O Tanoeiro da Ribeira

segunda-feira, janeiro 29, 2007

SÃO SEBASTIÃO- COUTO DE ORNELAS

Hoje, dia 20 de Janeiro, manhã cedo, ainda na cama, ouvi foguetes. – “Festa? “- Ah, pois é… é o S. Sebastião em Rio Tinto. E lembrei-me do que, no domingo passado, me disseram os meus compadres de Braga sobre o que se estava a passar com a mais conhecida festa de S. Sebastião, no Couto de Ornelas na Região do Barroso. Depois, quando cheguei à minha “sala de leitura matinal”, encontrei, delicadezas de esposa, a Revista Visão-Sete, de 18-24 de Janeiro aberta na página 10/11, com o título “ A GÁLIA NÃO PÁRA – Couto de Ornelas vai estender a toalha para acolher os visitantes. Um quilómetro de fé… e barriga cheia.”
Li com interesse e mágoa… E resolvi transcrever parte dessa notícia.
Há alguns anos de candeias às avessas com a Igreja Católica, a organização da Festa de São Sebastião, em Couto de Ornelas (Boticas), decidiu, desta vez, pedir uma bênção protestante… em forma de protesto. “Ao padre da aldeia tínhamos de pagar 150 euros, por isso vamos pedir a um pastor da Igreja Evangélica para abençoar os alimentos”, revela, satisfeito, o presidente da Junta. (…)
Aqui chegados, resta dizer que a Associação Comunitária tem, este ano, para oferecer, mil metros de uma mesa coberta com toalhas de linho e recheada com mil broas de milho, 250 quilos de arroz e 500 quilos de carne de porco.
A novidade, garante, Xavier Barreto, presidente da Junta, é que, na véspera (dia 19, sexta-feira) se vai recuperar um hábito celta de uma queimada com direito a esconjuro. “Ou bem que somos gauleses… ou não somos”


Faz hoje precisamente dezasseis anos, também era um sábado, eu, a Anita, os dois filhos, João e José, e um grupo de amigos de Cabeceiras de Basto fomos à festa de S. Sebastião, no Couto de Ornelas. Dessa experiência nasceu uma descrição/reflexão que foi publicada na Revista Água Mole – Revista de Cultura Popular, em Maio de 1991.
Porque o meu amigo e compadre José Machado, com o mestrado em Cultura Portuguesa e investigador da cultura popular, simpaticamente me disse que “ o teu artigo continua a ser paradigmático para estas coisas”, decidi relê-lo. Ao ver como ele chocava com a visão subjacente à notícia, resolvi transcrever o núcleo descritivo e ideológico deste artigo, remetendo para anexo a sua parte introdutória.


NA ROTA DO DIFERENTE
EMERGÊNCIA DO HOMEM SIMBÓLICO


Assim como a natureza é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos, obra de Deus, assim o homem moderno profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana. Mas isto quer dizer que o homem a-religioso se constitui por oposição ao seu predecessor, o homo religiosus, esforçando-se por se esvaziar de toda a religiosidade e de toda a significação trans-humana (…) Por outras palavras, o homem profano, queira ou não, conserva ainda vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado das significações religiosas. Faça o que fizer, é um herdeiro. (…)”
Mircea Eliade . O Sagrado e o Profano



O Homem Moderno é também sacramental. Não cremos que o homem moderno tenha perdido o sentido pelo simbólico e pelo sacramental. Ele é também homem, como outros de outros quadros culturais e, por isso também é produtor de símbolos expressivos da sua interioridade e capaz de decifrar o sentido simbólico do mundo.
Talvez ele se tenha feito cego e surdo a um certo tipo de símbolos e ritos sacramentais que se esclerosaram ou se tornaram anacrónicos.”

Leonardo Boff, Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos


(1)

Continuámos a descer. Um tractor atravessado no caminho impedia a passagem dos carros. Era o sinal. Há que estacionar e seguir a pé. As garrafas de vinho (até um garrafão) escondiam-se muito tímidas nos cestos retirados dos carros, acompanhados por pratos e garfos. (É que o vinho não faz parte da mesinha e os talheres, cada qual leva os seus). Em grupo, caminhámos para a aldeia. Estávamos a umas boas dezenas de metros do largo e já, no meio do caminho, estavam dispostas as mesas, baixinhas, constituídas por uma tábua irregular com uns 30 centímetros de largura.
O som estridente de um altifalante que debitava canções anglo-saxónicas punha uma nota de contraste na pacatez, na medievalidade do ambiente. Era uma camioneta com artigos de vestuário; mais adiante uma outra, adaptada, expondo fogões de lenha.
De momento estranhei. Depois… comentei com o amigo que me acompanhava. Lembrámos que sempre a romaria e a feira andaram de mãos dadas, É a globalidade, o sincretismo próprio do mundo rural onde o sagrado e o profano se confundem. É um tipo de organização espácio-temporal estranho à especialização dos meios urbanos. É assim.
Seguimos. Indicaram-nos a casa onde o mordomo guardava o pão e se cozia o arroz. Fomos recebidos como pessoas da casa. Ao redor de uma grande fogueira, o arroz borbulhava, apetitoso, dentro de enormes panelas de ferro, de três pernas. Estava a ser cozido na água onde já se cozera a carne. Levaram-nos a ver a sala onde, religiosamente se guardavam as 420 broas de pão que levaram três dias e duas noites a serem cozidas.
Quanto trabalho! Quantas canseiras! Quem paga tudo isto? As canseiras ninguém as paga. Subsídios não há. Anualmente, é escolhido um mordomo, que arca com toda a responsabilidade. A tradição é senhora. Os vizinhos oferecem farinha e colaboram no trabalho. Recebem-se donativos das pessoas que vêm à festa. Se não chegar, o mordomo aguenta com as despesas.

Animados com o calor da fogueira e a amizade do acolhimento, saímos para o largo da aldeia. Os forasteiros perguntavam. Os locais falavam da tradição. As máquinas fotográficas registavam as imagens, timidamente, na presença das câmaras-vídeo, orgulhosas na sua modernidade, a exigirem um ritual de deferência. Eram os contrastes construindo a unidade.

O sino do campanário chamou. A missa em honra de S. Sebastião ia começar. Poucos responderam ao seu apelo. A igreja, pequenina, vestira-se de festa. Chamou a todos mas nem a todos poderia acolher. Mas chegou…
Ainda a missa decorria e já as pessoas se dispunham ao longo da mesa onde iria ser servido o alimento. Buscavam o pão, não dentro da igreja, mas cá fora, ao ar livre. Duas formas de sacramentalidade. Como diz Leonardo Boff, na obra já referida, “ tudo é sacramento ou pode tornar-se. Depende do homem e do seu olhar. Se ele olhar humanamente, relacionando-se, deixando que o mundo entre dentro dele e se torne o seu mundo, nesta medida o mundo revela a sua sacramentalidade (…) O mundo todo e não apenas uma parte dele será sua pátria amiga e familiar, onde mora a fraternidade e vive a tranquilidade da ordem de todas as coisas
Terminada a missa, o sacerdote, em procissão, com o santo foi benzer a mesinha (pão, arroz e carne de porco) que depois será partilhada por todos e levada para casa, para os animais domésticos. Foi o rito da bênção. Poucos o acompanharam. Já toda a gente ladeava a mesa da refeição. Eram mais de três mil pessoas, ao longo de muitas dezenas de mesas. Foi um frente a frente, amigo e fraterno. Mais que diálogo aconteceu “polilogo”…
A conversa fez-se murmúrio. Todos se afastaram da mesa. A cerimónia ia começar. Tudo segundo as rubricas. O eterno ontem faz-se presente. Há ritmo. Há gestos que têm que ser religiosamente cumpridos. Sem atropelos. É o rito a impor o como antigamente.
Primeiro, a toalha de linho é desenrolada por sobre a mesa. De seguida, a vara mede as distâncias. A broa de pão é colocada no espaço de uma vara (pão que não abolece…). A escudela do arroz é deposta em cima da broa. Finalmente, junto da broa, coloca-se o prato com a carne. A refeição estava servida.
O ritual terminou? Um forasteiro, não habituado a este cerimonial, já se apressava a partir a boroa, quando alguém o admoestou: “ não se pode tocar no pão antes do santo passar”. E o potencial transgressor, envergonhado com a sua ignorância ritual, guardou o canivete que, extemporaneamente, abrira. E aguardámos o clímax do rito. Finalmente, o santo vai passar. As pessoas compõem a postura. Há solenidade nos gestos. O mordomo vai passando, ao longo das mesas, dando o santo a beijar. Atrás, vinha o rapaz do cesto para os devotos/turistas deporem a sua oferta. O mordomo, consciente desta ambiguidade ia prevenindo: “ se não quiserem beijar o santo, não beijem, mas, por favor, não esqueçam a oferta.” Uns beijavam, outros depunham a oferta, outros, ainda, beijavam e ofereciam. Era o relativizar dos ritos. Todos queriam significar a sua participação. Ninguém queria sentir-se estranho. Era o sentimento de pertença, expresso em diferentes gestos de identificação…
Depois, bem, depois foi o partilhar. Parecíamos crianças ávidas. Ávidas de quê? De alimentos? De significação. “ O homem tem o poder extraordinário de fazer de um objecto um símbolo e de uma acção um rito”, define L. Boff. A capacidade simbólica é especificamente humana. As coisas não valem só por si, não têm apenas uma realidade imanente. Através delas, o homem vê para além dela. Têm uma transparência para a transcendência.
Os alimentos postos à nossa frente não esgotavam em si o seu valor. Faziam apelo a outras realidades. Tinham polivalência. Era a memória individual de cada um. Era a memória colectiva de um povo, a memória cultural. Aqueles alimentos apelavam à fraternidade, ao comunitarismo Mais do que partilhar, íamos compartilhar.
Cada um procurava servir o outro. Oferecia o melhor. Cada qual queria que o outro provasse do seu vinho. O verde de Cabeceiras conviveu com o maduro de Valpaços. Foram momentos de verdadeira irmandade. A cidade e o campo, o litoral e o interior, o religioso e o a-religioso, conviveram, trocaram experiências, fizeram amizade. Encontraram uma vivência comum.
No mesmo rito, convergiam diferentes mitos. O homem simbólico criava a unidade na diversidade.
O que atraiu ali aqueles milhares de pessoas, vindas de terras bem distantes? O que deu significação a uma pequena aldeia, perdida no Barroso? O que fez dela uma unidade significativa? A fé? A cultura? Para além de tudo e sob-tudo, o simbólico.
Objecto entre objectos, numa civilização de objectos, o homem procura emancipar-se como sujeito. É uma necessidade de um equilíbrio psicológico e uma exigência da sua dignidade ontológica. Para além dos objectos, o homem constrói significações, cria distanciações. Afasta-se do quotidiano e do presente que o limita e, por vezes, sufoca. Recorre ao simbólico. Para isso, a Festa. Ela faz parte integrante do Mito. Reintroduz o passado descontínuo na continuidade do presente. Reactualiza os tempos primordiais que falam de segurança, de paz, de fraternidade. Torna o homem contemporâneo dos seus antepassados. E daí, a rigidez do rito. A Festa é o passado bom e feliz, eternamente presente. Psicologicamente, o homem precisa da Festa. Não aguenta o constantemente igual. A Festa é a libertação, o diferente, o cíclico em função do qual o quotidiano ganha significação.
É a emergência do homem simbólico que explica este interesse pelas manifestações culturais.

É a memória colectiva de um povo que se revê e dá significação aos seus ritos.
Neste final do século XX, o homem produtor de símbolos procura sobrepor-se ao homem fazedor de objectos. Mas, cuidado… Como diz Fernando Namora “ No novo mundo que se gera sob os nossos olhos espavoridos só existe mudança. (…) Temos de aprender a viver a precaridade” ( Rio Triste). A sociedade de consumo procura impor-nos símbolos, para assim nos vender objectos. O homem deixa de ser produtor para se transformar em consumidor de mitos. Assistimos à fugacidade dos ritos sem a face organizativa da vida. O mito faz-se para ser consumido. Daí a sua precaridade. “ Deveremos considerar essa implacável fugacidade a quinta-essência do Terror? Temos de enfrentá-la e nunca fugir-lhe” ( Rio Triste)
Apetece-me concluir com Edgar Morin:
Não podemos escapar aos mitos. O problema para nós é o de conhecer nos mitos a sua realidade e não a realidade. É o de reconhecer a sua verdade e não a verdade. Não ver neles o absoluto. E ver o poder de ilusão que eles escondem sem cessar, e que pode cobrir a sua verdade” ( Pour sortir du vingtième siècle)



Ao tomar conhecimento das alterações que se verificaram na celebração de Couto de Ornelas, dei-me conta da observação de Mircea Eliade quando afirma que o homem profano conserva o comportamento do homem religioso mas esvaziado das significações religiosas e pus em causa Leonard Boff será o homem capaz de decifrar o sentido simbólico do mundo? E confirmei o que timidamente escrevera há 16 anos: “A sociedade de consumo procura impor-nos símbolos, para assim nos vender objectos. O homem deixa de ser produtor para se transformar em consumidor de mitos. Assistimos à fugacidade dos ritos sem a face organizativa da vida. O mito faz-se para ser consumido. Daí a sua precaridade. “


O que está a acontecer em Couto de Ornelas não é um mero conflito entre detentores/proprietários do poder. É bem pior. É o simbólico que desaparece. O rito mantém-se mas esvaziado de toda a sua significação de interioridade e de transcendência. Esta perversão não acontece apenas por parte dos organizadores mas também, segundo me dizem, por parte dos participantes.
As forças que alimentam os ritos estão a ser totalmente subvertidas. Como se pode fazer experiência da fraternidade universal quando os organizadores se degladiam, quando os participantes desprezam os ritos e se atiram aos seus fartos farnéis que não compartilham, usurpando a mesa que é sinal de refeição comunitária?
Como se pode respeitar o carácter do “eterno ontem” próprio dos ritos, quando se introduzem alterações totalmente desenquadradas do contexto celebrativo do rito? Que tem a queimada a ver com o rito/mito de S. Sebastião? É a sociedade de consumo a ditar as suas regras. O que importa é acrescentar mais um número ao espectáculo para trair os forasteiros que, sem qualquer sensibilidade cultural, vão divertir-se com os “índios na reserva” e comer à custa deles – “ barriga cheia”.
Os organizadores se ouvissem a voz autêntica do povo não cometeriam tais atrocidades à memória de um povo. Este verdadeiro genocídio cultural está a verificar-se por todo o Barroso. E o povo mais autêntico apercebe-se disto e não gosta. A este propósito, cito uma frase dita por José Martins, um dos organizadores da festa de S. Sebastião nas Alturas: “ Antigamente, dava-se só pão e vinho, mas, agora, com as modernices começámos a dar feijoada”, explicava, com a testa banhada em suor,”(JN- 22 de Janeiro de 2006). O povo sabe que “as modernices” estragam o verdadeiro espírito da celebração. É curiosa a forma como se inicia essa notícia: “ Não se empurrem! Tenham calma! Isto chega para todos!” “Isto” é um prato de feijoada, um canto de trigo e um copo de vinho, o menu que a multidão desordenada tentava alcançar, no interior de um armazém, em Alturas do Barroso em Boticas.” (…) “Só é pena a confusão à entrada”, lamentava-se uma mulher de Famalicão. Ao seu lado, um idoso, quase sem dentes, queixava-se de que os feijões estavam rijos”. Como isto contrasta com o que se vivia no Couto de Ornelas, há 16 anos:” As pessoas compõem a postura. Há solenidade nos gestos.” Agora é a banalização dos rito. É tudo igual, o que importa é encher a barriga…

Meus senhores do Barroso, deixem-se de conflitos e procurem salvar o S. Sebastião do Barroso. Os vossos antepassados merecem-no, a vossa memória cultural o exige. Deixem de lado a disputa dos princípios teóricos onde cada um terá as suas razões de divergência e ponham-se de acordo nos princípios práticos para salvar a vossa configuração cultural. Não alterem só para atrair forasteiros. Mantenham-se fiéis às vossas tradições e os visitantes aparecerão, não aqueles que querem ir comer à custa do vosso suor mas aqueles que querem partilhar convosco um rito de fraternidade
Apetece-me transcrever algumas passagens do discurso que o filósofo francês, Jacques Maritain, fez na Unesco, em 1947.
Nunca os espíritos estiveram tão profunda, tão cruelmente divididos (…) Nestas condições, como pode conceber-se um comum acordo de pensamento? (…) O acordo pode fazer-se não sobre um comum pensamento especulativo, mas sobre um comum pensamento prático ; não sobre a afirmação de uma mesma concepção do mundo, do homem e do conhecimento, mas sobre a afirmação de um mesmo conjunto de convicções orientadoras da acção. Isto é pouco sem dúvida; é o último reduto do acordo dos espíritos.(…)
Eu estou persuadido de que a minha maneira de justificar a crença nos direitos do homem (…) é a única assente numa fundamentação verdadeira. Isso não me impede de estar de acordo, sobre essas convicções práticas, com aqueles que estão persuadidos de que a sua maneira de as justificar, diferente da minha ou oposta à minha no seu dinamismo teórico, é também a única verdadeira. Se ambos acreditam na carta democrática, um cristão e um racionalista darão, dela, justificações incompatíveis entre si(…). Mas sucede que, relativamente à afirmação prática dessa carta, eles estão de acordo e podem formular em conjunto princípios comuns de acção. (…) Nesses limites, há e deve haver entre eles um acordo.”


Amigos Barrosãos, sois herdeiros de uma cultura que merece o respeito de todos os que vos conhecem. Deixem-se de conflitos para ver quem tem razão. Deixem-se disso e interroguem-se que Barroso querem deixar aos vossos vindouros? Um Barroso genuíno como aquele que os vosso pais vos legaram ou um Barroso descaracterizado e sem qualquer identidade cultural? Não maltratem um tesouro que levou séculos a amealhar… Quem querem que vos visite? Aqueles que sabem respeitar as vossas particularidades culturais, vos agradecem o testemunho de um comunitarismo em vias de extinção, vos pedem que os aceiteis na celebração dos vossos ritos, vos admiram pelo respeito que mostrais pelas vossas tradições ? Ou aqueles que vão, como alarves esfomeados, sem qualquer respeito pelas vossas tradições, sem qualquer sentido de partilha ou pertença, sem qualquer sensibilidade cultural, encher a barriga com os alimentos que tanto vos custam e, no fim, ainda se julgam no direito de se queixaremm de que “os feijões estão rijos”? Por amor de Deus, deixem-se de alimentar gratuitamente quem não precisa até porque andam centenas de quilómetros só para comerem à vossa custa. Isto não é cumprir a primeira das obras de misericórdia, “ dar de comer a quem tem fome!. Não, eles não têm fome.

Levantámo-nos às 5 horas, já lá vão 150 quilos de arroz, garantia uma mulher, limpando o rosto. Dá muito trabalho e não ganhamos nada! Mas a devoção ao santo também vale! Acrescenta outra “cozinheira”. A meio da tarde, além dos 150 quilos de arroz, já tinha sido cozido 3000 quilos de feijão (…) 300 broas de centeio, três mil carcaças, dois mil cantos de trigo e 600 litros de vinho”. Em Couto de Ornelas, a Visão fala em mil broas de milho, 250 quilos de arroz e 500 quilos de carne de porco.
O santo também vale”.Mas será que a maioria dessas pessoas que não respeitam os vossos ritos, que ignoram e até escarnecem dos vossos mitos, merecem tanta despesa, tanto trabalho, tanta canseira? Será que o santo se sentirá honrado? Não, assim, não.

Por favor, ponham-se acordo em pensamentos práticos sobre o modo de actuar que alimente os vossos valores, engrandeça as vossas tradições, respeite os vossos antepassados e nós, homens da cidade, que, mais do que de pão, temos fome de significações, agradeceremos e iremos partilhar convosco os vossos ritos, num respeito total pela verdadeira e autêntica cultura barrosã. Por favor, não matem nem deixem morrer o Barroso.











Anexo (1)
Era o dia 19 de Janeiro, sexta-feira.
O Inverno, que fizera transbordar os rios, geava agora os campos e os caminhos, tornando perigosa a viagem pelas estradas montanhosas do interior.
A noite caíra e o trabalho chegou ao fim. Foi só tempo de ir a casa, meter a mala no carro, aguardar a chegada dos filhos da natação e do karaté, e abalar em busca de um fim de semana diferente. Aldeão, radicado há muito na cidade, partia à procura da aldeia, não a minha, que essa fora absorvida pela grande cidade: as pessoas já não se tratam por “tios” e a vivência comunitária, corporizada nos moinhos e “engenhos” de “consortes” e na partilha do “crescente”, esvaiu-se na memória. Resta o mito.
Os relógios indicavam as 19,30, quando o carro arrancou rumo a Cabeceiras de basto.
- Pai, há festa em casa dos amigos de Cabeceiras? – perguntou o filho mais novo, nos seus dez anos curiosos e interrogativos. – Sim, vamos a uma Festa, expliquei, não em casa dos amigos, mas em terras do Barroso. Como peregrinos do passado, pernoitaremos durante a viagem, em Cabeceiras- - Festa em honra de quem? – quis saber o filho. – Uma festa no Couto de Ornelas, em Boticas, em honra de São Sebastião, que é advogado contra a peste, a fome e a guerra, esclareceu a mãe. – Por isso, confirmou o filho, eu li que no tempo da Peste Negra, as pessoas rezavam a S. Roque e a S. Sebastião.
E cantávamos um hino popular, aprendido nos meus tempos de adolescência:
“ Herói mulitar, Capitão valoroso,
Livrai-nos da péstia, Sebastião milagroso.
E auspois desta vida, levai-nos pró céu,
A gozar da internidade, bem juntinho de Deus…”

Os quilómetros passaram. Chegámos à Faia, em Cabeceiras de Basto, onde os amigos nos esperavam. Deu-se convívio ao redor da lareira. O fogo crepitava…crepitava… O fogo!... Que fascínio! Que magia! Quantos pensamentos! Quantas emoções! Quanta reminiscência da infância!
Depois fez-se silêncio. Um silêncio telúrico que vinha do coração da terra e nos transportava às profundidades do tempo.
Manhã cedo, foi o despertar. Com os amigos da casa e outros que se nos juntaram partimos, rumo ao Barroso. Atravessámos a povoação de Salto, onde já se festejava S. Sebastião, embora a mesinha ( pão e vinho) só fosse partilhada às quatro da tarde. Seguimos pela nova estrada que liga a Boticas (“é uma auto-estrada!”- dissera-me um amigo) Realmente a surpresa é grande: o panorama é de pasmar, o tapete da estrada causa inveja a muitas auto-estradas. Confortados com as delícias desta estrada, desviámos para o Couto: era um estradão onde os buracos aconselhavam prudência. Foi uma nova habituação. Um carro businava atrás de nós.
“Que passe! Vai com pressa! Pensa que ainda vem na estrada!...” Um apressado? O carro ultrapassa-nos. Dentro acenavam. Era um grupo de amigos de Braga. Ficámos radiantes. Parámos. Foi uma festa! Vinham de Cerdedo, onde participaram na festa de S. Sebastião. A missa fora às nove da manhã. A mesinha era pão, carne e vinho. O pão que traziam foi logo repartido por todos, ali em plena serra. Aconteceu rito, fez-se celebração.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

A PIA- ASSOCIAÇÃO DOS ALUNOS DO SEMINÁRIO MAIOR DO PORTO

Hoje, o José Miguel trouxe-me uma publicação, com dedicatória do autor, o A. Carmo Reis, com o título “SOBRE A ANTIGA ASSOCIAÇÃO DE ESTUDANTES DO SEMINÁRIO DA SÉ DO PORTO, (Boletim de 2005 – 3ª série – Nº 23 – da Associação Amigos do Porto). Estes meus dois amigos, dois anos mais novos que eu no Seminário, quiseram lembrar a minha passagem como presidente desta veneranda associação, em 1962/63.

HISTÓRIA
Li com muito interesse esse opúsculo sobre a história da Pia. E vi que a actual Pia Associação de S. José resultou da fusão, em 1936, da Pia União de S. José, fundada pelo Cardeal D. Américo em 1874 e da Ala dos Cruzados Académicos já existente desde 1908.
Esta associação funcionava como uma autêntica associação de estudantes com três funções mais importantes: prestar culto a seu patrono - S. José, desenvolver actividades de carácter cultural e social, representar os alunos junto do Senhor Reitor.
A sua direcção era formada pelo Presidente-Nato, o Reitor do Seminário, e por três alunos eleitos: o vice-presidente (ou presidente em exercício), o secretário e o tesoureiro. A Assembleia Geral electiva tinha lugar na biblioteca do seminário, sendo eleitores todos os seminaristas. No nosso caso, o Presidente-Nato, Monsenhor Miguel Sampaio, propôs três nomes para cada um dos cargos. Sei que para a Vice-presidência os propostos foram: Justiniano Ferreira dos Santos, o aluno mais brilhante do meu ano; o Joaquim Carneiro Dias que, depois, foi o Monitor-Geral do Seminário e o meu. Por votação secreta, foram eleitos: eu como vice-presidente , o Avelino Ricardo Teixeira da Silva para secretário e o António Ferreira de Brito para tesoureiro. Não houve campanha para essas eleições pois que os nomes propostos pelo Senhor Reitor só foram conhecidos nesse momento. Estou convencido que a minha eleição por larga maioria absoluta (64 votos num universo de, creio, 98 votantes) deveu-se ao facto de os alunos dos anos anteriores já me conhecerem como vice-presidente que fui da Academia do Beato Nun´Álvares no Seminário de Vilar Do conjunto das actividades que a Pia desenvolveu nesse ano, limitar-me-ei a falar apenas de uma em cada um dos diversos sectores de actuação.

PROMOÇÃO DO CULTO DE SÃO JOSÉ
No terceiro domingo depois da Páscoa, conforme os estatutos (?), organizámos uma festa na igreja do Seminário que foi precedida por uma novena. Nessa novena, os diáconos escolhidos fizeram uma homilia por noite, tendo por tema para cada noite uma das invocações da “Ladaínha de São José” ( Lembro-me que ao Brito calhou o “ Ioseph castissimus…”)
No dia, de manhã, tivemos Missa Solene presidida pelo Senhor Reitor sendo pregador o Pe. Vaz dos Cursos de Cristandade. De tarde, houve um cerimónia com terço e sermão na Igreja. De acordo com a tradição, era ao Vice-presidente que competia fazer esse sermão. E por isso… lá subi eu ao púlpito. A igreja dos Grilos, igreja do Seminário, estava cheia, mas o que sobressaía aos olhos de quem, lá das alturas do púlpito, olhava para a assembleia era a enorme mancha branca das sobrepelizes dos seminaristas. Ainda me lembro daqueles rostos (com ar de gozo…) apoiados na mão direita virados para o púlpito e o abanar da cabeça como que a dizer, ironicamente: estás a falar muito bem! Isto de convencer colegas… Por isso, resolvi deixar de olhar para eles e fixei-me na outra parte da assembleia onde estavam amigos meus, tais como muitos dos pais dos pequenos da catequese que tinham frequentado as colónias de férias em Albergaria das Cabras, Arouca, e em Valongo, a família do senhor Costa de Valongo e outros (creio que meus pais também estiveram presentes para ouvirem este primeiro sermão oficial do filho…). Se convenci alguém, de certeza, que não foi nenhum dos colegas…
Fui com emoção que, passado todo este tempo, reli o manuscrito que guardei desse sermão. Resolvi anexá-lo a este texto, em versão integral: (1)

* porque foi o meu primeiro sermão. Nunca gostei de fazer sermões, sentia-me desconfortável, não via as pessoas de frente, não as olhava nos olhos; não me apercebia das suas reacções. Fiz muitas homilias, preguei vários retiros, fiz discursos e conferências, mas sermões só fiz mais outro – na minha terra, no dia de Todos-os-Santos desse mesmo ano, porque não podia dizer que não ao meu pároco e ao meu padrinho José Joaquim da Ponte. Mesmo quando o António Taipa me convidou para ser o pregador da sua “Missa Nova” disse-lhe: “ eu não sei fazer sermões, só sei fazer homilias”. E assim foi… fiz a homilia no altar na igreja de Freamunde.

* porque foi escrito há cerca de 44 anos. Trata-se de documento do seu tempo que me permite descobrir:
- uma visão um pouco negativista do mundo de então :“ A harmonia entre a alma e o corpo querida por Deus no plano da Criação foi quebrada por dois pólos opostos: o puro materialismo que reduz o homem à matéria; e o espiritualismo unilateral que reduz o homem ao espírito”;
- uma crítica, velada, à espiritualidade de alguns dos meus colegas no seminário e que tanto mal causou à convivência no meu ano. “ Por vezes sonhamos com uma santidade descarnada, uma santidade falsa porque sem alicerces”;
- um grande sentido de esperança e alegria para a Igreja “É maravilhoso o incremento do cristianismo nos nossos dias, um cristianismo alegre e jovem que respeita, desenvolve e sublima o Homem com todas as suas virtualidades.”

* porque me permite ver que, nessa época, se podiam já vislumbrar linhas de pensamento que influenciariam o meu apostolado futuro, quanto:
- às preocupações pastorais que nortearam o meu sacerdócio “ transformar o mundo de selvagem em humano e de humano em cristão”
- à espiritualidade que procurei fomentar “Esquecemo-nos que o edifício da nossa santidade tem que assentar sobre a nossa humanidade integral” ”Vivifiquemos (…) a heróica vulgaridade do nosso dia-a-dia!”
- e às vias de santificação através da vida quotidiana que procurei valorizar “Quando cumprimos
(…) as exigências vitais (do corpo) estamos a satisfazer a Vontade de Deus” “Faz parte do plano
da Providência que cada um se aperfeiçoe mediante o seu trabalho quotidiano” ”o cristianismo
sobrenaturaliza os autênticos valores humanos”

* Permite-me, também, ver como o meu pensamento sobre a Igreja, embora já se note um certo aceno ao Vaticano II ao identificar a Igreja como “ Povo Santo”, ainda estava muito marcado pela concepção de Pio XII, acentuando o seu carácter de “ Corpo Místico de Cristo”,
* Porém, onde se verifica uma maior diferença é no papel da Igreja perante a Sociedade Política; nota-se uma certa mentalidade conservadora
A lei natural e cristã mandam respeitar aqueles que, em qualquer grau possuem autoridade no Estado e conformar-se com as suas ordens justas”. Embora se ressalve a obediência para “as ordens justas”, quão longe está da concepção interventiva que motivou a suspensão do meu passaporte, anos mais tarde.

ANIMAÇÃO CULTURAL DO SEMINÁRIO

Para além de diversas academias, vêm-me à mente a realização de jogos florais com poesias, ensaios, contos etc. O Brito ganhou o primeiro prémio em poesia e eu tive uma menção honrosa em “ensaio”- sector de Sociologia, com um trabalho sobre a influência da televisão nas crianças. O júri era presidido pelo Dr. Xavier Coutinho. Relembro ainda o nosso trabalho no campo do jornalismo, coordenado pelo Brito, com a publicação de artigos na imprensa regional sobre o Vaticano II, uma vez que eu, por inerência de funções, fazia parte da Comissão Diocesana criada para divulgar o Vaticano II. Também era a nós que nos competia regular, com a concordância do Senhor Reitor, a utilização da televisão que estava na Biblioteca: programas, dias…
Porém, é um caso sobre a exibição de um filme que quero ressaltar por ter sido um momento, por sinal o único, em que tive um conflito com o senhor Reitor. Eu conto.
Era à Pia que competia coordenar e alugar os filmes a exibir no Seminário. Mas, contrariamente à minha experiência na Academia no Seminário de Vilar, havia um padre encarregado de supervisionar a exibição de filmes - nesse ano, o Senhor Reitor incumbiu o Dr. Armindo de tal função. Nunca aceitei bem esta intromissão porque considerei ser uma ofensa à autonomia académica. Acontece que, em anos anteriores, a Pia, para ter filmes mais baratos, fizera um contrato com a Lusomundo (?) comprometendo-se a exibir um dado número de filmes de uma lista que então fora fixada. Assim, aconselhados pelo Círculo de Cinema do Seminário, decidimos contratar um filme que constava da lista e cuja exibição nos cinemas em Portugal tinha gerado grande polémica: era de Fellini e tinha como protagonista sua esposa Giulieta Massina com o título “ Noites de Cabiria”. Estava eu doente (daquela doença que todos os anos me acometia… e durava sempre uma semana: começava sempre por uma gripe…) quando o Avelino Ricardo me veio dizer que o Dr. Armindo não autorizava a exibição desse filme e que nós escolhêssemos qualquer outro da lista. Fiquei furioso com tal censura e descobri no elenco um filme de Visconti, baseado num texto de Dostoievski com o título “ Noites Brancas”. Desconhecia o conteúdo do filme mas, se o Dr. Armindo autorizava, é porque o conhecia e a responsabilidade era dele. E o filme foi alugado.
Durante a exibição, apercebi-me que o tema não deveria agradar aos padres porque abordava o tema da prostituição e, de modo velado, pareceu-me fazer algumas alusões à homossexualidade. No final, uns colegas vieram dizer-me: “ ó João, o Senhor Reitor está furioso contigo, disse que isto é “uma merda” e esteve para mandar interromper o filme”… Fiquei tranquilo. “Não era eu o responsável. É bem feita, deixassem-me trazer “As Noites de Cabiria”… pensei com os meus botões.
No dia seguinte, no final do almoço, ao sair do refeitório, já no corredor, Monsenhor Miguel Sampaio pregou-me uma descompostura descomunal, chamando-me irresponsável e outras coisas mais violentas com um tom de voz que lhe desconhecia. Nem reparou que, a ouvir tudo, estava uma senhora que o esperava. Mantive-me calado. Não disse uma palavra. E fui para o recreio. No início do período de estudo da tarde, fui ter com o Senhor Reitor ao seu quarto. Quando entrei, já o Monsenhor ia retomar o mesmo tom de repreensões quando eu lhe disse. “ Senhor Reitor, se me autoriza, agora quem fala sou eu uma vez que, há bocado, deixei-o falar à vontade e não lhe dei qualquer justificação até porque estava uma pessoa estranha ao seminário a ouvir a nossa conversa e fui humilhado na sua presença. Senhor Reitor, não peça responsabilidade a quem roubou liberdade. O Senhor Reitor nomeou um padre (nunca citei o nome do Dr. Armindo) para controlar a exibição de filmes, mostrando que não confiava em nós e ofendendo a autonomia académica. Esse padre mandou-nos desmarcar um pedido de um filme que já enviáramos à Lusomundo, que era “ As Noites de Cabiria”. Esse mesmo padre responsável disse para nós encomendarmos qualquer outro filme de uma lista que ele conhecia. Nós assim fizemos. Por isso, não era este o filme que nós queríamos mas foi o filme que nos foi autorizado. Não aceito que o Senhor Reitor me responsabilize quando não me deu liberdade de escolha. Repito: não é legítimo exigir responsabilidades a quem não se deu liberdade” e contei-lhe a minha experiência no Seminário de Vilar “onde não havia ninguém entre mim e o Reitor e nunca houve qualquer problema.”. O Monsenhor Miguel ouviu tudo em silêncio. Explicou que não sabia destes antecedentes e pediu-me desculpa pelo que me tinha dito, especialmente porque não tinha reparado na presença da tal senhora que o esperava. E o incidente ficou sanado. Ou não?... Porque é que, depois, eu fui nomeado coadjutor de Santo Ildefonso? Não seria alguém que precisava de ser domado por uma personalidade forte?

EM REPRESENTAÇÃO DOS ALUNOS…

A este propósito relembro um caso que, hoje, me faz sorrir mas que, naquela época, levámos muito a sério.
Corria o ano 1963. A construção da “Ponte da Arrábida”, do Eng. Edgar Cardoso, com o maior arco de cimento armado do mundo, enchia-nos de orgulho, concitava todas as atenções e era motivo de grande entusiasmo. Era a primeira a ser construída depois da de D. Luís, já lá iam uns cem anos… O Grupo Coral do Seminário fazia ensaios e mais ensaios para cantar na missa, que iria ser transmitida para todo o País através da televisão( nós íamos aparecer na televisão!…), da sua inauguração em Junho quase sobre a época dos exames. Alguém descobriu que, nesse ano, se celebrava o centenário do Seminário… Por isso, a coisa era clara: nesse ano, não podia haver exames para assinalar a inauguração da “Ponte” e comemorar o centenário do seminário. Vieram falar com a Pia. E a Pia assumiu as suas responsabilidades. Expusemos ao Senhor Reitor as nossas pretensões. “ Que ia falar com o Senhor Bispo”. Passados uns dias chamou-me comunicou-me que o Senhor Bispo, atendendo ao nosso pedido, ia falar com os professores e combinar uma disciplina por ano em que não haveria exame.
Ouvi e falei com os colegas. “ Que não! Porque iriam escolher uma das semestrais sem interesse. Ao menos, que nos deixasse escolher a disciplina a que não haveria exame”. Até me prometeram colocar uma lápide comemorativa no Oreb ( só promessas...). Falei novamente com o Senhor Reitor que falou novamente com o Senhor Bispo: “ Que não, os professores é que escolheriam a disciplina a dispensar.”
Então, engendrámos um novo esquema que, com a autorização implícita do Senhor Reitor, pusemos em acção no dia da inauguração da Ponte da Arrábida. De acordo com o combinado, no final da Missa, eu e creio que o Carneiro Dias, como Monitor-Geral (à inauguração da Ponte só foram os cantores e alguns elementos da Direcção da Pia não eram cantores…), abeirámo-nos do senhor Bispo, D. Florentino, enquanto os outros seminaristas rodearam o Núncio Apostólico, Monsenhor Forstenberg (Não sei se é assim que se escreve.). O Senhor Bispo viu-me, mas disfarçou mantendo uma conversa com umas senhoras. Aguardámos. Logo que nos atendeu, disse-lhe à queima roupa: “ Senhor Bispo, queríamos pedir-lhe novamente que autorizasse que fossem os alunos a escolher a disciplina dispensada de exame ou nos autorizasse a falar com o Senhor Núncio Apostólico. -“ Vós não sois capazes de ir pedir ao Senhor Núncio” – “ Senhor Bispo! Repare com quem é que ele está a falar.( Eram os alunos que, de acordo com o previamente combinado)) Basta eu levantar a mão e os alunos falam já com ele.” O Senhor Bispo ficou pálido (mais pálido do que ele já era), parou um momento e, por fim diz: -“ Está bem. Uma à escolha dos alunos. Digam ao Senhor Reitor para vir falar comigo. “. Repetimos para confirmar que não nos tínhamos equivocado: "Uma à nossa escolha, Senhor Bispo.” – “ Sim, uma à escolha dos alunos”, repetiu o Senhor D. Florentino.
Despedimo-nos e agradecemos. Os colegas acabaram logo a conversa com o Núncio e, quando lhes dissemos, foi uma festa sobre outra festa. Por isso, quando, em camioneta fretada pela organização da inauguração, passámos sobre o tabuleiro da Ponte inaugurada, o rio pareceu-nos mais dourado e o mar mais verde e o céu mais azul... Que festa!... A festa repetiu-se no Seminário quando os restantes seminaristas tiveram conhecimento da boa nova…” Uma disciplina à nossa escolha”. Cada ano deve reunir-se para escolher… Ainda recordo o dia em que, após o almoço, os diversos anos se reuniram no recreio, separadamente, para votarem a disciplina a ser contemplada, enquanto, passeando na varanda de S. João de Brito, os padres assistiam não muito satisfeitos a tão inusitado exercício de democracia. Foi uma alegria quando se começou a ouvir: Pum! Lá foi a Exegese!; Pum! Lá se foi a Filosofia!; Pum! Lá se foi a Sacramental!.. Alguns professores sentiram-se postos em causa por pensarem que a rejeição da sua disciplina correspondia a um voto de censura ao professor. E , se isso aconteceu, não foi o caso do nosso ano em que a escolhida foi a Sacramental quando nós até gostávamos e admirávamos o professor que era o Dr. Madureira: era uma disciplina que dava muito trabalho. Mas houve professores que ficaram mesmo zangados…
Hoje, ao pensar nisto tudo, só penso que foram coisas de gente nova e só tenho que pedir desculpa ao Senhor D. Florentino por o termos metido em tão maus lençóis. Não foi intencional, mas, de facto, aproveitámos a sua situação de Administrador Apostólico que não queria ter nada que ofuscasse a sua imagem junto do Núncio Apostólico… e, por isso, a sua cedência.
E eu… mais uma vez… a precisar de um pulso que me controlasse… e, por isso… coadjutor de Santo Ildefonso…
Mas a minha admiração pelo Senhor D. Florentino continua… porque, depois de tudo o que lhe fiz passar, ainda teve a coragem de me dizer, na véspera da minha ordenação sacerdotal, “Só quero que sejas, como padre, o que foste como seminarista” e confiou em mim para criar uma nova paróquia na Cidade do Porto e convidou-me para pertencer ao primeiro Conselho Presbiteral da Diocese e nomeou-me para responsável da Obra que era a menina dos seus olhos – a Obra Diocesana de Promoção Social da Cidade do Porto… Obrigado. Deus o recompense!...

CONCLUINDO...
Ao abordar o trabalho desta Associação, fundada em tempos da Monarquia, bem como o da Academia de Beato Nun’Álvares do Seminário de Vilar, de que já falei, não posso lamentar-me da “Manhã Submersa”, como Vergílio Ferreira… Bem, pelo contrário, numa época em que aos estudantes liceais e universitários (não podemos esquecer que a minha gerência da Pia coincidiu com a primeira crise académica de 1962) eram negados muitos direitos, com especial relevo para o de expressão e associação, nós, no Seminário assumíamos posições de autêntico confronto e exercício democrático. Aí, e apesar de muitas limitações, podemos afirmar que o Porto se afirmava como a “terra da liberdade”…

(1)
“Reverendíssimos Ministros do altar; amados colegas, meus bons irmãos

Na palavra de Sua Santidade o Papa João XXIII “ a nossa época está penetrada de erros radicais e perturbada por profundas desordens; todavia ela é também uma época em que se abrem imensas probabilidades de bem ao espírito combativo da Igreja”.
Ao lado de um materialismo que nega os autênticos valores espirituais e humanos, floresce um cristianismo que mais e mais vive a sublimação do homem redimido por Cristo.
Ombreando com um cristianismo de tradição, negativo, tétrico e egoísta, cresce um cristianismo autêntico, pleno de Fé e Juventude que animado pelo seu ardor de caridade, pela vivência de Cristo, deixa as ombreiras mesquinhas do individual para se lançar na conquista do Mundo para Deus.
A harmonia entre a alma e o corpo querida por Deus no plano da Criação foi quebrada por dois pólos opostos: o puro materialismo que reduz o homem à matéria; e o espiritualismo unilateral que reduz o homem ao espírito.
“ O homem separado de Deus torna-se desumano consigo mesmo e com os outros seus semelhantes porque a ordenada relação de convivência pressupõe a ordenada relação da consciência da pessoa com Deus, fonte de Verdade, de Justiça e de Amor”.
O homem, estonteado com as suas obras, quis construir uma humanidade sem Deus, quis desterrar Deus como um ser ultrapassado, inútil, o mito dos ignorantes. Recusou-se a glorificar o seu Criador, quis celebrar a sua glória de super-homem, desligando-se da Fonte de toda a sua grandeza.
Cansado da vacuidade materialista, o homem aspira por algo de indefinido que lhe sacie a alma! Começa a debater-se com o desespero de não encontrar o objecto do seu ideal. Procura a felicidade e apenas encontra a aparência de felicidade e, por isso, depois de cada tentativa, vem o fracasso, o desalento e o desespero. Bebe até ao fundo a taça das felicidades mundanas e, por fim, ao debater-se com o absurdo da sua vida, resolve refugiar-se no suicídio. É que, como diz Santo Agostinho:” o Senhor fez o nosso coração para Ele e o nosso coração andará inquieto até descansar n’Ele”. Em Deus está a nossa Felicidade.
No pólo oposto ao materialismo, temos o espiritualismo unilateral que, para nós cristãos, pode ser mais perigoso do que o primeiro. Ilude facilmente as pessoas bem intencionadas porque tem aparências de verdade e exerce um certo atractivo espiritual. E assim podemos cair no angelismo e, como diz Pascal, “ o homem nem é um anjo nem um simples animal”, foi criado corpo e alma.
Por vezes sonhamos com uma santidade descarnada, uma santidade falsa porque sem alicerces. Esquecemo-nos que o edifício da nossa santidade tem que assentar sobre a nossa humanidade integral.
O cristianismo é a sublimação do homem e não o seu aniquilamento; o cristianismo sobrenaturaliza os autênticos valores humanos.
Sempre a Santa Igreja, através dos tempos, teve que combater este falso processo de santificação e, assim, na Idade Antiga, anatematiza os Maniqueus e Priscilianistas; na Idade Média, condena os Albigenses e Fraticelos.
A par destes dois extremos que convergem na desumanização, vai crescendo cada vez mais o número daqueles cristãos que procuram encarnar na sua vida a Fé que professam; que se preocupam e sofrem com Cristo nos seus irmãos; que fundamentam a sua Caridade na Justiça, porque, como diz Pio XII, não pode haver caridade sem justiça; que procuram levar todos os homens a reconhecer e amar o seu Criador. É maravilhoso o incremento do cristianismo nos nossos dias, um cristianismo alegre e jovem que respeita, desenvolve e sublima o Homem com todas as suas virtualidades.
Irmãos, desde o dia do nosso baptismo, nós somos uns consagrados. Incorporados em Cristo, todos os nossos actos devem ser feitos sob a moção dessa entrega total a Cristo :“ as nossas actividades devem ser actividades de consagrados”! Que a Religião penetre todos os sectores da nossa vida e não se confine a um comportamento estanque que se abre uns minutos por dia e uma meia hora ao domingo. Vivifiquemos, vivendo em graça, a heróica vulgaridade do nosso dia-a-dia! Cumpramos com perfeição os nossos deveres, certos de que, vivendo em Graça, todos os nossos actos, humanamente bons, têm valor sobrenatural.
São José – o Homem Justo da Escritura – é o nosso modelo! Ele santificou-se cumprindo a Vontade de Deus em todos os seus actos, vivendo e encarnando a sua fé nos seus deveres humanos. São José santificou-se satisfazendo as exigências vitais do seu corpo. E assim é que, à noite, dava ao corpo o descanso necessário. Foi Deus quem nos criou tal qual somos, com necessidades físicas. Quando cumprimos essas exigências vitais estamos a satisfazer a Vontade de Deus:
São José santificou-se cumprindo o preceito do trabalho. De tal modo se identificou com a sua profissão que era apenas conhecido por “ O carpinteiro”, com se vê no Evangelho de S.,Lucas, 13,55 em que o povo admirado com a ciência de Jesus, perguntava entre si: “Não, é este o filho do carpinteiro? (No grego aparece o artigo)
Porque via no seu trabalho a vontade de Deus, punha nele toda a perfeição.
O homem mesmo antes do pecado original não estava destinado a viver na ociosidade, mas o trabalho era para ele um exercício livre a agradável. Depois da queda, Deus impôs ao homem o trabalho como expiação do pecado e, daí em diante, o trabalho teve anexo a si um sentimento de dor. Toda a pessoa capaz deve trabalhar para conservar a vida, para evitar a ociosidade, para promover o progresso da sociedade. Esta é a vontade de Deus. “ Faz parte do plano da Providência que cada um se aperfeiçoe mediante o seu trabalho quotidiano”.
São José santificou-se pelo cumprimento exemplar do seu dever de estado. E assim, como chefe de família, trabalha para alimentar os seus; como marido, em Belém procura um quarto para a esposa; como “pai virginal”, foge com o Menino para o Egipto para que Herodes não O mate; durante três dias, procura Jesus que se havia perdido; leva Jesus à Festa da Páscoa e ensina-lhe o ofício de carpinteiro.
Deus ao instituir a família – célula base de toda a sociedade – anexou-lhe direitos e deveres. Assim, os esposos devem-se o amor e o auxílio mútuos e a mútua fidelidade conjugal. Os filhos devem amar e respeitar os pais; devem obedecer às suas ordens justas de representantes de Deus junto deles. Os pais devem amar os filhos, cuidar da sua saúde física e moral, do seu alimento, da sua condição de vida. Devem instruir, corrigir, vigiar e dar bom exemplo aos filhos. Como estes deveres andam esquecidos, meus irmãos!...
São José santificou-se cumprindo o seu dever de cidadão. E assim, vai a Belém dar o nome para o recenseamento, obedecendo à autoridade civil que, então, mandava na Judeia – o Imperador Romano.
São Paulo adverte os cristãos de Roma que “ não há poder que não venha de Deus e os que existem foram ordenados por Deus. Aquele, pois, que resiste ao poder, resiste à ordem de Deus e os que resistem atraem sobre si a condenação” e ordena-lhes que “sejam submissos não só por temor mas por motivos de consciência e que se dê a cada um o que for devido: a quem o imposto, o imposto; a quem o temor, o temor; a quem a honra a honra.”
Deus assim como criou os anjos distintos e subordinados uns aos outros, assim como na Igreja institui vários graus de ordens e diferentes ministérios, assim determinou que na sociedade civil houvesse várias ordens, diferentes em dignidade e em poder, mas todas reciprocamente necessárias e empenhadas no bem comum.
A lei natural e cristã mandam respeitar aqueles que, em qualquer grau possuem autoridade no Estado e conformar-se com as suas ordens justas. Devemos cooperar no bem comum e contribuir para o progresso da sociedade em que Deus nos colocou.
São José santificou-se cumprindo os seus deveres de membro de uma sociedade religiosa – o Judaísmo. E assim, circuncida o Menino Jesus, vai ao templo todos os anos pela Festa da Páscoa.
Também nós pertencemos a uma sociedade religiosa bem mais perfeita, de que a Sinagoga era apenas figura. Pertencemos à Santa Igreja para a qual se entra, não já por um mero rito externo como no Judaísmo, mas por uma recreação, por uma incorporação vital a Cristo. Pelo nosso Baptismo, morremos com Cristo para o pecado e com Ele ressuscitamos para uma vida nova, para a Vida da Graça, tornamo-nos membros vivos da Igreja que é Cristo actual na História. Pertencemos ao Povo Santo, à Igreja dos Ressuscitados com Cristo, pertencemos ao Corpo Místico cuja cabeça é Jesus e cuja alma é o Espírito Santo.
Quis Deus que, nesse Corpo Místico, houvesse vários graus de Ordens e Ministérios, como diz S. Paulo, contribuindo todos para o mesmo fim: instauração do Reino de Deus e consequente salvação de todos os homens. Se nós devemos obediência ao poder civil, quanto mais a não devemos àqueles que Cristo constituiu directores do Seu Corpo Místico? Quando a Igreja fala é Cristo que nos fala, quando manda é Cristo que manda.
A Religião não se confine, para nós, a meia hora por domingo, mas sim a meia hora por cada trinta minutos.
Na medida em que nós nos santificarmos assim, nessa medida estamos a instaurar o Reino de Deus, estamos a contribuir para “ transformar o mundo de selvagem em humano e de humano em cristão” e, nessa mesma medida, estamos a assegurar a nossa Eterna Felicidade.

domingo, janeiro 07, 2007

A PROPÓSITO DA EXECUÇÃO DE SADDAM HUSSEIN

SERÁ A VIDA HUMANA INVIOLÁVEL?
Numa aula de Filosofia, aproveitei a condenação à morte de Saddam Hussein para exercitar a capacidade crítica dos meus alunos do 10º ano e distinguir a legalidade, objecto das ciências jurídicas, da questão da legitimidade, própria da actividade filosófica. “ Deverá Saddam Hussein ser executado?” “Quais os pressupostos em que fundamento a minha opinião?” “Qual a grande interrogação a que respondem os meus pressupostos?”
Depois de apresentarem as suas opiniões com a explicitação dos correspondentes fundamentos, chegaram à conclusão que a grande pergunta subjacente a todo este questionamento era: “o direito à vida será inviolável?”

A EXECUÇÃO DE SADDAM HUSSEIN
A execução de Saddam Hussein em 30 de Dezembro fez-me recordar esse debate.
No Ocidente, a condenação deste desfecho foi geral, excluindo-se a posição norte-americana” (JN, 31/12/06)

Devo confessar que também para mim este desfecho constituiu uma profunda desilusão pois queria acreditar que os governantes do Iraque já teriam assimilado valores fundamentais da cultura europeia e aproveitariam este ensejo para darem aos seus concidadãos e ao mundo um sinal de mudança naquela terra-mártir, berço de culturas e religiões. Penso, agora, que estava a pedir de mais a homens cujos padrões culturais, tal como os judeus, alicerçam na “lei de talião”(“olho por olho, dente por dente”) a convivência entre pessoas e povos. O que não posso compreender é a posição do presidente americano, um cristão que, tanta vezes, invoca o nome de Deus para apadrinhar as suas opções. Parece que não sabe que o cristianismo, uma das matrizes fundamentais da nossa cultura, veio introduzir o perdão no relacionamento humano e que o humanismo é um elemento fundante da democracia ocidental.
Não viso pôr em causa a legalidade do Tribunal que o condenou. Quero crer que julgou de acordo com as leis vigentes no Iraque e que teria dados indubitáveis que culpabilizavam Saddam pelo massacre de 148 xiitas em Dujail em 1982. Nem sequer questiono se este execrável ditador mereceria tal condenação. Como diziam os meus alunos, numa perspectiva mais radical, a morte seria castigo pequeno para quem cometeu tantos e tão grandes crimes contra inocentes. Nem sequer desculpo Saddam porque o seu objectivo seria solidificar as fundações do Estado Iraquiano e todos os Estados têm, nos seus alicerces, mortes, violências e carnificinas.
O que está em causa é uma questão civilizacional, são os valores subjacentes a uma democracia que vai para além de um “Estado de Direito”, num respeito total pela dignidade da pessoa humana.

PORTUGAL E A PENA DE MORTE
Na sequência desta desilusão, dei por mim a investigar a tradição portuguesa sobre a “Pena de Morte” que a nossa Constituição de 1976 consubstancia, afirmando a vida como um direito inviolável. Assim, comecei por consultar o Dicionário de História de Portugal, de Joel Serrão, que me diz:

Em Portugal, a pena de morte para os crimes políticos foi abolida pelo artigo 16.º do Acto Adicional à Carta Constitucional, sancionado por D. Maria II (1834-53) em 5 de Julho de 1852. No respeitante aos crimes civis, a sua abolição verificou-se no reinado de D. Luís (1861-89), através da reforma prisional e penal de 1 de Julho de 1867) (…) apesar de estar já praticamente abolida a pena de morte, que desde 1846 sempre fora comutada pelo poder moderador quando aplicada pelos tribunais

Já lá vão cerca de 150 anos que a pena de morte foi abolida em Portugal. Foi pois com agrado que vi uma afirmação de Matilde Sousa Franco, esposa do saudoso Dr. Sousa Franco: “ Ao longo dos séculos, Portugal tem tido a coragem de se afirmar a nível mundial pelo Humanismo, sendo pioneiro nas abolições da escravatura e da pena de morte.”(VP- 3 de Janeiro de 2007). E foi com algum sentimento de orgulho que li uma carta do grande romancista e pensador francês, Victor Hugo, em que ele afirma
De hoje em diante, Portugal está à frente da Europa”. Os primeiros!...
Nalguma coisa de bom haveríamos de ser os primeiros…

O PORTO E A PENA DE MORTE - SAMPAIO BRUNO
Como portuense, não resisto a realçar aqui a figura de Sampaio Bruno (1)
Para sintetizar o seu pensamento sobre a “pena de morte” socorro-me do “Congresso Internacional sobre Pensadores Portuenses - 1850-1950” organizado pelo Centro Regional do Porto da Universidade Católica que, no dizer do presidente da Comissão Científica, Arnaldo de Pinho, “integrado nas manifestações do “O Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura” (…) ficará a assinalar, para o futuro, um tempo de extraordinário relevo da vida cultural do Porto e do Norte em geral” e que, para mim, foi uma das mais notáveis realizações de “O Porto 20001” ( quase silenciada pela comunicação social…). Apresento alguns extractos da palestra de Manuel Gama sobre “Sampaio Bruno(1): O Filósofo e o Publicista”:
Igualmente, contra a pena de morte, o nosso filósofo e publicista expressa, com traço indelével, a sua luta e oposição. A acção literária de Victor Hugo fora fundamental na formação do sentimento da sua geração e “ na leitura de suas constantes protestações contra a pena de morte se fortalecia a instintiva repugnância de nós-outros para com práticas aflitivas e cruéis”, recorda ele. A agonia lenta do Último Dia de um Condenado causava-lhe arrepios. Das sensações aos princípios ia um passo. De entre estes, o da dignidade humana é valor seminal. Como deixara estampado n’A Voz Pública, a propósito da execução de Leão Czolgosz, assassino do presidente americano Mac-Kinley, “ a vida humana é inviolável e sagrada”
Daí o orgulho que sentia em que Portugal se encontrasse na senda do progresso moral, pela iniciativa, em 1867, da abolição da pena de morte. Satisfação tanto maior, embora simultaneamente dolorosa, quando nesse aspecto estávamos à frente da dita civilizada França. Depois, porque o grande Victor Hugo, em carta a Brito Aranha, emoldura mais esta dobragem dos navegadores intrépidos e que Bruno, com satisfação incontida, transcreve:


CARTA DE VICTO HUGO
A vossa nobre carta faz-me bater o coração. Eu sabia a grande nova; doce me é por vosso intermédio receber-lhe o eco simpático. Não; não há povos pequenos. Há pequenos homens, ai de nós! E algumas vezes são esses os que conduzem os grandes povos. Os povos que têm déspotas assemelham-se a leões que tivessem açaimes. Eu amo e glorifico o vosso belo e querido Portugal. Ele é livre; portanto, é grande. Portugal acaba de abolir a pena de morte. Consumar esse progresso é dar o grande passo da civilização. De hoje em diante, Portugal está à frente da Europa. Vós não haveis cessado de ser, portugueses, navegadores intrépidos. Avante outrora no Oceano, hoje na verdade. Proclamar princípios é mais belo ainda que descobrir mundos. Clamo: Glória a Portugal; e a vós-outro: em boa hora!”
(in “Portuenses Ilustres”, Sampaio Bruno)
Neste passo de gigante para o progresso moral, Sampaio Bruno rememora o relevante papel tido pelo deputado do círculo de Cedofeita, desta cidade do Porto, Aires de Gouveia. Desde 1863, este representante portuense nas Cortes encetara intensa campanha a favor desta causa, conforme excertos - que Bruno apresenta - das suas intervenções no Parlamento . (…)
Com tudo isto, o nome de António Aires de Gouveia fica ligado “ indissoluvelmente à abolição da pena de morte em Portugal, (e) um reflexo desta glória ilumina a terra em que ele nasceu.”
Para Sampaio Bruno a pena de morte é “imoral, improfícua, injusta e perigosa
( ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL PENSADORES PORTUENSES CONTEMPORÂNEOS 1850-1950), Vol II, pág. 25 e 26)

COMENTANDO...

De toda esta transcrição agrada-me destacar duas grandes afirmações de Sampaio Bruno:
a vida humana é inviolável e sagrada”
“ a pena de morte é “imoral, improfícua, injusta e perigosa”

Como teria reagido este humanista portuense se tivesse lido o que disse George W. Bush - Presidente dos EUA?
A execução de Saddam Hussein é um marco importante no caminho do Iraque rumo a uma democracia governável, auto-suficiente e com capacidade de defesa, que possa ser um aliado na guerra contra o terror”.
Quão traiçoeiras são as palavras! Uma democracia? Uma democracia alicerçada na intolerância, na vingança e na morte? Como se pode falar em democracia quando não se respeita a dignidade humana? Como pode respeitar os direitos humanos quem não observa o mais fundamental de todos os direitos, o direito a viver? É que a vida é o fundamento de todos os direitos humanos.

Senhor Presidente Bush, como estava certo Victor Hugo! “ Não; não há povos pequenos. Há pequenos homens, ai de nós! E algumas vezes são esses os que conduzem os grandes povos.”
Ai de nós quando “pequenos homens” têm na sua mão o poder de grandes nações!...
Razão tinha o nosso filósofo ao afirmar que a vida humana é inviolável e sagrada e que a pena de morte é
Imoral
Improfícua
Injusta
Perigosa.
Grande Sampaio Bruno, que magnífica síntese!...
E Sampaio Bruno, para afirmar que a vida humana é sagrada, nem sequer teve que invocar o cristianismo para quem a vida humana é um dom de Deus, ninguém nem o próprio é dono do que lhe foi dado gratuitamente por Deus. Bastou-lhe a sua consciência de humanista… que se fundamenta no respeito pela dignidade humana.
Se Sampaio Bruno se orgulhava de António Aires de Gouveia que está ligado “ indissoluvelmente à abolição da pena de morte em Portugal, ”, como eu me sinto lisonjeado por viver na cidade do Porto, terra em que ambos nasceram e viveram.



(1) - Sampaio Bruno – Nome literário do filósofo José Pereira de Sampaio (Porto 30.11.1857- ibid. 11.11.1915) adoptado em homenagem a Giordano Bruno. A sua participação na revolução republicana de 1891 obrigou-o a exilar-se em Paris (1891-1893). Embora haja tido papel relevante dentro do Partido Republicano, o carácter positivista que nele veio a dominar levou-o a afastar-se, primeiro, da disciplina partidária (1902) e, por fim, da própria política nacional (1911), desgostoso com os rumos que esta trilhava depois do 5 de Outubro, para se dedicar exclusivamente ao estudo e à reflexão sobre temas filosóficos e religiosos que desde sempre o preocuparam. (…) Extremamente sensível à realidade do mal (…) vai fazer dele o ponto de partida do seu pensamento. (…) Extraordinário escritor de feição barroca, exerceu incontestável magistério sobre a geração da “ Renascença Portuguesa”, em especial sobre Teixeira de Pascoaes, Teixeira Rego, Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra e o Fernando Pessoa da Mensagem – Braz Teixeira in Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura (É interessante realçar que o pensamento deste filósofo portuense mereceu ser contemplado com quatro conferências no Congresso Internacional de Pensadores Portuenses: “ O mal desde a obra a Sampaio Bruno” por Torres Queiruga (meu velho amigo galego e professor na Universidade de Santiago de Compostela, que me ofereceu o texto original da sua comunicação); “Sampaio Bruno: o filósofo e o publicista” por Manuel Gama; “ Da ontologia como patologia em Sampaio Bruno” por Rui Guilherme Lopo; “ Sampaio Bruno e o primeiro momento de reaproximação luso-brasileira” por António Paim)