O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, julho 17, 2020

HOJE, PARECE UM SONHO...

 

Na primeira semana de julho de 1969, realizou-se, em Turim, o 5º Colóquio Europeu de Paróquias, o primeiro em que participei. E, logo aí, nasceu uma amizade, que ainda hoje perdura, com o grupo da Galiza de que fazia parte o P. Iglésias.

No ano seguinte – faz agora 50 anos -, fui surpreendido por um telefonema:
- “Venho de mando do P. Iglésias e preciso de falar consigo. Como não tenho transporte, agradecia que viesse ter comigo à Praça da Batalha.”
Para me reconhecer, disse-lhe que iria num Fiat 600 branco e ele informou-me que tinha barbas longas e usava uma gorra basca.

Encontrámo-nos e comecei a circular: Batalha, Santo Ildefonso, Batalha…. Voltas e mais voltas. Disse-me que era um preso político do movimento “Falemos galego” que, com outros, tinha fugido de uma cadeia franquista. Expulso das escolas, das instituições e proibido nas igrejas, o galego tinha sido espoliado dos seus direitos de língua matricial e confinado à esfera privada. O espanhol (castelhano), imposto por Madrid, era símbolo e veículo de usurpação. Como sinal de revolta, as placas toponímicas que incluíssem J foram pichadas com X, como “La Toja” (A Toxa).

Um barco esperava-o em Olhão para o levar até Argel. Mas ele não tinha dinheiro para o comboio. E se fosse encontrado pela polícia portuguesa, seria logo preso e recambiado para Espanha. Era amigo do P. Iglésias que o aconselhou a falar comigo. Só precisava do dinheiro para a viagem.

Fiquei estupefacto. A situação era muito complicada e perigosa. Conhecia as boas relações que uniam os dois governos peninsulares. Dar o dinheiro era proteger os «criminosos antifranquistas». Não colaborar, era abandonar uma pessoa que precisava da minha ajuda. Procurei mostrar que não acreditava na história:
- “Poderia ter inventado uma história mais simples para me pedir dinheiro. Mas esta…”
- “Pode não acreditar, mas esta é a pura verdade”, respondeu em voz baixa.

E o carro continuava a rolar… Ao passar junto de um polícia, atiro-lhe com uma provocação:
- “Você sabe que, se eu parar o carro e repetir àquele polícia a história que me contou, o senhor será imediatamente preso…”
- “Eu sei, respondeu resignado, a minha vida está nas suas mãos…”

Senti um nó na garganta…Quem me garantia que não era uma armadilha da PIDE?
Mas tinha que me decidir. E decidi. Fui com ele à estação de S. Bento. Comprei-lhe o bilhete. Aguardei a partida do comboio…

A seguir, por precaução, subi à Sé e fui falar com um professor do Seminário Maior
- “Amigo, se eu desaparecer sem deixar rastos, vão procurar-me à PIDE. E contei-lhe toda a história. Ficou surpreendido mas acalmou-me com palavras de solidariedade.

Não tive qualquer notícia de retorno. Os telefones estavam controlados e a correspondência era vigiada. Mais tarde, vi confirmada a referida fuga e soube que o P. Iglésias, que os apoiava, fugira para o Canadá.
Situações complicadas com que a vida nos confronta e que, na atualidade, nos parece um sonho… (15/7/2020)