O Tanoeiro da Ribeira

quinta-feira, maio 28, 2020

O ORGULHO GERA DISSENÇÕES

 
Desconhecer a Bíblia significa perder de vista uma parte decisiva do horizonte onde historicamente nos inscrevemos. (T. Mendonça)”

Meses atrás, o Agrupamento de Escolas do Cerco do Porto escreveu: “A turma do 4º A da EB da Corujeira convidou o avô do Francisco para vir à escola explicar a Torre de Babel”. Durante duas horas, os alunos ouviram falar da evolução da humanidade e seus mitos. E com que atenção o fizeram!

Diz a antropologia que a ontogénese - evolução do indivíduo humano – segue de perto os passos da filogénese - evolução da espécie humana.

 O «Homem Moderno» apareceu há uns duzentos mil anos. Dez mil anos antes de Cristo, nasceu a agricultura, no “Crescente Fértil”. Aí, se construíram as pirâmides (Egito) e os zigurates (Mesopotâmia); inventou-se a escrita; iniciou-se a matemática e a astronomia. Foi o berço da nossa civilização.

Foi também nesta região que o homem, recorrendo a seres sobrenaturais, começou a procurar, nos tempos originais, a explicação para os fenómenos que observava. Surgiram, assim, os “mitos das origens”. O primeiro registo escrito, encontramo-lo na literatura suméria, no “Poema de Gilgamesh”, escrito cerca de 2000 anos a.C. Também o Génesis (Origem), o primeiro livro da Bíblia, começa: “No princípio, Deus criou o céu e a terra…”(Gn 1,1)

É neste contexto que se enquadra a narrativa da Torre de Babel (Gn 11,1).
A seguir ao dilúvio, “Deus abençoou Noé e seus filhos, dizendo: «Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra» (11,1)”. Mas, “alguns homens encontraram uma planície onde se estabeleceram”. E, contrariando a vontade divina, fecharam-se no seu orgulho. “E disseram uns aos outros: façamos para s uma cidade e uma torre cujo cimo atinja os céus. Tornemos assim célebre o nosso nome, para que não sejamos dispersos sobre toda a face da terra”. E Deus que antes os abençoara, castigou-os pela sua arrogância: “O Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes, e dali os dispersou sobre a face de toda a terra” (Gn 11,9). 

Na cultura judaica, os males da humanidade são castigos de Deus motivados pelo pecado dos homens. Já assim acontecera com a expulsão de Adão e Eva do paraíso (cf. Gn 3,23). Agora, a transgressão provocou a confusão das línguas.

No Prefácio ao livro «Retratos de um Porto sentido», escrito por moradores de S. Nicolau, o professor José Manuel Tedim disse “Ontem éramos apenas nós, todos nos entendíamos. Hoje somos tantos, de tantos Mundos e tantas línguas e culturas onde, afinal, todos nos entendemos”. O que trouxe as dissensões não foi a diversidade de línguas mas a dispersão de egoísmos. Estes é que estão na origem dos muros e das guerras.

Esta região do Médio Oriente foi disputada por todos os grandes impérios de antanho desde o egípcio ao otomano, passando pelo assírio, babilónio, medo, persa, grego, romano e muçulmano. E, ainda hoje, é a maior ameaça à paz mundial: Iraque, Síria, Israel, Irão…(27/5/2020)

 

quinta-feira, maio 21, 2020

NO «SENHOR SANTO CRISTO»

 
No passado dia 17, lembrei-me do P. José Carlos, de S. Mateus do Pico nos Açores. Velho assinante da VP, quando vinha ao «Continente» passava pela nossa livraria. Emocionado, sempre falava de D. António de Castro Meireles que foi seu bispo: “Ainda hoje os olhos se alagam quando o recordamos”.

Aconteceu-me ao assistir à Eucaristia que a RTP1 transmitiu do Convento da Esperança, em Ponta Delgada. Logo no início, o celebrante, cónego Adriano Borges, saudou, de olhos humedecidos, os muitos açorianos dispersos pelo mundo que, naquele momento, estariam “ com uma lágrima no canto do olho”.

Na decoração singela da igreja do Santo Cristo dos Milagres, sobressaíam os antúrios vermelhos. Os doze jovens do coro, de traje preto, punham uma nota de contraste no doirado da talha e no azul dos azulejos. Tudo com muita elegância e bom gosto.

Na homilia, em nota prévia, o celebrante referiu três bispos que não puderam estar presentes: D. João Lavrador, bispo dos Açores desde 2016, “por razões de todos bem conhecidas”; do seu predecessor, D. António Sousa Braga (1996-2016), açoriano e grande devoto do Santo Cristo; e de D. José Tolentino de Mendonça que, “com palavras de poeta nos fala de Deus”.

Após o que, falou da tristeza que atormenta os muitos açorianos que a pandemia impede de estar presentes. Acrescentando, com um sorriso nos lábios: “Mas o Senhor Santo Cristo não está fechado. Está enclausurado, sim, mas é nos nossos corações”.

Mais que tristeza, hoje é dia de alegria como aquela de que fala a 1ª leitura: “E houve muita alegria naquela cidade”.

Congratulou-se com a serenidade e o silêncio, “perturbado por alguma lágrima” dos peregrinos, muitos descalços, que, no dia anterior e durante a noite, foram chegando a “este Campo do Senhor”. Comparou-o ao silêncio da Praça de S. Pedro e do Santuário de Fátima. Reforçou o apelo à interioridade com as palavras de S. Pedro, na 2ª leitura: “Venerai Cristo Senhor em vossos corações”.

De seguida, virando-se para a imagem do Senhor Santo Cristo, disse: “Reparai na ternura com que nos olha. Seus olhos parecem seguir-nos, não para nos castigar mas porque nos ama.

Ao comentar a leitura do Evangelho, fixou-se no «Se»: “Se me amardes, guardareis os meus mandamentos”. Este «Se» torna-nos livres. Cristo ama-nos. Mas não impõe o Seu amor. E, virando-se para a imagem, acrescentou: - “ Vede, Cristo está preso por cordas. Ele assume os laços que nos atam para que possamos ficar livres. “Se” quisermos…

Nós açorianos, “somos como a «viola de dois corações»: um parte para longe, mas o outro fica cá. É o símbolo da saudade que hoje nos amargura”

No final da Eucaristia, fiquei sensibilizado ao ouvi-lo ler uma carta de D. João Lavrador, um amigo da Voz Portucalense que, quando bispo auxiliar do Porto, muito visitava e enriquecia com seus textos.

No santuário de Nª Srª da Esperança, a promessa de novos dias:
“Nós temos saudades do «nosso querido Santo Cristo». Também Ele tem saudades de nós”. (20/5/2020)

 

UMA PAGELA DE 1943

 
Neste «Mês de Maria», lembro a notícia “Santuário do Monte da Virgem renovado para acolher 2500 pessoas”. (JN, 20/12/2019)
O projeto dum novo templo fez-me recordar um opúsculo de 27 de janeiro de 1943, sobre o Monte da Virgem que passo a citar.

“O Monte da Virgem é um lugar de maravilha, não tanto pela amplidão e variedade do horizonte que faz vibrar as almas de quem o visita, como pela abundância de graças espirituais e temporais que Nossa Senhora vem repartindo aos que oram com fé e amor.”

Apresenta uma breve resenha da sua tão gloriosa quão perturbada história.
“Foi feita a sua escolha no dia 8 de dezembro de 1904, quando a fortaleza da Serra do Pilar dava a salva de estilo em honra da Padroeira. No primeiro dia de Janeiro de 1905, às três horas da tarde, foi mudado o nome de Monte Grande em Monte da Virgem, em atenção à cidade que lhe fica mesmo em frente e se ufana, com razão, de ser a cidade da Virgem.

Dias depois desta pequena mas fervorosa peregrinação, principiou a esboçar-se alguma contestação que ganhou vulto após a bênção da primeira pedra do monumento em 25 de junho de 1905. Em verdade esta peregrinação foi um assombro. Assistiram os Venerandos Prelados: D. António Barroso; D. Teotónio, Bispo de Meliapor; Cabido da Sé do Porto; Governador Civil; Câmara de Gaia; Câmara do Porto e mais de 50 000 peregrinos, vindos até de Lisboa.”

A respeito do terreno, informa
“Em 11 de Setembro deste mesmo ano, foi vendido ao Prelado da Diocese do Porto todo o terreno na posse dos fundadores. Desejavam eles que o Monte fosse um lugar todo consagrado à Santíssima Virgem, no qual os católicos do Porto, de Gaia e cercanias se reunissem coletivamente, ao menos uma vez por ano, em homenagem bem sentida e vibrante, toda impregnada de fé e amor à Celeste Padroeira”

Depois de descrever a sanha anticlerical -“Tudo eram comícios contra o Monte da Virgem, artigos espumantes de raiva na imprensa e folhas de combate pelas ruas e por debaixo das portas” – acrescenta: “Estes ataques, porém, não conseguiram esmorecer as manifestações em honra da Santíssima Virgem. Animava-as o Senhor D. António Barroso com a sua palavra de missionário e o seu exemplo de santo.”

Mas, “com o advento da República foi mandada fechar pelo governo a pobre capelazinha até que, em 1914, o governador civil aprovou os estatutos em que os 20 indivíduos da confraria se declaravam católicos, e eram em verdade.”

Termina com um pedido.”A Virgem Imaculada vele sempre pelo seu Monte e os Senhores Bispos da Diocese descansem nele os seus olhares”.

Deixo um voto. Que o novo projeto contemple a história que anima este local privilegiado onde a beleza e o sagrado se dão as mãos num apelo à transcendência.
E um convite. Logo que possível, para desanuviar, subamos o monte. Respiremos o ar puro e “descansemos nele os nossos olhares”. (20/5/2020)

 

quinta-feira, maio 14, 2020

HÁ AMIZADES QUE VENCEM O TEMPO...

 
Esta é a amizade que se reaviva nas «reuniões anuais» do seminário. Assim, na próxima 6ª feira, o Curso 1951-63 realizará um «encontro espiritual»: os presbíteros celebrarão pelos colegas e professores; os restantes «juntam-se», às 11 horas, na Missa que é transmitida de Fátima.

Nas «bodas de ouro» da entrada no seminário (2001), presididas pelo nosso professor, Dr. (Dom) Armindo, o António Brito, sob o título «Vocação e Evocação”, fez um discurso que passo a citar.

A amizade

Nasceu na entreajuda, no colégio de Ermesinde.

“Vínhamos dos quatro cantos da Diocese. Com um magro enxoval e um número gravado a vermelho em cada peça. Cabia tudo num baú de madeira de pinho ou numa mala mais vistosa.”

Foi um ano feito de saudades do carinho da família que ali não tínhamos e da nossa terra onde éramos estimados, e ali, descriminados.

“No mesmo Colégio, andavam outros estudantes. Esses tinham mesa e comida diferente, mais variada, mais rica. Eram os colegiais que ocupavam sempre o campo de futebol e regressavam às suas famílias sempre que lhes era possível. Nós éramos de outra estirpe: jogávamos o pilha, a bugalhinha. À casa paterna só regressávamos pelo Natal, Páscoa e férias grandes.”

Éramos pardalitos em gaiola… As amizades que nasciam nas brincadeiras do recreio atenuavam-nos a reclusão.

Cresceu na cumplicidade, no seminário de Trancoso

“ Os dois anos em Trancoso, em pré-puberdade, vivemo-los intensamente como um tempo concentrado, marcado pela presença do divino, mas com uma compensação lúdica muito forte que nos permitiu aguentar o impacto de um sistema educativo, demasiado ríspido, frequentemente violento.”

Cúmplices na resistência, refugiávamo-nos nas alcunhas que dávamos aos professores e na imitação dos seus tiques.

   Solidificou-se na solidariedade, no seminário de Vilar

“Foi por essa altura, em adolescência efervescente, que vários colegas resolveram partir de livre vontade, enquanto outros eram impelidos a fazê-lo, porque – dizia-se – não tinham vocação. O João chegou a planear um almoço de confraternização no Monte da Virgem para nos juntarmos com os que abandonaram. Foi chamado ao gabinete do reitor e, sob discretas ameaças, teve de anular o dito almoço.”

O que não passava de expressão duma amizade de sete anos na hora da dispersão, fora visto como rebeldia e, por isso, antecipadamente desmarcado. Foi pena e deixou marcas. Liderar comporta riscos…

Fez-se adulta, no seminário da Sé

 “Na Sé, éramos já homens feitos e passámos a ser tratados como tais.”

E perpetua-se, ao longo da vida

Faço minhas as palavras com que o, então, professor catedrático, terminou:
“Pelo que, se me fosse dada a possibilidade de voltar atrás nos cinquenta anos vividos, eu calçaria de novo as minhas botas de pneu ensebadas, encomendaria o mesmo baú de pinho… À Igreja, convém não esquecer, devemos quase tudo o que somos.” (13/5/2020)

 

quarta-feira, maio 06, 2020

POR ENTRE POLDRAS E MOINHOS


 Nas memórias de minha mãe, a homenagem a todas as mães…

Esta clausura, aceite mas não desejada, traz-me os silêncios dos montes e aviva duas imagens fortes dos meus tempos de menino: as poldras e os moinhos.

Poldras são as pedras que, colocadas no leito dos rios, de uma margem à outra, permitem a passagem a pé. Separadas e irregulares tornam a travessia perigosa. A travessia exige fortaleza esperança e prudência. Fortaleza porque a água é ameaça perigosa sob nossos pés. Esperança porque acreditamos que iremos chegar à outra margem. Prudência porque a mínima desatenção pode provocar o desastre. Recordo as recomendações de minha mãe quando eu tinha de passar nas poldras das Vinhas. 

Três atitudes bem necessárias quando a pandemia nos aflige. Como disse o papa Francisco, precisamos de coragem, para enfrentar estes dias soturnos, e de esperança porque sabemos que eles terminarão. Mas, entretanto, necessitamos da máxima prudência para que o contágio não nos atinja. Coragem sem prudência é temeridade. E essa é defeito e não virtude.

Bem cedo comecei a acompanhar minha mãe quando ia moer o milho para a fornada. No inverno, era no “moinho de Cardoso”, num ribeiro que secava no verão. No verão, íamos ao da “ Barge”, no rio Ferreira que, durante o inverno, «pejava» com o rodízio submerso na água. Bem cedo, aprendi a virtude moral da temperança bem expressa no aforisma latino: In médio, virtus.

Criança traquina, muito me custava ficar preso dentro do moinho enquanto ele moía. Distraía-me a seguir o movimento da «taramela», a ripa que trepidava sobre a mó e chamava o grão que estava parado no «quelho». Por experiência, aprendi a primeira lei de Newton: a «inércia» - ”Quando a resultante das forças que atuam sobre um corpo for nula, esse corpo permanecerá em repouso ou em movimento retilíneo uniforme” Sem a taramela, o grão não cairia no olho da mó. O milho nunca seria farinha. E sem esta, não teríamos pão.

Assim, o moinho ensina-nos outras qualidades necessárias para esta hora de incertezas: moderação (temperança), nada de exageros, não apenas na comida e na bebida, e,ainda, muita paciência. Digamos como minha mãe quando eu, criancita, a arreliava: “Deus me dê paciência e um paninho para a embrulhar!” E, porque o tempo se alonga, temos de ser perseverantes e aguentar a provação. Há que inventar tarefas, criar rotinas: “Quanto mais vazia é uma vida mais pesada se torna”.

A taramela é uma pequena peça do moinho e, no entanto, sem ela, não moeria. Assim, devemos aceitar com humildade os alertas das autoridades, da comunicação social, dos familiares. Nos hábitos, uma segunda natureza, também funciona a lei da inércia do repouso. Precisamos de taramelas que nos despertem… “Quem me avisa meu amigo é”. A quem se queixa da vigilância apertada dos filhos, digo: - Demos graças a Deus. É sinal de que nos amam. Querem-nos vivos!
(6/5/2020)

(VP, 6/5/2020)