Ia em busca da paz, do esquecimento...
Em suma, ficou-me a memória expurgada em vivência dolorida...
Pára surpreso, escrutador, atento/Ante um abismo súbito rasgado...


( 1/7/2015)