O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, maio 18, 2022

"TODOS OS DOMINGOS ME SINTO ACOMPANHADA"

Em 17 de outubro de 2018, sob o título ‘Coerência Exemplar’ prestei homenagem a Frei Bernardo Domingues. Hoje, é o também dominicano e seu irmão de sangue Frei Bento Domingues que merece a minha honra. E faço-o a propósito da ‘sessão evocativa’ dos ‘30 anos de crónicas no jornal Público’ que se realizou no passado dia três. Esta efeméride fez-me recuar ao tempo em que, por convite do cónego Amadeu Ferreira Silva, então pároco de Campanhã, orientei um grupo de jovens que, após o crisma, quiseram continuar a sua formação catequética. E porquê? Porque, em cada semana, o tema de análise e reflexão era o último texto de Bento Domingues, no Público. Era a palavra evangélica encarnada nas situações concretas da vida. Cada participante tinha o compromisso de, previamente, o ler em sua casa. Para criar sintonia, a sessão abria com a leitura em voz alta do texto. Após uns momentos de silêncio, cada um expunha a palavra, perícope ou frase que havia sublinhado e apresentava as razões da sua opção. A ideia que havia concitado mais atenções funcionava como alavanca para a posterior reflexão. Esta metodologia agarrou, durante vários anos, aqueles jovens que se encontravam todas as tardes de sábado. Muitos já estavam licenciados e continuavam a frequentar. Vários só se separam quando se casaram. E vários casamentos nasceram destes encontros. Tínhamos encontrado quem tirava “a religião da sacristia, mostrando como ela alimenta atitudes e culturas com repercussões no espaço público e como por sua vez se enriquece e é interpelada pela vida que ocorre na praça pública”. Com ele, os jovens descobriram “a alegria de acreditar no Deus de Jesus Cristo”. Esta experiência faz-me estar de acordo com o que Jorge Wemans disse na supramencionada ‘sessão evocativa’ : “A escrita de Frei Bento Domingues revela-nos – sem proselitismo nem falsos pudores – as conceções antagónicas do ser humano, do homem e da mulher, que se escondem por detrás de algumas bizantinices eclesiais, ou nos debates que parecem ser sobre o sexo dos anjos, mas que na verdade nascem do enfrentamento de visões opostas sobre o destino da humanidade. Contudo, se o nosso autor é um decifrador dos enredos religiosos em cujos bastidores nos faz entrar, não se compraz em permanecer neles, pois ele é sobretudo um decifrador do enigma de se estar vivo, de viver. Da vida em sociedade”. Foi com satisfação que li, no 7Margens, o testemunho de Carmen Garcia, enfermeira que escreve no Público aos domingos. Conta ela que seu pai - “ateu convicto, arrepiava-se sempre que a minha tia materna começava com aquilo a que ele, zangado, costumava chamar beatices” - um dia chamou-a e disse-lhe. “Depois lê aqui esta entrevista”. “Mas é de um padre!”, exclamei admirada. “É” – respondeu-me, “mas este é um padre diferente e parece que, tal como tu, também não tem uma relação fácil com a cruz”. E esta foi a primeira vez em que ouvi falar de Frei Bento. E confessa-se grata: “Todos os Domingos leio as suas palavras. Ou melhor, lemos. O ateu lá de casa continua a ser-lhe fiel. E todos os Domingos descubro alguma coisa nova. Todos os Domingos percebo outro ângulo. Todos os Domingos encontro esperança num qualquer parágrafo. Todos os Domingos me sinto acompanhada”. Obrigado, Frei Bento. A minha modesta homenagem, fazendo memória do seu irmão Frei Bernardo, um amigo que nos era muito querido. (18/5/2022)

quinta-feira, maio 12, 2022

VAI SER CANONIZADO

Segundo o Vatican News, “o rito de canonização será celebrado em 15 de maio”. E quem é este santo que mereceu especial destaque no apelo final da Fratelli Tutti? No número 286, o papa Francisco escreve: “Quero terminar lembrando uma outra pessoa de profunda fé que, a partir da sua intensa experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos. Refiro-me a Carlos de Foucauld”. No número seguinte, o último da encíclica, o Papa Francisco formula um voto: “O seu ideal de uma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão, e pedia a um amigo: ‘Peça a Deus que eu seja realmente irmão de todos’. Enfim, queria ser ‘o irmão universal’. Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós. Amen” Já no dia 1 de dezembro de 2016, no centenário da sua morte, o Santo Padre havia dito: “Um homem que venceu tantas resistências e deu um testemunho que fez bem à Igreja. Peçamos que nos abençoe do Céu e nos ajude a caminhar nos caminhos de pobreza, contemplação e serviço aos pobres”. Nasceu em Estrasburgo, França, em 15 de setembro de 1858, no seio duma família nobre e de tradição militar. Estudou nas melhores escolas e, ainda muito jovem, tornou-se oficial do exército francês. Aos 25 anos abandonou a carreira militar. Converteu-se ao catolicismo em 1886. Foi ordenado presbítero em 1901 e partiu para o deserto argelino. Fez-se eremita e passou a viver numa cabana, no meio dos tuaregues, um povo, maioritariamente, muçulmano, que habita a região saariana. Tornou-se bem querido e, em 1904, já havia traduzido para a língua nativa os quatro evangelhos. A instabilidade política gerada pela I Guerra Mundial também chegou a estas terras recônditas e ele acabou assassinado em 1916 por um grupo de rebeldes tuaregues. Queria ser e foi o “irmão universal” pelo exemplo e pela palavra: “Estou certo de que o bom Deus acolherá no Céu aqueles que forem bons e honestos. Você é protestante, é agnóstico, os tuaregues são muçulmanos, mas estou convencido de que Deus a todos receberá, se merecermos...” O seu exemplo está na origem de dez congregações religiosas, como as fraternidades dos “Irmãozinhos e Irmãzinhas de Jesus”, criadas após a sua morte. Na década de sessenta, a sua espiritualidade apaixonou muitos alunos do Seminário do Porto com reflexos na sua missão presbiteral. Deixo-vos alguns dos seus pensamentos. -“Toda a nossa vida, por mais silenciosa que seja, a vida de Nazaré, a vida do deserto, tanto quanto a vida pública, devem ser uma pregação do Evangelho pelo exemplo.” - “É preciso ir, não onde a terra é a mais santa, mas onde as almas têm maior necessidade.” - “Como sois bom! Como agistes da melhor forma para chamar ao mesmo tempo, para o vosso redor, todos os Vossos filhos, sem nenhuma exceção! Se tivésseis chamado os ricos em primeiro lugar, os pobres não teriam ousado aproximar-se de Vós; pensariam que estavam obrigados a manter-se à distância por causa da sua pobreza; ter-Vos-iam olhado de longe, deixando que os ricos Vos rodeassem”. (11/5/2022)

quarta-feira, maio 04, 2022

Ó TEMPO, SUSPENDE O TEU VOO

Um mês é passado…Os jornais noticiaram. “Jorge Silva e Melo, nome fundamental das artes cénicas portuguesas do derradeiro meio século, faleceu no Hospital da Luz em Lisboa (JN, 17 de Março). O Presidente da República prestou-lhe homenagem: “Não era apenas um dos encenadores mais emblemáticos, foi ator, dramaturgo, cineasta, professor, crítico e cronista, bem como um homem politicamente empenhado e um descobridor de talentos”. E o diretor do ‘Festival D’Avignon’, Tiago Rodrigues, acrescentou: “É como se tivesse perdido a nossa mais esplêndida biblioteca, como se tivesse ruído o nosso mais amplo teatro”. Foi, porém, o vídeo da entrevista do ciclo “Deus – Conversas de Maria João Avillez”, realizada na Capela do Rato, em 21 de Outubro de 2015, que me fez descobrir a matriz do seu agir e me induziu esta crónica. À pergunta se era “católico, apostólico, romano”, respondeu, com um sorriso e parafraseando uma fala que ouvira: - “Sou… tento ser…” Filho de pais não religiosos - o pai era frontalmente anticlerical e antirreligioso - foi a rebeldia da sua irmã que o atraiu para a Igreja. Com ela, mais velha dez anos, entrou em contacto com a geração da JUC de Lisboa que marcou o início da década de sessenta, com realce para João Bénard da Costa e Pedro Tamen. A pobreza e a coragem dos cristãos do filme “Quo Vadis” que viu na adolescência, fizeram-no despertar para uma religião bem diferente da que lhe era ensinado no colégio. Ao cristianismo feito de ‘pecado e culpa’ contrapunha-se a serenidade, feita de amor e perdão, com que os mártires enfrentavam o terror do circo romano. Um cristianismo de que, depois, se apaixonou com as leituras de S. Francisco de Assis e de Simon Weil. Um cristianismo que não revê no esplendor do barroco mas na singeleza da nave central do Mosteiro de Alcobaça. Um catolicismo minoritário de gente que ‘recusa a moda e o sucesso’ como experimentou em Londres, quando lá estudou, numa igreja enorme com meia dúzia de pessoas. “A ideia do amor é que me ganha”, confessa. Foi, no entanto, a leitura bíblica da ‘Transfiguração’ onde a ‘humanidade e a divindade se cruzam’ numa narrativa contraditória e criativa que, como diz na entrevista, “marcou-me até hoje e talvez a minha profissão”. E explica: No alto do monte Tabor, ”o homem vai revelar-se no seu esplendor divino.” “Deus é a excelência do humano.” Jesus “mostra o esplendor da sua humanidade maior”. E acrescenta: “e depois há aquela coisa que é o desígnio de todos os artistas, que é o São Pedro, o mais simpático de todos, que diz ‘vamos é fazer aqui três tendas e ficar aqui para sempre’. Portanto, Jesus terá rompido a matéria e o espaço, e São Pedro queria parar o tempo! E parar o tempo é a ambição de todos nós, nas artes. É o famoso verso do Lamartine: ‘Ó tempo, suspende o teu voo’. É ficarmos sem a deterioração, sem a morte, sem a rosa a cair. Queremos o momento em que está, o esplendor da divindade, da humanidade, o esplendor da flor.” Em 22 de março, a título póstumo, foi-lhe atribuída, pelo Ministério da Cultura, a “Medalha de Mérito Cultural”. Também a título póstumo, lhe presto esta singela homenagem. (4/5/2022)