O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, julho 31, 2020

"PRO MEMORIA" - FACTOS E CONTEXTOS

 
No 62º aniversário (13/7/1958), da “Carta de D. António a Salazar”, lembro o seu início:

“Na verdade, estando eu, na ocasião das eleições (presidenciais de 8 de junho), legitimamente ausente em Barcelona, a deslocação a Portugal, que se me pedia, por forma tão extraordinária e pública, não poderia deixar de considerar-se propaganda da Situação, visto que, nas condições das duas candidaturas, sem falar sequer da posição ideológica de quem me pedia, era praticamente voto aberto. (…) Em tais condições (…) eu não podia deixar de fazer uma declaração de voto. Como a não deveria fazer em público, requeri fazê-lo a V. Excelência. Acho porém preferível enviar primeiro, por escrito, os pontos fundamentais desta minha declaração a fim de poder ser útil à nossa conferência.”

Salazar sentiu-se ameaçado num dos pilares que já vacilava.

Como disse Luís Salgado de Matos na comunicação «A campanha de imprensa contra o bispo do Porto»:
“Pela primeira vez desde a fundação do Estado Novo, católicos, organizados enquanto tal, tiveram uma intervenção pública de crítica aos métodos da Igreja e, indirectamente, da Situação. Este facto era uma das principais dimensões da crise da «situação» que até aí beneficiara do apoio praticamente unânime dos católicos. Essa quase unanimidade é quebrada a 19 de Maio de 1958, data na qual um grupo de 28 dirigentes católicos escrevera uma carta ao diário católico Novidades. Protestavam particularmente contra a falta de uma «atitude imparcial» em relação às três candidaturas presidenciais”.

Os signatários eram gente da J.U.C. – os afetos ao «Regime» chamavam-lhes «peixes vermelhos em pia de água benta» - que assumiam claramente a sua condição de católicos:
“Os abaixo assinados são católicos que nunca se recusaram, sempre que foi necessário, a publicamente dar testemunho da sua Fé e da sua inquebrantável confiança e submissão à Santa Igreja. São católicos que se orgulham em Cristo de serviços prestados no Apostolado leigo”.

Era uma elite de jovens intelectuais que irá marcar o pós-25 de Abril. Só alguns: João Bénard da Costa, António Alçada Baptista, Nuno Portas, José Pinto Correia, João M. Salgueiro, Adérito Sedas Nunes, Nuno Teotónio Pereira, Nuno de Bragança, Mário Murteira, Henrique Barrilaro Ruas, Pedro Tamen, Manuela Silva, Francisco Pereira de Moura.

Mas o maior perigo vinha do Porto onde Humberto Delgado tivera um comício que abalou os alicerces do «Regime». A voz que urgia silenciar era a do seu Bispo.
A “Carta” serviu de pretexto mas também ateou o rastilho…
 
Joaquim Faria (P. João Oliveira O.P.), nas “Críticas ao livro de Manuel Anselmo”, afirmou: “Essa já famosa carta caiu no meio português como gota de ácido em calcário. Não estávamos habituados a gritar alto e bom som os nossos desacordos. Abdicamos do nosso direito e dever de pensarmos por nossa cabeça. D. António quis pensar por si, frente à realidade nua e crua; Desceu da estratosfera dos princípios ao rés do concreto e da vida prática; uniu os dois polos e saltou faísca. Nada mais”. (29/7/2020)

quarta-feira, julho 22, 2020

"UM ACENO DE DEUS"

 

A Igreja reconheceu as “virtudes heroicas” de três «veneráveis» que marcaram a minha vida.

- D. António Barroso, o «bispo santo» cujas agruras da perseguição minha mãe, na sua meninice, acompanhou de perto. Era seu mestre o “Senhor Abade” que seus pais acolheram quando, em 1911, foi expulso da residência paroquial, Minha admiração fez-se gratidão ao saber que o P. Carlos Coelho, o pároco que me batizou e acompanhou ao longo dos tempos, tinha sido por ele ordenado em Remelhe - «Catedral do Exílio» - em 1913.

- Padre Américo, «um santo», que mandou construir um bairro para os pobres onde vivia uma família minha amiga, bem perto do local – hoje assinalado com umas «alminhas» - em que sofreu o acidente que o levou à morte (1957). Dois anos depois, (1959), quando, jovem vicentino, percorria as ruas do velho Porto, testemunhei a orfandade em que, ainda, se sentiam os seus moradores pela morte do “Pai Américo”.

- D. Sílvia Cardoso, a bondosa senhora que, na freguesia vizinha da minha naturalidade, acolhia raparigas pobres e transviadas, na «Casa do Retiro da Granja». E vivo, há longos anos, na rua do Falcão, quase defronte do local onde funcionou a sua “Casa de Retiros do Porto” que ainda frequentei.

D. António Ferreira Gomes disse: “D. Sílvia foi um aceno de Deus... Tinha mesmo na atitude corporal o gesto de quem vai partir; e nunca a sua necessidade de ação foi orientada para outra meta que não fosse Deus”.

É dela que hoje quero falar não só para celebrar o 138º aniversário do seu nascimento (26/7/1882), mas também porque ela - contraiu a «pneumónica» a cuidar de doentes - é um exemplo de caridade cristã para estes nossos conturbados tempos. Como escreveu o Cardeal Cerejeira ”havia nela muita da loucura dos santos. Amou de todo o coração Deus, Cristo, a Igreja, as almas, e não soube jamais pôr medida ao seu amor”. Não foi sem razão que Monsenhor Moreira das Neves, no livro “Sílvia Cardoso – Aventureira de Deus” lhe chamou “O Anjo das três loucuras”.

A seu respeito, o meu saudoso professor Dr. Ângelo Alves ofereceu-me uma pagela que passo a citar.

“O lar dos pais foi a sua primeira escola de Fé e Caridade. Outras se seguiram. De todas as escolas, porém, a mais fecunda foi a Dor. Em pleno noivado, morre-lhe o noivo; em plena pneumónica, é contagiada.

 Chamada a ser perpetuamente Esposa de Cristo, consagrou-se-Lhe inteiramente, enchendo a sua vida com o amor de Deus e do próximo.(22/7/2020)

Levar Jesus às almas e trazer as almas a Jesus – era a sua divisa. Cooperar incansavelmente na Obra de Deus – foi a sua missão.

Fez-se pobre e mendiga, por amor aos pobres. Para as crianças, vão os primeiros cuidados. Procura as almas transviadas a exemplo do Bom Pastor. A sua vida é caridade em acção: põe a funcionar um hospital, abre uma creche, organiza retiros espirituais, funda lares e patronatos.”

Termino com D. Agostinho de Jesus e Sousa: “Peçamos a Deus que glorifique esta Sua Serva, de maneira a ser proposta para nosso exemplo sobre os altares”. (VP, 22/7/2020)

sexta-feira, julho 17, 2020

HOJE, PARECE UM SONHO...

 

Na primeira semana de julho de 1969, realizou-se, em Turim, o 5º Colóquio Europeu de Paróquias, o primeiro em que participei. E, logo aí, nasceu uma amizade, que ainda hoje perdura, com o grupo da Galiza de que fazia parte o P. Iglésias.

No ano seguinte – faz agora 50 anos -, fui surpreendido por um telefonema:
- “Venho de mando do P. Iglésias e preciso de falar consigo. Como não tenho transporte, agradecia que viesse ter comigo à Praça da Batalha.”
Para me reconhecer, disse-lhe que iria num Fiat 600 branco e ele informou-me que tinha barbas longas e usava uma gorra basca.

Encontrámo-nos e comecei a circular: Batalha, Santo Ildefonso, Batalha…. Voltas e mais voltas. Disse-me que era um preso político do movimento “Falemos galego” que, com outros, tinha fugido de uma cadeia franquista. Expulso das escolas, das instituições e proibido nas igrejas, o galego tinha sido espoliado dos seus direitos de língua matricial e confinado à esfera privada. O espanhol (castelhano), imposto por Madrid, era símbolo e veículo de usurpação. Como sinal de revolta, as placas toponímicas que incluíssem J foram pichadas com X, como “La Toja” (A Toxa).

Um barco esperava-o em Olhão para o levar até Argel. Mas ele não tinha dinheiro para o comboio. E se fosse encontrado pela polícia portuguesa, seria logo preso e recambiado para Espanha. Era amigo do P. Iglésias que o aconselhou a falar comigo. Só precisava do dinheiro para a viagem.

Fiquei estupefacto. A situação era muito complicada e perigosa. Conhecia as boas relações que uniam os dois governos peninsulares. Dar o dinheiro era proteger os «criminosos antifranquistas». Não colaborar, era abandonar uma pessoa que precisava da minha ajuda. Procurei mostrar que não acreditava na história:
- “Poderia ter inventado uma história mais simples para me pedir dinheiro. Mas esta…”
- “Pode não acreditar, mas esta é a pura verdade”, respondeu em voz baixa.

E o carro continuava a rolar… Ao passar junto de um polícia, atiro-lhe com uma provocação:
- “Você sabe que, se eu parar o carro e repetir àquele polícia a história que me contou, o senhor será imediatamente preso…”
- “Eu sei, respondeu resignado, a minha vida está nas suas mãos…”

Senti um nó na garganta…Quem me garantia que não era uma armadilha da PIDE?
Mas tinha que me decidir. E decidi. Fui com ele à estação de S. Bento. Comprei-lhe o bilhete. Aguardei a partida do comboio…

A seguir, por precaução, subi à Sé e fui falar com um professor do Seminário Maior
- “Amigo, se eu desaparecer sem deixar rastos, vão procurar-me à PIDE. E contei-lhe toda a história. Ficou surpreendido mas acalmou-me com palavras de solidariedade.

Não tive qualquer notícia de retorno. Os telefones estavam controlados e a correspondência era vigiada. Mais tarde, vi confirmada a referida fuga e soube que o P. Iglésias, que os apoiava, fugira para o Canadá.
Situações complicadas com que a vida nos confronta e que, na atualidade, nos parece um sonho… (15/7/2020)

 

 

sábado, julho 11, 2020

"DÁ-NOS UM DOM CUIDADOR"

 

No dia 24 de junho, no seu programa “Caminhos da História” do «Porto Canal», o historiador Joel Cleto disse que a festa a S. João resulta da «cristianização» das festividades pagãs do solstício de verão, “festas das colheitas com rituais propiciatórios da fertilidade”. E explicou que o S. João do Porto tem “pouco de cristianismo e muito dos rituais pagãos” que dão significado às orvalhadas, aos balões e fogueiras, às ervas aromáticas e manjericos, aos bailaricos e banhos no rio ou mar.

Mas não foi sempre assim. “Houve épocas com manifestações vincadamente católicas”. Marcas desses tempos são as “cabeças santas de S. João Baptista” que, no dia de S. João, atraíam multidões. Apresentou duas que ainda se conservam no Museu da Misericórdia do Porto e sua igreja e, referiu uma outra, que existiu no extinto convento dos Loios, objeto de grande devoção das gentes do Porto.

Outros tempos…Porque nos dias de hoje ,“As festividades a S. João na cidade do Porto não se revestem duma forma marcadamente religiosa”.

Não assim, em Braga.
No dia anterior, em entrevista à «Antena Minho», a propósito do lançamento da cantiga «Pandemia e São João” de que é autor, cantada pelos «Sinos da Sé», o etnólogo José Machado afirmou que o S. João de Braga “mergulha fundo no imaginário religioso, na vivência de valores catequéticos e religiosos”, procurando fazer da cidade um agregado de gentes, símbolos, ícones e valores religiosos”.

Foi este “imaginário” que o inspirou a criar uma cantiga que apela a valores tão necessários ao nosso tempo de grande “frustração existencial”. Neste sentido, faz-se eco da encíclica «Laudato Si - Sobre o cuidado da casa comum» em que o Papa “pede à humanidade que seja cuidadora” com as pessoas e a criação inteira.

Em sintonia com este pensamento, o entrevistador, comenta: -“Esta cantiga é uma oração”. - Exato, responde, é um canto motivador que segue de perto as orações que, nas romarias, os crentes fazem aos seus oragos”.

É uma espécie de ladainha, em ritmo binário com ressonâncias do paralelismo dos salmos, em que os dois primeiros versículos invocam as qualidades de São João e os dois últimos formulam a prece sempre mediada pelo pedido “dum dom cuidador”.

*Ó S. João inspirador /Dos excessos da folia. - Dá-nos um dom cuidador / Dá-nos sabedoria.

* Ó S. João propiciador /Do nosso divertimento. - Dá-nos um dom cuidador / Dá-nos conhecimento.

* Ó S. João motivador /Das paixões da mocidade - Dá-nos um dom cuidador / Dá-nos criatividade.

* Ó S. João regulador / Da festiva animação - Dá-nos um dom cuidador / Dá-nos a ponderação.

* Ó S. João anunciador /Do sentido da esperança - Dá-nos um dom cuidador / Dá-nos a perseverança.

Para invocar os dons da sabedoria, do conhecimento, da criatividade, da ponderação e da perseverança – cuidada gradação! – tão úteis para os tempos que passam, “Vamos botar uma cantiga / Em louvor de S. João. / O nosso tempo assim obriga /E a pandemia é a razão”. (8/7/2020)

sábado, julho 04, 2020

NA GRATIDÃO, A VIDA FLORESCE

 
Com data de 13 de maio, recebi uma carta que dizia: “Envio-te um livreco - Estrelas no meu Caminho - que, a pedido dos colegas, publiquei. Pouco vale e, para ti, muito menos porque desconheces os visados, mas é, apenas a amizade que me levou a partilhar contigo estes rabiscos”. Assina o P. Justino Lopes, pároco de Vila Nova de Paiva, “velho” assinante da VP e grande admirador de D. António Ferreira Gomes.

Na sua apresentação - “Pórtico Sacerdotal”- escreve: “Sendo eu natural duma Comunidade que tantos padres deu à Igreja, senti-me espicaçado a desfolhar no jornal diocesano, “Voz de Lamego”, nos jornais regionais e, agora colijo em livro, pequenos apontamentos sobre alguns sacerdotes – santos sacerdotes! – que não precisam de «dar pontapés na lua» para brilharem como estrelas no meu caminhar. Aqui lhes presto a minha homenagem de admiração, de gratidão”.

Dos quarenta biografados, conheci D. Alberto, no Porto e o cónego - depois bispo de Bragança - Rafael, em Estrasburgo no Colóquio Europeu de Paróquias.

Limito-me a transcrever alguns testemunhos. Deixo aos leitores o seu juízo.

. “Saio com as mãos limpas e a consciência tranquila. Entrei pobre e saio pobre. Não comprei quintas nem apartamentos. Os meus haveres são do conhecimento de todos”. (P. António Ângelo)

. “Sobre o caso de lecionar Moral na Escola Técnica… Peço desculpa da minha atitude, mas não aceito, nem nunca aceitarei porque nunca concordei que os párocos fossem professores e isto porque conheci e conheço párocos que eram muito zelosos, antes, mas, depois que principiaram a leccionar, abandonaram quase por completo a vida paroquial, limitando-se quase à celebração da Santa Missa e nem os vizinhos podem auxiliar”. (Resposta do P. João Gonçalves ao bispo de Lamego)

. “O jornal é uma necessidade. Diga-se, porém, que se fôramos a regular-nos pelas normas da prudência dos chamados homens práticos – essa estranha raça de espíritos que pondera e julga todas as cousas pelo diapasão da utilidade, da conveniência, da oportunidade, do dinheiro, jamais teríamos coragem, força suficiente para nos lançarmos numa obra que é de apostolado.” (“Palavras de abertura” da “Voz da Nossa Terra”, do P. Sílvio Amaral)

. “Em vez de ficarmos na margem a gritar maldições para o barco, é preferível saltar para dentro dele, remar com os outros e corrigir o rumo.” (Palavras de incentivo do P. Bento da Guia ao P. Justino)

. “Estás a começar, é natural que precises de dinheiro, aqui tens X e pagas quando puderes.” (P. Abel Sousa, quando o P. Justino foi nomeado para Nespereira, Cinfães.)

. “Cultiva-te, Justino. Tu podes. Nós ajudamos-te economicamente, se precisares.” (Colegas vizinhos)

. “Como tínhamos dificuldade em arranjar pregadores quaresmais, resolvemos fazê-lo nós. Trocávamos de paróquia. O esquema era comum, a linguagem e a sonoridade era própria de cada um. E o povo aplaudiu.” (P. Justino)

 

(VP, 1/7/2020)