"NÓS SOMOS DOENTES..."
Há imagens que se agarram à memória
de infância e seguem-nos toda a vida. Tempos atrás, ao passar junto
ao “Conde Ferreira”, o Francisco, de quatro anos, surpreendeu-me:
“Avô, este é o hospital dos maluquinhos”. Para desvanecer esta
imagem e expurgar as minhas memórias, fomos, com os amigos do “Boa
Memória”, visitá-lo.
Inaugurado em 1883, fruto dum legado do
Conde Ferreira, foi o primeiro edifício construído em Portugal para
doenças psiquiátricas. “No Conde Ferreira despontava nesse tempo
uma aurora radiosa que haveria de cobrir de prestígio a Medicina
portuguesa. António Maria de Sena, director do hospital, acabava de
chegar de Paris e de Viena. (...) Sena tinha como assistentes no novo
hospital, que de resto era dos mais modernos e bem equipados da
Europa, dois jovens que haveriam de marcar com letras de ouro a
Medicina portuguesa: Júlio de Matos e Magalhães Lemos (Carlos Mota
Cardoso, O louco, o médico e o génio). Atualmente, para além
do internamento, tem o Centro de Dia de Alzheimer e a Unidade de
Cuidados Continuados Integrados.
Ao percorrermos o hospital, os
doentes saudavam-nos e vinham, com um sorriso, cumprimentar o
Francisco. Visitámos o Panótico onde se “prendiam os doentes mais
agitados” e a biblioteca com “primeiras edições” e livros
únicos. No final, meu neto concluía: “este hospital não é de
maluquinhos, são doentes que não se magoaram nas pernas nem nos
braços, são doentes da cabeça”. Já no fim, um doente veio
dizer-me que apareceu no filme Pára-me de repente o pensamento.
À noite, fui vê-lo. “O
ator Miguel Borges passou três semanas com os atuais doentes do
hospital. Durante esse tempo, partilhou com eles as conversas, as
refeições, as terapias, o café e os cigarros. Jorge Pelicano
seguiu os seus passos e filmou 250 horas desse convívio e
aprendizagem de que resultou um tratado, de hora e meia, sobre a
loucura e a lucidez.” (Público)
Um dos doentes-atores sintetizava: Nós
somos doentes, não somos malucos.
“Utentes vagueiam pelos
corredores. Circulam sós. Esperam. Mais um cigarro que morre em
beata. Terapias que apelam aos sentidos. É
a vida que se repete num hospital psiquiátrico.
A lucidez e a loucura vivem juntas. Do mundo exterior chega um ator
que procura a sua personagem para uma peça de teatro, submergindo no
mundo dos esquizofrénicos. Os doentes são parte do processo de
construção. No meio da névoa, o ator depara-se com um poema do
poeta pintor Ângelo de Lima”, que,
entre
1894 e 1898, esteve internado neste hospital:
Pára-me
de repente o pensamento / Como que de repente refreado / Na
doida correria em que levado /Ia em busca da paz, do
esquecimento...
Em
suma, ficou-me a memória expurgada em vivência dolorida...
Pára
surpreso, escrutador, atento/Ante um abismo súbito rasgado...
( 1/7/2015)
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