O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, julho 01, 2015

"NÓS SOMOS DOENTES..."


Há imagens que se agarram à memória de infância e seguem-nos toda a vida. Tempos atrás, ao passar junto ao “Conde Ferreira”, o Francisco, de quatro anos, surpreendeu-me: “Avô, este é o hospital dos maluquinhos”. Para desvanecer esta imagem e expurgar as minhas memórias, fomos, com os amigos do “Boa Memória”, visitá-lo. 
Inaugurado em 1883, fruto dum legado do Conde Ferreira, foi o primeiro edifício construído em Portugal para doenças psiquiátricas. “No Conde Ferreira despontava nesse tempo uma aurora radiosa que haveria de cobrir de prestígio a Medicina portuguesa. António Maria de Sena, director do hospital, acabava de chegar de Paris e de Viena. (...) Sena tinha como assistentes no novo hospital, que de resto era dos mais modernos e bem equipados da Europa, dois jovens que haveriam de marcar com letras de ouro a Medicina portuguesa: Júlio de Matos e Magalhães Lemos (Carlos Mota Cardoso, O louco, o médico e o génio). Atualmente, para além do internamento, tem o Centro de Dia de Alzheimer e a Unidade de Cuidados Continuados Integrados.
 Ao percorrermos o hospital, os doentes saudavam-nos e vinham, com um sorriso, cumprimentar o Francisco. Visitámos o Panótico onde se “prendiam os doentes mais agitados” e a biblioteca com “primeiras edições” e livros únicos. No final, meu neto concluía: “este hospital não é de maluquinhos, são doentes que não se magoaram nas pernas nem nos braços, são doentes da cabeça”. Já no fim, um doente veio dizer-me que apareceu no filme Pára-me de repente o pensamento.
À noite, fui vê-lo. “O ator Miguel Borges passou três semanas com os atuais doentes do hospital. Durante esse tempo, partilhou com eles as conversas, as refeições, as terapias, o café e os cigarros. Jorge Pelicano seguiu os seus passos e filmou 250 horas desse convívio e aprendizagem de que resultou um tratado, de hora e meia, sobre a loucura e a lucidez.” (Público) Um dos doentes-atores sintetizava: Nós somos doentes, não somos malucos. “Utentes vagueiam pelos corredores. Circulam sós. Esperam. Mais um cigarro que morre em beata. Terapias que apelam aos sentidos. É a vida que se repete num hospital psiquiátrico. A lucidez e a loucura vivem juntas. Do mundo exterior chega um ator que procura a sua personagem para uma peça de teatro, submergindo no mundo dos esquizofrénicos. Os doentes são parte do processo de construção. No meio da névoa, o ator depara-se com um poema do poeta pintor Ângelo de Lima”, que, entre 1894 e 1898, esteve internado neste hospital: Pára-me de repente o pensamento / Como que de repente refreado / Na doida correria em que levado /Ia em busca da paz, do esquecimento...
Em suma, ficou-me a memória expurgada em vivência dolorida...
Pára surpreso, escrutador, atento/Ante um abismo súbito rasgado...


( 1/7/2015)