O Tanoeiro da Ribeira

domingo, maio 29, 2011

“E o Senhor Bispo era um Santo…





Minha mãe, nascida em 1905, gostava de recordar-me os seus tempos de menina, quando o “Senhor Abade”, maltratado pelos carbonários e expulso da residência paroquial, viera viver em sua casa. E acrescentava, “até o Senhor Bispo, que era um santo, foi preso”. Nunca me disse o nome do “Senhor Abade” nem do “Senhor Bispo”.




O tempo passou, as memórias desvaneceram-se. Só muito mais tarde é que associei D. António Barroso àquele bispo de longas barbas brancas de que minha mãe falava.
Estas evocações vêm a propósito de um centenário que passou no dia 7 de Março passado. Nesse dia, mas de 1911, D. António Barroso foi julgado, condenado e expulso da sua Diocese do Porto.
E porquê?




- Não foi ele o jovem missionário que reorganizou a Missão do Congo ao serviço da Igreja e com a gratidão do Rei: o maior aplauso e louvor, por actos que tanto o recomendam ao reconhecimento nacional?




- Não foi ele o Prelado de Moçambique que mereceu o testemunho do Comissário Régio: Crescera o pessoal do sacerdócio, fundavam-se novas paróquias, criavam-se missões. Dignificava-se o culto, o Prelado embrenhava-se nos sertões para reconhecer as necessidades da diocese, as suas virtudes austeras sem intolerância inspiravam respeito e simpatias que redundavam em autoridade moral para o clero?




- Não foi ele o Bispo de Meliapor que ajudou a resolver graves conflitos na igreja da Índia?




- Como Bispo do Porto, preocupou-se com a Assistência aos Tuberculosos; impulsionou as Escolas agrícolas; acarinhou o Asilo de Vilar, o Recolhimento das Meninas Desamparadas, as Irmãzinhas dos Pobres, o Círculo Católico Operário; impulsionou a Associação dos Médicos Católicos e criou a Associação de Protecção à Infância.




- O próprio decreto governamental que o condenou não pôde ignorar o seu mérito: D. António Barroso prestou outrora relevantes serviços à Pátria portuguesa e é dotado de incontestáveis virtudes pessoais que o impõem como homem ao respeito dos seus conterrâneos.




Então por que foi condenado?




-Porque, com o Arcebispo de Évora, foi o autor da Pastoral Colectiva dos Bispos Portugueses; porque escreveu a Afonso Costa dizendo-lhe para não publicar legislação contra a Igreja sem a submeter à aprovação da Assembleia Constituinte a eleger; porque, contrariando as ordens do Governo, não proibiu a leitura da Pastoral Colectiva na sua Diocese e responsabilizou-se pelos padres que foram presos por a terem lido, que, por isso, foram libertados. Só regressou à Diocese em 1914. E voltou a ser desterrado em 1917.




D. António Ferreira Gomes, no centenário do seu nascimento, considerou-o da estirpe “dos Assis, dos Xavieres e dos Britos”.




Era um santo. “Vox Populi…”. Estamos a aguardar a conclusão do processo da sua beatificação.

Também nós choramos…

Era toda uma freguesia vergada ao peso da tragédia. Os jornais noticiaram: “ Um homem de 65 anos morreu trucidado pela fresa de um tractor quando preparava o terreno ao lado da casa do filho para fazer um jardim. José Moreira desempenhou vários cargos, desde o de presidente da Cooperativa A Celer ao de presidente da Comissão de Festas e dirigente do Rebordosa Atlético Clube”. (JN, 7/4/11)

A igreja matriz fez-se pequena para acolher quantos queriam homenagear o conterrâneo que morreu, como viveu, a trabalhar e a ajudar os outros. Nascido numa família de nove filhos, cujo pai faleceu eram ainda crianças, bem cedo, a mãe-viúva lhes inculcou o valor do trabalho, da honra e da caridade, o que os levou a uma participação activa nos diversos campos da vida comunitária, desde o religioso – as irmãs estiveram na criação da JAC paroquial – ao autárquico, passando, entre outros, pelo cooperativo, assistencial e desportivo.

Ninguém veio ao funeral por mero dever de cortesia. Na igreja, o silêncio estava carregado de horror e mágoa. Como iria a Igreja ser sinal e instrumento de salvação para esta assembleia sofredora?
O celebrante, desde o início, mostrou-se em sintonia com esta dor comunitária. Na homilia, ao comentar a ressurreição de Lázaro, disse que ouvíramos a irmã a chorar a morte do irmão e a queixar-se da ausência de Jesus. “Também nós choramos a morte do José e apetece-nos dizer: “Senhor, se estivesses aqui o José não teria morrido. E Jesus compreenderia este nosso queixume porque também ele chorou a morte do amigo”. Depois de evocar a afirmação de Jesus “Eu sou a Ressurreição e a Vida” falou sobre essa Vida em plenitude - não aquela que Jesus restituiu a Lázaro que voltou a morrer - que dá sentido às dores da vida presente. No decurso da celebração, revelou a humanidade da Igreja que, como Jesus, sofre com a morte e a dor dos seus filhos. Sem recorrer a qualquer panegírico laudatório, iluminou as trevas da morte com a luz da Esperança e reconfortou toda aquela assembleia em dor.

Numa expressão feliz que ouvi, via-se que as suas palavras “tinham alguém por dentro”. Isto é simpatia/compaixão, virtude de quem sofre com o sofrimento dos outros, mas, acima de tudo, é Caridade. E, quando tal acontece, a Igreja torna-se presença salvadora do Cristo Ressuscitado. Se não, as palavras rituais fazem lembrar o juízo de Paulo:
Ainda que eu fale a língua dos anjos e dos homens, se não tiver Caridade, sou como o bronze que ressoa ou como o címbalo que retine”. (I Cor,13)

Deixo-vos com a resposta à pergunta 155 do YOUCAT – CATECISMO JOVEM DA IGREJA CATÓLICA: “ Cristo vem ao nosso encontro e introduz-nos na Vida eterna. (…) Quem morre não viaja para “nenhures”, mas regressa à casa do amor de Deus, o seu Criador”.

O Apelo à Transcendência






D. José Policarpo, ao explicar porque aceitou presidir às exéquias da mãe de D. Manuel Clemente, na igreja da Graça em Torres Vedras, disse que muitas vezes se encontrou com a Maria Sofia, mas “este é um encontro muito especial porque ela ainda está entre nós e, ao mesmo tempo, já goza da densidade do Eterno”.
Esta ambivalência do ainda está e do já não está faz-nos mergulhar no profundo mistério da vida.


Nos funerais, durante a vigília, os familiares ainda procuram iludir a dor com comentários de circunstância: “como está bonito; parece que está a sorrir”. Mas sabem perfeitamente que aqueles olhos nunca mais sorrirão, a boca jamais lhes falará, as mãos deixaram de acariciar. Apesar de esmagados pelo sofrimento, não aceitam que a vida acabe neste fracasso.


Então, no seu íntimo, surge o apelo à Transcendência, na busca da “densidade do Eterno” de que falava D. José Policarpo. A câmara-ardente é um “lugar forte do sagrado”. Não é por acaso que, ao entrar, até os agnósticos manifestam o seu respeito, fazendo silêncio, permanecendo de pé, benzendo-se ou aspergindo o caixão. É que ali mora o sagrado. Aquele é o Tempo Sagrado por excelência. Não admira que, mesmo nas zonas menos cristãs da Diocese, se mantenha a tradição do enterro religioso. Os funerais são o que resta do vínculo que ainda liga à Igreja muitos dos que dela se afastaram. Embora ténue, é uma vela que se mantém acesa. Que fazer para a espevitar?



Segundo A.T. C., na recensão do livro Pastoral da Acolhida – Cativando com gestos simples (VP -30/III), “as pessoas quando vão à igreja desejam encontrar um ambiente fraterno e acolhedor marcado pela simpatia. Uma expressão viva do amor de Deus que nos habita e nos identifica com Cristo pelo Espírito que nos anima”. É esta Pastoral do Acolhimento que o Cónego Milheiro enaltecia ao falar de “uma igreja humilde que caminha com o povo, tudo oferece a quem queira seguir o caminho da Fé”.



Se a Igreja é Mãe, com que carinho deverá acolher os filhos que a buscam em momentos tão dolorosos! Se em Jesus “ninguém vai ao Pai senão por mim”, também na Igreja é pelo Humano que se chega ao Divino. Celebrar a Vida exige um profundo respeito pela morte. Como escreveu A.T.C., o livro “Celebracions en torno a los defuntos” poderá ser um instrumento ao serviço dessa “pastoral de momentos tão favoráveis para anunciar a Boa Nova do Evangelho e testemunhar uma Igreja solidária e portadora de esperança em momentos em que a contingência do ser humano se impõe de tão próxima e tangível”.



Bento XVI, ao falar das “perturbações” de Jesus, diz: “São momentos em que Jesus Se encontra com a majestade da morte”. Também a liturgia deve manifestar, de modo adequado a cada assembleia, este “estremecimento” da Igreja perante a morte e transfigurar a hierofania da morte em epifania da Vida.

Tempos de Paixão




Foi em Fevereiro. As capas pretas dos universitários que se despediam do Diogo, colega de Engenharia, vestiram de negro o cemitério de Campanhã. Uma multidão acompanhava os pais que choravam o seu filho único. Lágrimas, luto, revolta.




Se o homem fosse apenas razão, poderíamos pensar como o filósofo Epicteto ” Se queres que teus filhos, tua mulher, ou teus amigos vivam sempre, perdeste o uso da razão. Isso é querer que dependa de ti absolutamente o que não depende de forma alguma “. Se somos vasos de barro, porquê surpreender-nos quando se quebram?
Mas nós somos também coração e sonho… E a morte, sempre tétrica, torna-se trágica quando ceifa uma vida a florir…




Uma doença grave surge quando menos se espera. A vida desmorona-se. Nessas horas, reza-se: “Pai, afasta de mim este cálice”. Quando a morte acontece, questiona-se: “Porquê, Senhor? ”
A morte de alguém que muito amamos é uma encruzilhada onde se entrechocam sentimentos contraditórios de aniquilamento e sublimação, revolta e aceitação, esperança e dor. Oscila-se entre a escuridão dos sentidos e a luz da Fé. Sente-se que alguém partiu e se nos tornou mais íntimo. Tudo nos traz a sua presença e a sua ausência.
Os pais confrontam-se com a mais dolorosa das impotências. Concluem que não foram os autores da vida do seu filho nem sequer o podem substituir no leito da morte. Esta humilhação poderá ajudá-los a sentirem-se instrumentos do Amor-Criador. Como escreveu o teólogo galego Torres Queiruga: Deus podia não ter criado o mundo e sabe que, se o cria, terá que ser finito. Por consequência, a imperfeição, a carência, o conflito - o mal - o acompanharão como uma sombra terrível. A experiencia religiosa mais profunda, porém, intuiu sempre que, se Deus criou, é porque valia a pena; que Ele, como Anti-mal de amor infinito, acompanha e sustenta a nossa aventura humana, chamando-nos a colaborar com Ele no trabalho do amor e da justiça, dando sentido à vida e abrindo-nos à esperança.




Na pequenez da sua finitude, os pais, com o coração em lágrimas, dão graças a Deus que os associou à Sua Obra Criadora e pedem forças para, como a Senhora do Calvário -Stabat Mater dolorosa-, aguentar de pé as horas mais duras da tristeza.
Na busca de sentido, perguntam: “Para quê?” – Para completar o que falta à Paixão de Cristo, responde-lhes S. Paulo. A Paixão culmina na Ressurreição; não há Ressurreição sem Paixão.



E, assim, se, pela geração, os pais colaboram com o Pai na Criação; pelo sofrimento, cooperam na obra redentora de Cristo.




A morte não é nada. Apenas passei ao outro mundo. Fala-me como sempre me falaste. Sorri, pensa em mim, reza comigo. Não estou longe, somente estou do outro lado do caminho. Seca as tuas lágrimas e, se me amas, não chores mais. (Sto. Agostinho)