O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, dezembro 18, 2019

"SOMOS HERDEIROS DA LIBERDADE"


Acabo de ler as últimas palavras de Steve Jobs – o criador da Apple, Macintosh, iPod, iPhone,  iPad - que morreu multimilionário.

 "Cheguei ao auge do sucesso no mundo dos negócios. No entanto, tenho pouca alegria. Percebo que o  reconhecimento e riqueza, de que eu me orgulhei tanto, perderam o brilho, diante da morte iminente.” (…) “Não ensines teus filhos a serem ricos. Educa-os para serem felizes. Assim, quando crescerem, saberão o valor das coisas e não o preço”.
E termina: “A pessoa mais rica, não é a que tem mais, mas  a que precisa menos! Ou seja, é aquela, que sabe viver com o que tem”.

Esta mensagem ajuda-me a compreender como, antigamente, as pessoas, apesar de mais pobres, eram bem mais alegres do que hoje. Na aldeia da minha sogra, os vizinhos sempre enaltecem a sua linda voz quando cantava nos campos. E, no entanto… Ela contava que, ao sábado, lavava a roupa que usava durante a semana para, no domingo, levar à missa. E quando ia ao Marco, para não gastar os socos, só os calçava ao chegar à vila…

E as crianças? Revemo-nos nas palavras de Germano Silva “Na minha infância, eu não tive Natal. Explicando melhor, não tive aquele Natal que, por isso ou por aquilo, isto é, por um brinquedo ou por uma ceia de qualquer modo memorável, deixa em nós uma vincada lembrança”. E, apesar disso, como brincávamos! O povo dizia: “Deus nos dê muito e nos satisfaça com pouco”.

A vida melhorou. E, no entanto, somos gente de rosto sombrio. E as crianças? Nada as satisfaz. Quão atual, a sentença de Confúcio: “Nada é bastante para quem considera pouco o que é suficiente”.

 Razão tinha Frei Mourão: “O que é desejado em nós não são tanto os objetos de que parecia termos necessidade, mas aquilo que subjaz ao fundo de que vivemos, o dom da vida”

Escreveu Tolentino Mendonça: “Ironicamente, nesta era da modernidade avançada em que estamos, à falta de outros mestres, são os publicitários que se dedicam a pensar a inapagável fome de felicidade inscrita no coração do homem”.

A sociedade atual controla os nossos comportamentos. Com apelos aliciantes, explora o «princípio do prazer» onde o desejo é omnipotente e insaciável; cria necessidades supérfluas que provocam dependências e frustrações. Para isso, basta-lhe, como diziam os “behavioristas” americanos, na linha da reflexologia russa, estender às pessoas as técnicas do «reflexo condicionado» que Pavlov praticava com cães: controlando os estímulos, condiciona-se a reação, como fazem os domadores de animais.

Ouçamos o Papa Francisco: “ Se não lutarmos contra esta febre que a sociedade de consumo nos impõe para nos vender coisas, acabamos por nos transformar em pobres insatisfeitos” (Alegrai-vos e Exultai).

Não sejamos nem deixemos que nossos filhos/netos sejam tratados como “animais amestrados”. Neste Advento, mostremos-lhes que, como dizia Sophia, “somos herdeiros da liberdade”.

(18/12/2019)

 

 

 

 

quarta-feira, dezembro 11, 2019

UM POVO SEM MEMÓRIA...

 
O Advento é memória do passado: “Jesus veio”. Apelo para o presente: “Revistamo-nos das armas da luz” (2ª leitura do 1º Domingo do Advento). Esperança no futuro: “O Senhor virá”. Assim também  a vida é lembrança, vivência e projeto.

Há dias, recebi uma mensagem que me enterneceu e provocou.

“Veja a quantidade dos nossos ascendentes. Pais - 2; Avós – 4; Bisavós - 8; Trisavós – 16; Tetravós – 32; Pentavós – 64; Hexavós – 128; Heptavós – 256, Octavós – 512; Eneavós - 1024, Decavós – 2048. Num total de 11 gerações, 4094 antepassados… Isto tudo, em, aproximadamente, 300 anos!”

E interpelava-me: “Pare por um instante e pense! De onde vieram? Quantas lutas travaram? Por quanta fome passaram? Por outro lado, quanto amor, alegria e estímulos nos legaram? Quanta força para sobreviver, teve cada um deles para que, hoje, nós estejamos aqui, vivos?” Em síntese, afirmava: “Nós só existimos graças a tudo o que cada um deles passou”. E terminava com um apelo: ”Honre cada um deles! Honre sua vida! E seja grato.”

Parei. E num gesto de gratidão a todos os meus, evoquei os sacrifícios do meu bisavô que está na origem da minha alcunha de família que adotei no “email” e no “blog” - «tanoeiro». Trabalhava numa tanoaria na rua do Sol, no Porto e vivia, com a família, em Campo, Valongo. Saía de casa, alta madrugada de 2ª feira, e regressava na 6ª feira já noite avançada. Percorria cerca de 20 km a pé, com passagem pela serra de Valongo. E ainda aproveitava o fim-de-semana para fazer um caneco que, depois, trazia às costas para vender a quem lho encomendara. Se ficavam a dever e demoravam o pagamento, ele, quando os encontrava, perguntava: - O canequinho veda bem? 

E pensei…Quão dolorosos e alongados são os caminhos da vida!…Histórias de família, quem as não tem?

Além da vida, os nossos antepassados também nos transmitiram a cultura que foram adquirindo à medida que se iam humanizando. O Homem é, como diz Edgar Morin, um animal bio-psico-social. Somos uma simbiose de natureza e cultura. A primeira transmite-se pela geração, a segunda, pela educação.

O Papa Francisco disse no encerramento do Sínodo da Amazónia: “A tradição não é um museu de coisas velhas, tem de ser a salvaguarda do futuro”.

Da genética, somos simples transmissores. Já, da cultura, além de produtos também somos produtores.

Sei que já não temos as longas noites de inverno à volta da lareira, mas o tempo do Natal sempre propicia encontros e conversas. Partilhar as histórias da família, é honrar os nossos «Maiores».

Também a Igreja vive da memória. Jesus disse aos discípulos: “Fazei isto em memória de mim.” (Lc, 22,19).
 
Um povo, uma instituição, uma família, sem memória, é como “uma casa construída sobre areia” (Mt, 7, 24-27).

Reconhecer a história é dignificar o passado, alicerçar o presente e perspetivar o futuro. O devir também depende de nós. Essa a nossa grandeza e o nosso compromisso.

(11/12/2019)

 

 

 

quarta-feira, dezembro 04, 2019

A MISSÃO DA IGREJA

 
Em 1975, D. António Ferreira Gomes disse-me que deveríamos formar a “retaguarda teológica da Igreja”.

Com esse espírito, e em início de Advento, faço-me eco do livro “Pobre Para os Pobres ” que, no Prefácio, mereceu estas palavras do Papa Francisco: “Estou certo de que cada um de vós que irá ler estas páginas, de algum modo, deixar-se-á tocar no coração e sentirá surgir dentro de si a exigência de uma renovação da vida. Pois bem amigos leitores, sabei que nesta exigência e nesta estrada, me encontrarei desde agora convosco, como irmão e sincero companheiro de caminho”.
O autor, cardeal Gerhard Muller, começa por falar da sua passagem pelas favelas de Lima, no Peru que o levou à “compreensão da Teologia da Libertação”. E conclui: “Ao contrário do que afirma o marxismo - e também o atual liberalismo -, a Teologia da Libertação mostra precisamente como o Cristianismo não é uma «ideologia consoladora». Pelo contrário, demonstra que só Deus, Jesus e o Evangelho podem ter um papel autêntico e duradouro na humanização do homem, quer no aspeto individual, quer no social”.
A opção preferencial pelos pobres, continua, “é uma opção teocêntrica e profética que finca as suas raízes na gratuidade do amor de Deus e é requerida por ela”. Por força histórica dos pobres “não se entende certamente, a eliminação violenta de uma classe social em detrimento de outra vista como caminho para eliminar a opressão e a injustiça e alcançar o presumível paraíso na terra da sociedade sem classes”.
E acentua que “a Igreja só pode ser Igreja, se é Igreja para os outros. Noutros termos, emerge um fundamental e ineludível aut aut, isto é: ou «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias» dos discípulos de Cristo, ou então não somos verdadeiramente discípulos de Jesus; ou a igreja se apresenta não como uma comunidade religiosa separada do mundo e autossuficiente, mas como sacramento universal de salvação, ou a Igreja, quanto à sua natureza e missão, não é plenamente Igreja. A Igreja é verdadeiramente ela própria se é fiel à sua missão libertadora para salvação integral do mundo que tem a sua origem na mensagem de liberdade e libertação de Jesus e no próprio agir de Jesus”.
E fecha assim o capítulo «Palavra de Deus e Sinais dos Tempos»: Precisamos de uma Igreja que – com as belas palavras do Papa Francisco - «seja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia. Sem a misericórdia, poucas possibilidades temos hoje de nos inserir num mundo de «feridos», que têm necessidade de compreensão, de perdão, de amor».

Esta é a exigência do “Eu vim para servir (cf. Mc, 10,45) ” que, no passado dia 22, ouvi um bispo tão bem sintetizar: - “Uma Igreja que não serve para servir, não serve para mais nada”. ( 4/11/2019)