O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, outubro 26, 2016

MOMENTOS DE NOSTALGIA


 


Quando os dias se alongam e os anos se acotovelam, quem os não tem?

Há dias, fui almoçar a um restaurante onde, trinta anos atrás, jantei com um numeroso grupo de amigos. Olhei à minha volta e senti que, sobre as mesas, pairavam nuvens de ausência: a maioria já partiu para a eternidade. E veio-me à mente o poema Miguel Trigueiros, Natal das Sombras, que tão bem expressa esta dicotomia:Vêm as sombras, hoje ter comigo/Vêm as sombras num cortejo lento/Vêm as sombras hoje ter comigo /Ou sou eu que as procuro em pensamento?
 Lembrei então o que ouvi ao fadista Carlos do Carmo quando visitava o bairro da Bica onde passou a infância: “ A minha agenda telefónica é um cemitério”. E ainda o que, numa entrevista, disse Eduardo Lourenço ao jornalista lhe perguntou se temia a morte “- A morte que nos faz sofrer não é a nossa; a que verdadeiramente nos toca e faz doer é a morte dos outros”. E recordei o desabafo dum bispo emérito que muito estimo e a quem muito devo: “Vês, acaba de morrer o padre… Já morreram os padres com quem eu conversava. Agora não tenho quem entenda a minha linguagem. Felizmente me não falta quem fale comigo, mas não é a mesma coisa. Não estão no mesmo comprimento de onda, são mundos e linguagens diferentes. Com os meus colegas, nem era preciso falar, para eles adivinharem o meu pensamento. Agora…

Há muita dor reprimida nos olhos dum idoso. Se os olharmos bem no fundo, encontraremos lonjuras de ausência em olhares nublados de solidão.

Não é sem razão que o papa Francisco em A Alegria do Amor consagra três números (191,192,193) aos idosos.

Começa pelo salmo 71 “Não me rejeites no tempo da velhice; não me abandones, quando já não tiver forças” E reforça: “É o brado do idoso, que teme o esquecimento e o desprezo. Assim como Deus nos convida a ser seus instrumentos para escutar a súplica dos pobres, assim também espera que ouçamos o brado dos idosos. (…) Os idosos são homens e mulheres que, antes de nós, percorreram o nosso próprio caminho. (…) Devemos despertar o sentido coletivo da gratidão, apreço, hospitalidade, que faça o idoso sentir-se parte viva da sua comunidade”.

No n. 192, acrescenta: “Muitas vezes são os avós que asseguram a transmissão dos grandes valores aos seus netos. As suas palavras, as suas carícias ou a simples presença ajudam as crianças a reconhecer que a história não começa com elas, que são herdeiras de um longo caminho”.

Vêm aí os dias 1 e 2 de novembro. Soltam-se lágrimas reprimidas. O cemitério é espaço de memória silenciada. A Eucaristia é tempo de memória ajoelhada. A melhor maneira de lhes dar significado é cuidar dos idosos que ainda estão entre nós. Um carinho a um deles, que linda flor para oferecer a quem nos traz o coração humedecido de saudade...

(26-10-2016)

segunda-feira, outubro 24, 2016

UM MENINO BOM



Gaudium - Alegria …” - 13/10/2016 - Estou feliz. Como cidadão do Mundo que aclamou a eleição do novo Secretário-Geral da O.N.U.;  como português por ter um compatriota no lugar cimeiro da organização para a paz; como cristão por ver alguém que, na linha do Papa Francisco, transporta para o areópago máximo da política os valores evangélicos da “humildade e da gratidão”.

A VISÃO (1 a 7/9) classifica-o como “O Árbitro do Mundo”. O Presidente da República elogia-o como o “Melhor entre os melhores”. A empregada de seus avós fala do “meu menino Toni “(JN, 6/10). Boas sugestões para um título possível. Mas acabei por escolher uma frase-síntese dum morador de Donas: “ Era um menino bom”.

A VISÃO realça a sua vertente de “ativista católico” e escreve: “Recuemos seis décadas, e mergulhemos no Portugal profundo, na igreja matriz de Donas, pequena aldeia do concelho do Fundão. Vamos encontrar velhinhas extasiadas com as leituras brilhantes das passagens da Bíblia, nas missas modorrentas desses domingos de verão”. E acrescenta: “A chave da génese da formação cívica de Guterres pode ser encontrada no “Esquema 13”, saído do Vaticano II”. Este documento conciliar esteve na origem da “Gaudium et Spes” que inicia com as palavras: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos mais pobres e dos aflitos, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e nada existe de verdadeiramente humano que não encontre eco no seu coração.”

E o menino que em Donas, ”ajudava na igreja todos os domingos”, cresceu e tornou-se no melhor aluno do seu Curso: “Saiu com 19 valores do Instituto Superior Técnico”. E fez a síntese: Razão e coração. Ele que já em menino, “se preocupava em ajudar os mais desfavorecidos”, encontrou no Vaticano II o incentivo para novos caminhos. Ainda novo, começa a visitar os bairros de Lisboa e, já depois de ter sido Primeiro-Ministro, volta aos bairros mais problemáticos da periferia (Quinta do Mocho, em Loures e Bairro 6 de Maio, na Amadora) para, como simples voluntário, dar explicações de matemática à noite e ao sábado “Não tinha problemas nenhuns em prolongar os horários e, se fosse preciso, ficava até depois da meia-noite. Dava boleia aos jovens que moravam mais longe”

Também o JN (6/10) enfatiza o seu perfil de “católico empenhado nas mudanças sociais”, dizendo: “Ao longo da sua vida, Guterres manteve sempre iniciativas no campo da solidariedade: é fundador do Conselho Português para os refugiados e da Associação para a Defesa do Consumidor (DECO), presidiu ao Centro de Ação Social Universitário, promotora de projetos de desenvolvimento em bairros desfavorecidos em Lisboa.” 

  et Spes – Esperança

(19-10-2016)

 

TEMPOS IDOS...



 

 


 

 

 


Quem conhece estas placas? Onde se localizavam? Para que serviam?

Espalhadas pela cidade do Porto, ainda se podem ver, designadamente, no antigo “Campo Pequeno” e nas igrejas de S. Lourenço, de Nª Srª da Esperança e da Vitória. Eram afixadas na base de uma torre onde uma caixa em ferro escondia a extremidade dum cabo que, por dentro dum tubo, subia até ao sino. Encimadas pelos dizeres: “Câmara Municipal 1853”, apresentam uma lista de locais do Porto e seus limítrofes, a que corresponde um determinado número. Assim: “Sé-4; Stº Ildefonso-5; Orfãos-6; Campanhã-7; Bonfim- 8; Stª Catarina-9; Aguardente-10; Paranhos-11; Lapa-12; Cedofeita-13; P. de Cristal-14; Carmo-15; Trindade-16; P. de D. Pedro-17; Misericórdia-18; S. Nicolau-19; Vª Nova de Gaia-20; Miragaia-21; Massarelos-22; Lordelo-23; Foz-24; Para Parar-3”.


Hoje, fornecem-nos preciosas informações toponímicas, mas a sua finalidade era outra. Vêm do tempo em que as corporações de bombeiros eram incipientes ou nem existiam. As casas estavam sujeitas a muitos incêndios por causa das lareiras e da madeira das suas estruturas. E como as ruas eram estreitas e as casas contíguas, a propagação era rápida e devastadora. Por isso, quando alguém se apercebia dum foco de incêndio, corria à torre mais próxima, puxava a corda do sino e tocava a fogo, dando as badaladas correspondentes ao local do incêndio: quatro se fosse na zona da Sé ou… Como as igrejas estavam em pontos estratégicos onde se ouvia de umas para as outras (veja-se a localização das igrejas que ainda têm essas placas), logo alguém corria à igreja próxima e repercutia a mensagem, repetindo o “toque a fogo” que ouvira. E assim sucessivamente… a cidade era avisada do incêndio e sua localização. Toda a vizinhança abandonava o que estava a fazer e, com baldes, machados, enxadas e tudo o que tivesse à mão, acorria para ajudar. A luta contra as chamas era uma tarefa hercúlea que irmanava toda a gente. Ninguém ficava em casa. Em momentos de aflição, esqueciam-se rivalidades, ódios e zangas. “Todos por um e um por todos.” O fogo era o único inimigo que urgia combater. Quando era extinto e o sino dava as três badaladas “Para Parar”, a cidade respirava de alívio. Belo exemplo para o nosso tempo em que tanto se fala de “solidariedade”…

As gentes do Porto poderiam desconhecer esta palavra mas sabiam vivê-la na abundância do coração.

Outros tempos em que a entreajuda era grande mas sem badalação, à maneira do Evangelho: “Guardai-vos de fazer vossas obras diante dos homens para serdes vistos por eles (Mt,6)”

 

( 12-10-2016)

 

 

 

domingo, outubro 23, 2016

"SOU UMA ENCRUZILHADA"



1957. Para recitar na aula de “declamação”, escolhi o poema que Miguel Torga havia escrito à morte da mãe (1/6/1948): “Mãe:/Abre os olhos ao menos, diz que sim! /Diz que me vês ainda, que me queres. /Que és a eterna mulher entre as mulheres. /Que nem a morte te afastou de mim!”.

Não sei o que me teria levado a escolher “o mais dramático e comovente dos poemas dedicados à mãe”, no dizer de M. Hercília Agarez. A ternura pela Mãe – “És e serás sempre a faia que balança ao vento”; o apego à terra - “O destino exagerou comigo. Baralhou-me a condição. Plantou-me aqui e arrancou-me daqui. E nunca mais as raízes me seguraram bem em nenhuma terra”; a nostalgia da infância - ”As impressões infantis guardam toda a pureza dum amanhecer sem ocaso; A minha fidelidade à infância que não tive é que me ajuda a suportar esta concreta existência adulta”, desde cedo me atraíram. Por isso, já participei em duas visitas ao “Espaço Miguel Torga” que me encantou pela riqueza do espólio. Mas o que mais me deixou a pensar foi uma frase que lhe ouvi num vídeo: “ Sou uma encruzilhada de caminhos sem saída”. “Encruzilhada”, todos somos. Mas “de caminhos sem saída” é que não. Muito me custou ver este transmontano de gema e paladino da liberdade escrever ao chegar o fim da vida: “Aproxima-se o fim./E tenho pena de acabar assim,/Em vez de natureza consumada,/Ruina humana. Inválido de corpo/E tolhido da alma”.

Interroguei-me. A resposta encontrei-a na “recusa do divino”. A sua vida joga-se, numa dialética sem síntese, entre o menino religioso da “Agarez” iletrada que discursou na comunhão, foi vestido de S. José na procissão, acolitava nas missas, frequentou o seminário de Lamego, e o intelectual agnóstico de Coimbra, a sua “Agarez alfabeta”. – “Tudo o que sou claramente não é daqui. Mas tudo o que sou obscuramente pertence a este chão. A minha vida é uma corda esticada entre dois mundos.” Daí confessar: “A minha vida é um extenso rol de perplexidades”; e dizer “É contra mim que luto.”

Este conflito, mais notório perante a morte –“a morte é um escândalo sem remissão”- atinge o auge no falecimento de sua irmã (3/4/1983): “Oxalá que no outro mundo ela tenha a visão gloriosa da ressurreição em que acreditava. Eu por cá fico ainda neste desespero agnóstico, que a sua partida tornou mais cruciante.”

Quanta amargura! Que pena! E, afinal, há outros caminhos, como o de Mário Cláudio, escritor homenageado este ano na Feira do Livro do Porto: “Tenho a certeza de que a morte não é um fim. (JN,13/9/2016) ”. O papa Francisco em A Alegria do Amor, nº 256, afirma “A fé assegura-nos que o Ressuscitado nunca nos abandonará. Podemos, assim, impedir que a morte «envenene a nossa vida, torne vão os nossos afetos e nos faça cair no vazio mais escuro.”

(6-11-2016)

 
 

QUEM CONHECE ESTE MONUMENTO?



 

 

 Em 2013, esteve programada uma romagem a este monumento. Nesse sentido, deslocámo-nos à “Fábrica Social” e convidámos o seu criador, o escultor José Rodrigues, recentemente falecido (cf. VP, 14/)/2016), que, apesar de bastante debilitado, garantiu a sua presença. Infelizmente, acabou por não se concretizar. 

Para o apresentar, valho-me do livro “D. António Barroso fala nos seus monumentos” de José Adílio Barbosa Macedo, que passarei a citar. Diz na página 198 “ Está assente numa plataforma de granito e ergue-se numa estrutura quadrilateral, em bronze, com 2,50 metros de altura e 85 centímetros de lado. Sugere intencionalmente, um alto “padrão” a marcar a passagem do grande Missionário e Bispo por Angola, Moçambique, Índia e Porto. No lado da frente aparece a figura de D. António Barroso. A sua mão direita aponta na direcção da catedral, que ele tanto nobilitou com uma presença plena de bondade e caridade. No lado oposto, vê-se um pelicano alimentando os filhotes com a própria carne, com a legenda NON SIBI SED OMNIBUS= não para si mas para todos. No lado direito, três cabeças como que emergindo de um tufo de vegetação exótica, evocam a África, a Ásia e a Europa – os três continentes onde ele exerceu a sua actividade pastoral ”.

Este monumento, da iniciativa de D. Armindo Lopes Coelho com a colaboração da Câmara Municipal do Porto, quis celebrar o primeiro centenário da entrada de D. António Barroso na diocese (1899-1999). Na sua inauguração (2/8/1999), o Bispo do Porto, depois de elogiar o Mestre José Rodrigues, terminou dizendo: “Se há estrato social com quem D. António Barroso se identificava, que tem razão para o recordar, que teve motivo para o amar, que tem o direito de estar aqui presente na gratidão e na saudade, que tem autoridade moral para lhe chamar o seu Bispo – o Bispo dos pobres, o Bispo da bondade, o Bispo da santidade-, esse estrato social é o Povo. Sintamos todos a alegria de ser Povo, o Povo que faz homenagem a D. António Barroso”.

É significativo o local onde o monumento se ergue: Largo 1º de Dezembro, junto da “Associação Protectora da Infância” criada pelo Bispo dos pobres. Mas é pouco visível a quem por lá passa. E é pena até porque, com a reabilitação da antiga “Casa Pia”, será um lugar de muita passagem.

A morte do seu criador (10/8/2016) e o 1º centenário do falecimento do homenageado (1918-2018) não justificariam uma implantação com maior visibilidade? O Mestre insigne e o bom Bispo bem o merecem. E o monumento também…
 
 

( 29-9-2016)