SÃO SEBASTIÃO- COUTO DE ORNELAS
Hoje, dia 20 de Janeiro, manhã cedo, ainda na cama, ouvi foguetes. – “Festa? “- Ah, pois é… é o S. Sebastião em Rio Tinto. E lembrei-me do que, no domingo passado, me disseram os meus compadres de Braga sobre o que se estava a passar com a mais conhecida festa de S. Sebastião, no Couto de Ornelas na Região do Barroso. Depois, quando cheguei à minha “sala de leitura matinal”, encontrei, delicadezas de esposa, a Revista Visão-Sete, de 18-24 de Janeiro aberta na página 10/11, com o título “ A GÁLIA NÃO PÁRA – Couto de Ornelas vai estender a toalha para acolher os visitantes. Um quilómetro de fé… e barriga cheia.”
Li com interesse e mágoa… E resolvi transcrever parte dessa notícia.
“ Há alguns anos de candeias às avessas com a Igreja Católica, a organização da Festa de São Sebastião, em Couto de Ornelas (Boticas), decidiu, desta vez, pedir uma bênção protestante… em forma de protesto. “Ao padre da aldeia tínhamos de pagar 150 euros, por isso vamos pedir a um pastor da Igreja Evangélica para abençoar os alimentos”, revela, satisfeito, o presidente da Junta. (…)
Aqui chegados, resta dizer que a Associação Comunitária tem, este ano, para oferecer, mil metros de uma mesa coberta com toalhas de linho e recheada com mil broas de milho, 250 quilos de arroz e 500 quilos de carne de porco.
A novidade, garante, Xavier Barreto, presidente da Junta, é que, na véspera (dia 19, sexta-feira) se vai recuperar um hábito celta de uma queimada com direito a esconjuro. “Ou bem que somos gauleses… ou não somos”
Faz hoje precisamente dezasseis anos, também era um sábado, eu, a Anita, os dois filhos, João e José, e um grupo de amigos de Cabeceiras de Basto fomos à festa de S. Sebastião, no Couto de Ornelas. Dessa experiência nasceu uma descrição/reflexão que foi publicada na Revista Água Mole – Revista de Cultura Popular, em Maio de 1991.
Porque o meu amigo e compadre José Machado, com o mestrado em Cultura Portuguesa e investigador da cultura popular, simpaticamente me disse que “ o teu artigo continua a ser paradigmático para estas coisas”, decidi relê-lo. Ao ver como ele chocava com a visão subjacente à notícia, resolvi transcrever o núcleo descritivo e ideológico deste artigo, remetendo para anexo a sua parte introdutória.
NA ROTA DO DIFERENTE
EMERGÊNCIA DO HOMEM SIMBÓLICO
“ Assim como a natureza é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos, obra de Deus, assim o homem moderno profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana. Mas isto quer dizer que o homem a-religioso se constitui por oposição ao seu predecessor, o homo religiosus, esforçando-se por se esvaziar de toda a religiosidade e de toda a significação trans-humana (…) Por outras palavras, o homem profano, queira ou não, conserva ainda vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado das significações religiosas. Faça o que fizer, é um herdeiro. (…)”
Mircea Eliade . O Sagrado e o Profano
“ O Homem Moderno é também sacramental. Não cremos que o homem moderno tenha perdido o sentido pelo simbólico e pelo sacramental. Ele é também homem, como outros de outros quadros culturais e, por isso também é produtor de símbolos expressivos da sua interioridade e capaz de decifrar o sentido simbólico do mundo.
Talvez ele se tenha feito cego e surdo a um certo tipo de símbolos e ritos sacramentais que se esclerosaram ou se tornaram anacrónicos.”
Leonardo Boff, Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos
(1)
Continuámos a descer. Um tractor atravessado no caminho impedia a passagem dos carros. Era o sinal. Há que estacionar e seguir a pé. As garrafas de vinho (até um garrafão) escondiam-se muito tímidas nos cestos retirados dos carros, acompanhados por pratos e garfos. (É que o vinho não faz parte da mesinha e os talheres, cada qual leva os seus). Em grupo, caminhámos para a aldeia. Estávamos a umas boas dezenas de metros do largo e já, no meio do caminho, estavam dispostas as mesas, baixinhas, constituídas por uma tábua irregular com uns 30 centímetros de largura.
O som estridente de um altifalante que debitava canções anglo-saxónicas punha uma nota de contraste na pacatez, na medievalidade do ambiente. Era uma camioneta com artigos de vestuário; mais adiante uma outra, adaptada, expondo fogões de lenha.
De momento estranhei. Depois… comentei com o amigo que me acompanhava. Lembrámos que sempre a romaria e a feira andaram de mãos dadas, É a globalidade, o sincretismo próprio do mundo rural onde o sagrado e o profano se confundem. É um tipo de organização espácio-temporal estranho à especialização dos meios urbanos. É assim.
Seguimos. Indicaram-nos a casa onde o mordomo guardava o pão e se cozia o arroz. Fomos recebidos como pessoas da casa. Ao redor de uma grande fogueira, o arroz borbulhava, apetitoso, dentro de enormes panelas de ferro, de três pernas. Estava a ser cozido na água onde já se cozera a carne. Levaram-nos a ver a sala onde, religiosamente se guardavam as 420 broas de pão que levaram três dias e duas noites a serem cozidas.
Quanto trabalho! Quantas canseiras! Quem paga tudo isto? As canseiras ninguém as paga. Subsídios não há. Anualmente, é escolhido um mordomo, que arca com toda a responsabilidade. A tradição é senhora. Os vizinhos oferecem farinha e colaboram no trabalho. Recebem-se donativos das pessoas que vêm à festa. Se não chegar, o mordomo aguenta com as despesas.
Animados com o calor da fogueira e a amizade do acolhimento, saímos para o largo da aldeia. Os forasteiros perguntavam. Os locais falavam da tradição. As máquinas fotográficas registavam as imagens, timidamente, na presença das câmaras-vídeo, orgulhosas na sua modernidade, a exigirem um ritual de deferência. Eram os contrastes construindo a unidade.
O sino do campanário chamou. A missa em honra de S. Sebastião ia começar. Poucos responderam ao seu apelo. A igreja, pequenina, vestira-se de festa. Chamou a todos mas nem a todos poderia acolher. Mas chegou…
Ainda a missa decorria e já as pessoas se dispunham ao longo da mesa onde iria ser servido o alimento. Buscavam o pão, não dentro da igreja, mas cá fora, ao ar livre. Duas formas de sacramentalidade. Como diz Leonardo Boff, na obra já referida, “ tudo é sacramento ou pode tornar-se. Depende do homem e do seu olhar. Se ele olhar humanamente, relacionando-se, deixando que o mundo entre dentro dele e se torne o seu mundo, nesta medida o mundo revela a sua sacramentalidade (…) O mundo todo e não apenas uma parte dele será sua pátria amiga e familiar, onde mora a fraternidade e vive a tranquilidade da ordem de todas as coisas”
Terminada a missa, o sacerdote, em procissão, com o santo foi benzer a mesinha (pão, arroz e carne de porco) que depois será partilhada por todos e levada para casa, para os animais domésticos. Foi o rito da bênção. Poucos o acompanharam. Já toda a gente ladeava a mesa da refeição. Eram mais de três mil pessoas, ao longo de muitas dezenas de mesas. Foi um frente a frente, amigo e fraterno. Mais que diálogo aconteceu “polilogo”…
A conversa fez-se murmúrio. Todos se afastaram da mesa. A cerimónia ia começar. Tudo segundo as rubricas. O eterno ontem faz-se presente. Há ritmo. Há gestos que têm que ser religiosamente cumpridos. Sem atropelos. É o rito a impor o como antigamente.
Primeiro, a toalha de linho é desenrolada por sobre a mesa. De seguida, a vara mede as distâncias. A broa de pão é colocada no espaço de uma vara (pão que não abolece…). A escudela do arroz é deposta em cima da broa. Finalmente, junto da broa, coloca-se o prato com a carne. A refeição estava servida.
O ritual terminou? Um forasteiro, não habituado a este cerimonial, já se apressava a partir a boroa, quando alguém o admoestou: “ não se pode tocar no pão antes do santo passar”. E o potencial transgressor, envergonhado com a sua ignorância ritual, guardou o canivete que, extemporaneamente, abrira. E aguardámos o clímax do rito. Finalmente, o santo vai passar. As pessoas compõem a postura. Há solenidade nos gestos. O mordomo vai passando, ao longo das mesas, dando o santo a beijar. Atrás, vinha o rapaz do cesto para os devotos/turistas deporem a sua oferta. O mordomo, consciente desta ambiguidade ia prevenindo: “ se não quiserem beijar o santo, não beijem, mas, por favor, não esqueçam a oferta.” Uns beijavam, outros depunham a oferta, outros, ainda, beijavam e ofereciam. Era o relativizar dos ritos. Todos queriam significar a sua participação. Ninguém queria sentir-se estranho. Era o sentimento de pertença, expresso em diferentes gestos de identificação…
Depois, bem, depois foi o partilhar. Parecíamos crianças ávidas. Ávidas de quê? De alimentos? De significação. “ O homem tem o poder extraordinário de fazer de um objecto um símbolo e de uma acção um rito”, define L. Boff. A capacidade simbólica é especificamente humana. As coisas não valem só por si, não têm apenas uma realidade imanente. Através delas, o homem vê para além dela. Têm uma transparência para a transcendência.
Os alimentos postos à nossa frente não esgotavam em si o seu valor. Faziam apelo a outras realidades. Tinham polivalência. Era a memória individual de cada um. Era a memória colectiva de um povo, a memória cultural. Aqueles alimentos apelavam à fraternidade, ao comunitarismo Mais do que partilhar, íamos compartilhar.
Cada um procurava servir o outro. Oferecia o melhor. Cada qual queria que o outro provasse do seu vinho. O verde de Cabeceiras conviveu com o maduro de Valpaços. Foram momentos de verdadeira irmandade. A cidade e o campo, o litoral e o interior, o religioso e o a-religioso, conviveram, trocaram experiências, fizeram amizade. Encontraram uma vivência comum.
No mesmo rito, convergiam diferentes mitos. O homem simbólico criava a unidade na diversidade.
O que atraiu ali aqueles milhares de pessoas, vindas de terras bem distantes? O que deu significação a uma pequena aldeia, perdida no Barroso? O que fez dela uma unidade significativa? A fé? A cultura? Para além de tudo e sob-tudo, o simbólico.
Objecto entre objectos, numa civilização de objectos, o homem procura emancipar-se como sujeito. É uma necessidade de um equilíbrio psicológico e uma exigência da sua dignidade ontológica. Para além dos objectos, o homem constrói significações, cria distanciações. Afasta-se do quotidiano e do presente que o limita e, por vezes, sufoca. Recorre ao simbólico. Para isso, a Festa. Ela faz parte integrante do Mito. Reintroduz o passado descontínuo na continuidade do presente. Reactualiza os tempos primordiais que falam de segurança, de paz, de fraternidade. Torna o homem contemporâneo dos seus antepassados. E daí, a rigidez do rito. A Festa é o passado bom e feliz, eternamente presente. Psicologicamente, o homem precisa da Festa. Não aguenta o constantemente igual. A Festa é a libertação, o diferente, o cíclico em função do qual o quotidiano ganha significação.
É a emergência do homem simbólico que explica este interesse pelas manifestações culturais.
É a memória colectiva de um povo que se revê e dá significação aos seus ritos.
Neste final do século XX, o homem produtor de símbolos procura sobrepor-se ao homem fazedor de objectos. Mas, cuidado… Como diz Fernando Namora “ No novo mundo que se gera sob os nossos olhos espavoridos só existe mudança. (…) Temos de aprender a viver a precaridade” ( Rio Triste). A sociedade de consumo procura impor-nos símbolos, para assim nos vender objectos. O homem deixa de ser produtor para se transformar em consumidor de mitos. Assistimos à fugacidade dos ritos sem a face organizativa da vida. O mito faz-se para ser consumido. Daí a sua precaridade. “ Deveremos considerar essa implacável fugacidade a quinta-essência do Terror? Temos de enfrentá-la e nunca fugir-lhe” ( Rio Triste)
Apetece-me concluir com Edgar Morin:
“ Não podemos escapar aos mitos. O problema para nós é o de conhecer nos mitos a sua realidade e não a realidade. É o de reconhecer a sua verdade e não a verdade. Não ver neles o absoluto. E ver o poder de ilusão que eles escondem sem cessar, e que pode cobrir a sua verdade” ( Pour sortir du vingtième siècle)
Ao tomar conhecimento das alterações que se verificaram na celebração de Couto de Ornelas, dei-me conta da observação de Mircea Eliade quando afirma que o homem profano conserva o comportamento do homem religioso mas esvaziado das significações religiosas e pus em causa Leonard Boff será o homem capaz de decifrar o sentido simbólico do mundo? E confirmei o que timidamente escrevera há 16 anos: “A sociedade de consumo procura impor-nos símbolos, para assim nos vender objectos. O homem deixa de ser produtor para se transformar em consumidor de mitos. Assistimos à fugacidade dos ritos sem a face organizativa da vida. O mito faz-se para ser consumido. Daí a sua precaridade. “
O que está a acontecer em Couto de Ornelas não é um mero conflito entre detentores/proprietários do poder. É bem pior. É o simbólico que desaparece. O rito mantém-se mas esvaziado de toda a sua significação de interioridade e de transcendência. Esta perversão não acontece apenas por parte dos organizadores mas também, segundo me dizem, por parte dos participantes.
As forças que alimentam os ritos estão a ser totalmente subvertidas. Como se pode fazer experiência da fraternidade universal quando os organizadores se degladiam, quando os participantes desprezam os ritos e se atiram aos seus fartos farnéis que não compartilham, usurpando a mesa que é sinal de refeição comunitária?
Como se pode respeitar o carácter do “eterno ontem” próprio dos ritos, quando se introduzem alterações totalmente desenquadradas do contexto celebrativo do rito? Que tem a queimada a ver com o rito/mito de S. Sebastião? É a sociedade de consumo a ditar as suas regras. O que importa é acrescentar mais um número ao espectáculo para trair os forasteiros que, sem qualquer sensibilidade cultural, vão divertir-se com os “índios na reserva” e comer à custa deles – “ barriga cheia”.
Os organizadores se ouvissem a voz autêntica do povo não cometeriam tais atrocidades à memória de um povo. Este verdadeiro genocídio cultural está a verificar-se por todo o Barroso. E o povo mais autêntico apercebe-se disto e não gosta. A este propósito, cito uma frase dita por José Martins, um dos organizadores da festa de S. Sebastião nas Alturas: “ Antigamente, dava-se só pão e vinho, mas, agora, com as modernices começámos a dar feijoada”, explicava, com a testa banhada em suor,”(JN- 22 de Janeiro de 2006). O povo sabe que “as modernices” estragam o verdadeiro espírito da celebração. É curiosa a forma como se inicia essa notícia: “ Não se empurrem! Tenham calma! Isto chega para todos!” “Isto” é um prato de feijoada, um canto de trigo e um copo de vinho, o menu que a multidão desordenada tentava alcançar, no interior de um armazém, em Alturas do Barroso em Boticas.” (…) “Só é pena a confusão à entrada”, lamentava-se uma mulher de Famalicão. Ao seu lado, um idoso, quase sem dentes, queixava-se de que os feijões estavam rijos”. Como isto contrasta com o que se vivia no Couto de Ornelas, há 16 anos:” As pessoas compõem a postura. Há solenidade nos gestos.” Agora é a banalização dos rito. É tudo igual, o que importa é encher a barriga…
Meus senhores do Barroso, deixem-se de conflitos e procurem salvar o S. Sebastião do Barroso. Os vossos antepassados merecem-no, a vossa memória cultural o exige. Deixem de lado a disputa dos princípios teóricos onde cada um terá as suas razões de divergência e ponham-se de acordo nos princípios práticos para salvar a vossa configuração cultural. Não alterem só para atrair forasteiros. Mantenham-se fiéis às vossas tradições e os visitantes aparecerão, não aqueles que querem ir comer à custa do vosso suor mas aqueles que querem partilhar convosco um rito de fraternidade
Apetece-me transcrever algumas passagens do discurso que o filósofo francês, Jacques Maritain, fez na Unesco, em 1947.
“ Nunca os espíritos estiveram tão profunda, tão cruelmente divididos (…) Nestas condições, como pode conceber-se um comum acordo de pensamento? (…) O acordo pode fazer-se não sobre um comum pensamento especulativo, mas sobre um comum pensamento prático ; não sobre a afirmação de uma mesma concepção do mundo, do homem e do conhecimento, mas sobre a afirmação de um mesmo conjunto de convicções orientadoras da acção. Isto é pouco sem dúvida; é o último reduto do acordo dos espíritos.(…)
Eu estou persuadido de que a minha maneira de justificar a crença nos direitos do homem (…) é a única assente numa fundamentação verdadeira. Isso não me impede de estar de acordo, sobre essas convicções práticas, com aqueles que estão persuadidos de que a sua maneira de as justificar, diferente da minha ou oposta à minha no seu dinamismo teórico, é também a única verdadeira. Se ambos acreditam na carta democrática, um cristão e um racionalista darão, dela, justificações incompatíveis entre si(…). Mas sucede que, relativamente à afirmação prática dessa carta, eles estão de acordo e podem formular em conjunto princípios comuns de acção. (…) Nesses limites, há e deve haver entre eles um acordo.”
Amigos Barrosãos, sois herdeiros de uma cultura que merece o respeito de todos os que vos conhecem. Deixem-se de conflitos para ver quem tem razão. Deixem-se disso e interroguem-se que Barroso querem deixar aos vossos vindouros? Um Barroso genuíno como aquele que os vosso pais vos legaram ou um Barroso descaracterizado e sem qualquer identidade cultural? Não maltratem um tesouro que levou séculos a amealhar… Quem querem que vos visite? Aqueles que sabem respeitar as vossas particularidades culturais, vos agradecem o testemunho de um comunitarismo em vias de extinção, vos pedem que os aceiteis na celebração dos vossos ritos, vos admiram pelo respeito que mostrais pelas vossas tradições ? Ou aqueles que vão, como alarves esfomeados, sem qualquer respeito pelas vossas tradições, sem qualquer sentido de partilha ou pertença, sem qualquer sensibilidade cultural, encher a barriga com os alimentos que tanto vos custam e, no fim, ainda se julgam no direito de se queixaremm de que “os feijões estão rijos”? Por amor de Deus, deixem-se de alimentar gratuitamente quem não precisa até porque andam centenas de quilómetros só para comerem à vossa custa. Isto não é cumprir a primeira das obras de misericórdia, “ dar de comer a quem tem fome!. Não, eles não têm fome.
“ Levantámo-nos às 5 horas, já lá vão 150 quilos de arroz, garantia uma mulher, limpando o rosto. Dá muito trabalho e não ganhamos nada! Mas a devoção ao santo também vale! Acrescenta outra “cozinheira”. A meio da tarde, além dos 150 quilos de arroz, já tinha sido cozido 3000 quilos de feijão (…) 300 broas de centeio, três mil carcaças, dois mil cantos de trigo e 600 litros de vinho”. Em Couto de Ornelas, a Visão fala em mil broas de milho, 250 quilos de arroz e 500 quilos de carne de porco.
“ O santo também vale”.Mas será que a maioria dessas pessoas que não respeitam os vossos ritos, que ignoram e até escarnecem dos vossos mitos, merecem tanta despesa, tanto trabalho, tanta canseira? Será que o santo se sentirá honrado? Não, assim, não.
Por favor, ponham-se acordo em pensamentos práticos sobre o modo de actuar que alimente os vossos valores, engrandeça as vossas tradições, respeite os vossos antepassados e nós, homens da cidade, que, mais do que de pão, temos fome de significações, agradeceremos e iremos partilhar convosco os vossos ritos, num respeito total pela verdadeira e autêntica cultura barrosã. Por favor, não matem nem deixem morrer o Barroso.
Anexo (1)
Era o dia 19 de Janeiro, sexta-feira.
O Inverno, que fizera transbordar os rios, geava agora os campos e os caminhos, tornando perigosa a viagem pelas estradas montanhosas do interior.
A noite caíra e o trabalho chegou ao fim. Foi só tempo de ir a casa, meter a mala no carro, aguardar a chegada dos filhos da natação e do karaté, e abalar em busca de um fim de semana diferente. Aldeão, radicado há muito na cidade, partia à procura da aldeia, não a minha, que essa fora absorvida pela grande cidade: as pessoas já não se tratam por “tios” e a vivência comunitária, corporizada nos moinhos e “engenhos” de “consortes” e na partilha do “crescente”, esvaiu-se na memória. Resta o mito.
Os relógios indicavam as 19,30, quando o carro arrancou rumo a Cabeceiras de basto.
- Pai, há festa em casa dos amigos de Cabeceiras? – perguntou o filho mais novo, nos seus dez anos curiosos e interrogativos. – Sim, vamos a uma Festa, expliquei, não em casa dos amigos, mas em terras do Barroso. Como peregrinos do passado, pernoitaremos durante a viagem, em Cabeceiras- - Festa em honra de quem? – quis saber o filho. – Uma festa no Couto de Ornelas, em Boticas, em honra de São Sebastião, que é advogado contra a peste, a fome e a guerra, esclareceu a mãe. – Por isso, confirmou o filho, eu li que no tempo da Peste Negra, as pessoas rezavam a S. Roque e a S. Sebastião.
E cantávamos um hino popular, aprendido nos meus tempos de adolescência:
“ Herói mulitar, Capitão valoroso,
Livrai-nos da péstia, Sebastião milagroso.
E auspois desta vida, levai-nos pró céu,
A gozar da internidade, bem juntinho de Deus…”
Os quilómetros passaram. Chegámos à Faia, em Cabeceiras de Basto, onde os amigos nos esperavam. Deu-se convívio ao redor da lareira. O fogo crepitava…crepitava… O fogo!... Que fascínio! Que magia! Quantos pensamentos! Quantas emoções! Quanta reminiscência da infância!
Depois fez-se silêncio. Um silêncio telúrico que vinha do coração da terra e nos transportava às profundidades do tempo.
Manhã cedo, foi o despertar. Com os amigos da casa e outros que se nos juntaram partimos, rumo ao Barroso. Atravessámos a povoação de Salto, onde já se festejava S. Sebastião, embora a mesinha ( pão e vinho) só fosse partilhada às quatro da tarde. Seguimos pela nova estrada que liga a Boticas (“é uma auto-estrada!”- dissera-me um amigo) Realmente a surpresa é grande: o panorama é de pasmar, o tapete da estrada causa inveja a muitas auto-estradas. Confortados com as delícias desta estrada, desviámos para o Couto: era um estradão onde os buracos aconselhavam prudência. Foi uma nova habituação. Um carro businava atrás de nós.
“Que passe! Vai com pressa! Pensa que ainda vem na estrada!...” Um apressado? O carro ultrapassa-nos. Dentro acenavam. Era um grupo de amigos de Braga. Ficámos radiantes. Parámos. Foi uma festa! Vinham de Cerdedo, onde participaram na festa de S. Sebastião. A missa fora às nove da manhã. A mesinha era pão, carne e vinho. O pão que traziam foi logo repartido por todos, ali em plena serra. Aconteceu rito, fez-se celebração.
Li com interesse e mágoa… E resolvi transcrever parte dessa notícia.
“ Há alguns anos de candeias às avessas com a Igreja Católica, a organização da Festa de São Sebastião, em Couto de Ornelas (Boticas), decidiu, desta vez, pedir uma bênção protestante… em forma de protesto. “Ao padre da aldeia tínhamos de pagar 150 euros, por isso vamos pedir a um pastor da Igreja Evangélica para abençoar os alimentos”, revela, satisfeito, o presidente da Junta. (…)
Aqui chegados, resta dizer que a Associação Comunitária tem, este ano, para oferecer, mil metros de uma mesa coberta com toalhas de linho e recheada com mil broas de milho, 250 quilos de arroz e 500 quilos de carne de porco.
A novidade, garante, Xavier Barreto, presidente da Junta, é que, na véspera (dia 19, sexta-feira) se vai recuperar um hábito celta de uma queimada com direito a esconjuro. “Ou bem que somos gauleses… ou não somos”
Faz hoje precisamente dezasseis anos, também era um sábado, eu, a Anita, os dois filhos, João e José, e um grupo de amigos de Cabeceiras de Basto fomos à festa de S. Sebastião, no Couto de Ornelas. Dessa experiência nasceu uma descrição/reflexão que foi publicada na Revista Água Mole – Revista de Cultura Popular, em Maio de 1991.
Porque o meu amigo e compadre José Machado, com o mestrado em Cultura Portuguesa e investigador da cultura popular, simpaticamente me disse que “ o teu artigo continua a ser paradigmático para estas coisas”, decidi relê-lo. Ao ver como ele chocava com a visão subjacente à notícia, resolvi transcrever o núcleo descritivo e ideológico deste artigo, remetendo para anexo a sua parte introdutória.
NA ROTA DO DIFERENTE
EMERGÊNCIA DO HOMEM SIMBÓLICO
“ Assim como a natureza é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos, obra de Deus, assim o homem moderno profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana. Mas isto quer dizer que o homem a-religioso se constitui por oposição ao seu predecessor, o homo religiosus, esforçando-se por se esvaziar de toda a religiosidade e de toda a significação trans-humana (…) Por outras palavras, o homem profano, queira ou não, conserva ainda vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado das significações religiosas. Faça o que fizer, é um herdeiro. (…)”
Mircea Eliade . O Sagrado e o Profano
“ O Homem Moderno é também sacramental. Não cremos que o homem moderno tenha perdido o sentido pelo simbólico e pelo sacramental. Ele é também homem, como outros de outros quadros culturais e, por isso também é produtor de símbolos expressivos da sua interioridade e capaz de decifrar o sentido simbólico do mundo.
Talvez ele se tenha feito cego e surdo a um certo tipo de símbolos e ritos sacramentais que se esclerosaram ou se tornaram anacrónicos.”
Leonardo Boff, Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos
(1)
Continuámos a descer. Um tractor atravessado no caminho impedia a passagem dos carros. Era o sinal. Há que estacionar e seguir a pé. As garrafas de vinho (até um garrafão) escondiam-se muito tímidas nos cestos retirados dos carros, acompanhados por pratos e garfos. (É que o vinho não faz parte da mesinha e os talheres, cada qual leva os seus). Em grupo, caminhámos para a aldeia. Estávamos a umas boas dezenas de metros do largo e já, no meio do caminho, estavam dispostas as mesas, baixinhas, constituídas por uma tábua irregular com uns 30 centímetros de largura.
O som estridente de um altifalante que debitava canções anglo-saxónicas punha uma nota de contraste na pacatez, na medievalidade do ambiente. Era uma camioneta com artigos de vestuário; mais adiante uma outra, adaptada, expondo fogões de lenha.
De momento estranhei. Depois… comentei com o amigo que me acompanhava. Lembrámos que sempre a romaria e a feira andaram de mãos dadas, É a globalidade, o sincretismo próprio do mundo rural onde o sagrado e o profano se confundem. É um tipo de organização espácio-temporal estranho à especialização dos meios urbanos. É assim.
Seguimos. Indicaram-nos a casa onde o mordomo guardava o pão e se cozia o arroz. Fomos recebidos como pessoas da casa. Ao redor de uma grande fogueira, o arroz borbulhava, apetitoso, dentro de enormes panelas de ferro, de três pernas. Estava a ser cozido na água onde já se cozera a carne. Levaram-nos a ver a sala onde, religiosamente se guardavam as 420 broas de pão que levaram três dias e duas noites a serem cozidas.
Quanto trabalho! Quantas canseiras! Quem paga tudo isto? As canseiras ninguém as paga. Subsídios não há. Anualmente, é escolhido um mordomo, que arca com toda a responsabilidade. A tradição é senhora. Os vizinhos oferecem farinha e colaboram no trabalho. Recebem-se donativos das pessoas que vêm à festa. Se não chegar, o mordomo aguenta com as despesas.
Animados com o calor da fogueira e a amizade do acolhimento, saímos para o largo da aldeia. Os forasteiros perguntavam. Os locais falavam da tradição. As máquinas fotográficas registavam as imagens, timidamente, na presença das câmaras-vídeo, orgulhosas na sua modernidade, a exigirem um ritual de deferência. Eram os contrastes construindo a unidade.
O sino do campanário chamou. A missa em honra de S. Sebastião ia começar. Poucos responderam ao seu apelo. A igreja, pequenina, vestira-se de festa. Chamou a todos mas nem a todos poderia acolher. Mas chegou…
Ainda a missa decorria e já as pessoas se dispunham ao longo da mesa onde iria ser servido o alimento. Buscavam o pão, não dentro da igreja, mas cá fora, ao ar livre. Duas formas de sacramentalidade. Como diz Leonardo Boff, na obra já referida, “ tudo é sacramento ou pode tornar-se. Depende do homem e do seu olhar. Se ele olhar humanamente, relacionando-se, deixando que o mundo entre dentro dele e se torne o seu mundo, nesta medida o mundo revela a sua sacramentalidade (…) O mundo todo e não apenas uma parte dele será sua pátria amiga e familiar, onde mora a fraternidade e vive a tranquilidade da ordem de todas as coisas”
Terminada a missa, o sacerdote, em procissão, com o santo foi benzer a mesinha (pão, arroz e carne de porco) que depois será partilhada por todos e levada para casa, para os animais domésticos. Foi o rito da bênção. Poucos o acompanharam. Já toda a gente ladeava a mesa da refeição. Eram mais de três mil pessoas, ao longo de muitas dezenas de mesas. Foi um frente a frente, amigo e fraterno. Mais que diálogo aconteceu “polilogo”…
A conversa fez-se murmúrio. Todos se afastaram da mesa. A cerimónia ia começar. Tudo segundo as rubricas. O eterno ontem faz-se presente. Há ritmo. Há gestos que têm que ser religiosamente cumpridos. Sem atropelos. É o rito a impor o como antigamente.
Primeiro, a toalha de linho é desenrolada por sobre a mesa. De seguida, a vara mede as distâncias. A broa de pão é colocada no espaço de uma vara (pão que não abolece…). A escudela do arroz é deposta em cima da broa. Finalmente, junto da broa, coloca-se o prato com a carne. A refeição estava servida.
O ritual terminou? Um forasteiro, não habituado a este cerimonial, já se apressava a partir a boroa, quando alguém o admoestou: “ não se pode tocar no pão antes do santo passar”. E o potencial transgressor, envergonhado com a sua ignorância ritual, guardou o canivete que, extemporaneamente, abrira. E aguardámos o clímax do rito. Finalmente, o santo vai passar. As pessoas compõem a postura. Há solenidade nos gestos. O mordomo vai passando, ao longo das mesas, dando o santo a beijar. Atrás, vinha o rapaz do cesto para os devotos/turistas deporem a sua oferta. O mordomo, consciente desta ambiguidade ia prevenindo: “ se não quiserem beijar o santo, não beijem, mas, por favor, não esqueçam a oferta.” Uns beijavam, outros depunham a oferta, outros, ainda, beijavam e ofereciam. Era o relativizar dos ritos. Todos queriam significar a sua participação. Ninguém queria sentir-se estranho. Era o sentimento de pertença, expresso em diferentes gestos de identificação…
Depois, bem, depois foi o partilhar. Parecíamos crianças ávidas. Ávidas de quê? De alimentos? De significação. “ O homem tem o poder extraordinário de fazer de um objecto um símbolo e de uma acção um rito”, define L. Boff. A capacidade simbólica é especificamente humana. As coisas não valem só por si, não têm apenas uma realidade imanente. Através delas, o homem vê para além dela. Têm uma transparência para a transcendência.
Os alimentos postos à nossa frente não esgotavam em si o seu valor. Faziam apelo a outras realidades. Tinham polivalência. Era a memória individual de cada um. Era a memória colectiva de um povo, a memória cultural. Aqueles alimentos apelavam à fraternidade, ao comunitarismo Mais do que partilhar, íamos compartilhar.
Cada um procurava servir o outro. Oferecia o melhor. Cada qual queria que o outro provasse do seu vinho. O verde de Cabeceiras conviveu com o maduro de Valpaços. Foram momentos de verdadeira irmandade. A cidade e o campo, o litoral e o interior, o religioso e o a-religioso, conviveram, trocaram experiências, fizeram amizade. Encontraram uma vivência comum.
No mesmo rito, convergiam diferentes mitos. O homem simbólico criava a unidade na diversidade.
O que atraiu ali aqueles milhares de pessoas, vindas de terras bem distantes? O que deu significação a uma pequena aldeia, perdida no Barroso? O que fez dela uma unidade significativa? A fé? A cultura? Para além de tudo e sob-tudo, o simbólico.
Objecto entre objectos, numa civilização de objectos, o homem procura emancipar-se como sujeito. É uma necessidade de um equilíbrio psicológico e uma exigência da sua dignidade ontológica. Para além dos objectos, o homem constrói significações, cria distanciações. Afasta-se do quotidiano e do presente que o limita e, por vezes, sufoca. Recorre ao simbólico. Para isso, a Festa. Ela faz parte integrante do Mito. Reintroduz o passado descontínuo na continuidade do presente. Reactualiza os tempos primordiais que falam de segurança, de paz, de fraternidade. Torna o homem contemporâneo dos seus antepassados. E daí, a rigidez do rito. A Festa é o passado bom e feliz, eternamente presente. Psicologicamente, o homem precisa da Festa. Não aguenta o constantemente igual. A Festa é a libertação, o diferente, o cíclico em função do qual o quotidiano ganha significação.
É a emergência do homem simbólico que explica este interesse pelas manifestações culturais.
É a memória colectiva de um povo que se revê e dá significação aos seus ritos.
Neste final do século XX, o homem produtor de símbolos procura sobrepor-se ao homem fazedor de objectos. Mas, cuidado… Como diz Fernando Namora “ No novo mundo que se gera sob os nossos olhos espavoridos só existe mudança. (…) Temos de aprender a viver a precaridade” ( Rio Triste). A sociedade de consumo procura impor-nos símbolos, para assim nos vender objectos. O homem deixa de ser produtor para se transformar em consumidor de mitos. Assistimos à fugacidade dos ritos sem a face organizativa da vida. O mito faz-se para ser consumido. Daí a sua precaridade. “ Deveremos considerar essa implacável fugacidade a quinta-essência do Terror? Temos de enfrentá-la e nunca fugir-lhe” ( Rio Triste)
Apetece-me concluir com Edgar Morin:
“ Não podemos escapar aos mitos. O problema para nós é o de conhecer nos mitos a sua realidade e não a realidade. É o de reconhecer a sua verdade e não a verdade. Não ver neles o absoluto. E ver o poder de ilusão que eles escondem sem cessar, e que pode cobrir a sua verdade” ( Pour sortir du vingtième siècle)
Ao tomar conhecimento das alterações que se verificaram na celebração de Couto de Ornelas, dei-me conta da observação de Mircea Eliade quando afirma que o homem profano conserva o comportamento do homem religioso mas esvaziado das significações religiosas e pus em causa Leonard Boff será o homem capaz de decifrar o sentido simbólico do mundo? E confirmei o que timidamente escrevera há 16 anos: “A sociedade de consumo procura impor-nos símbolos, para assim nos vender objectos. O homem deixa de ser produtor para se transformar em consumidor de mitos. Assistimos à fugacidade dos ritos sem a face organizativa da vida. O mito faz-se para ser consumido. Daí a sua precaridade. “
O que está a acontecer em Couto de Ornelas não é um mero conflito entre detentores/proprietários do poder. É bem pior. É o simbólico que desaparece. O rito mantém-se mas esvaziado de toda a sua significação de interioridade e de transcendência. Esta perversão não acontece apenas por parte dos organizadores mas também, segundo me dizem, por parte dos participantes.
As forças que alimentam os ritos estão a ser totalmente subvertidas. Como se pode fazer experiência da fraternidade universal quando os organizadores se degladiam, quando os participantes desprezam os ritos e se atiram aos seus fartos farnéis que não compartilham, usurpando a mesa que é sinal de refeição comunitária?
Como se pode respeitar o carácter do “eterno ontem” próprio dos ritos, quando se introduzem alterações totalmente desenquadradas do contexto celebrativo do rito? Que tem a queimada a ver com o rito/mito de S. Sebastião? É a sociedade de consumo a ditar as suas regras. O que importa é acrescentar mais um número ao espectáculo para trair os forasteiros que, sem qualquer sensibilidade cultural, vão divertir-se com os “índios na reserva” e comer à custa deles – “ barriga cheia”.
Os organizadores se ouvissem a voz autêntica do povo não cometeriam tais atrocidades à memória de um povo. Este verdadeiro genocídio cultural está a verificar-se por todo o Barroso. E o povo mais autêntico apercebe-se disto e não gosta. A este propósito, cito uma frase dita por José Martins, um dos organizadores da festa de S. Sebastião nas Alturas: “ Antigamente, dava-se só pão e vinho, mas, agora, com as modernices começámos a dar feijoada”, explicava, com a testa banhada em suor,”(JN- 22 de Janeiro de 2006). O povo sabe que “as modernices” estragam o verdadeiro espírito da celebração. É curiosa a forma como se inicia essa notícia: “ Não se empurrem! Tenham calma! Isto chega para todos!” “Isto” é um prato de feijoada, um canto de trigo e um copo de vinho, o menu que a multidão desordenada tentava alcançar, no interior de um armazém, em Alturas do Barroso em Boticas.” (…) “Só é pena a confusão à entrada”, lamentava-se uma mulher de Famalicão. Ao seu lado, um idoso, quase sem dentes, queixava-se de que os feijões estavam rijos”. Como isto contrasta com o que se vivia no Couto de Ornelas, há 16 anos:” As pessoas compõem a postura. Há solenidade nos gestos.” Agora é a banalização dos rito. É tudo igual, o que importa é encher a barriga…
Meus senhores do Barroso, deixem-se de conflitos e procurem salvar o S. Sebastião do Barroso. Os vossos antepassados merecem-no, a vossa memória cultural o exige. Deixem de lado a disputa dos princípios teóricos onde cada um terá as suas razões de divergência e ponham-se de acordo nos princípios práticos para salvar a vossa configuração cultural. Não alterem só para atrair forasteiros. Mantenham-se fiéis às vossas tradições e os visitantes aparecerão, não aqueles que querem ir comer à custa do vosso suor mas aqueles que querem partilhar convosco um rito de fraternidade
Apetece-me transcrever algumas passagens do discurso que o filósofo francês, Jacques Maritain, fez na Unesco, em 1947.
“ Nunca os espíritos estiveram tão profunda, tão cruelmente divididos (…) Nestas condições, como pode conceber-se um comum acordo de pensamento? (…) O acordo pode fazer-se não sobre um comum pensamento especulativo, mas sobre um comum pensamento prático ; não sobre a afirmação de uma mesma concepção do mundo, do homem e do conhecimento, mas sobre a afirmação de um mesmo conjunto de convicções orientadoras da acção. Isto é pouco sem dúvida; é o último reduto do acordo dos espíritos.(…)
Eu estou persuadido de que a minha maneira de justificar a crença nos direitos do homem (…) é a única assente numa fundamentação verdadeira. Isso não me impede de estar de acordo, sobre essas convicções práticas, com aqueles que estão persuadidos de que a sua maneira de as justificar, diferente da minha ou oposta à minha no seu dinamismo teórico, é também a única verdadeira. Se ambos acreditam na carta democrática, um cristão e um racionalista darão, dela, justificações incompatíveis entre si(…). Mas sucede que, relativamente à afirmação prática dessa carta, eles estão de acordo e podem formular em conjunto princípios comuns de acção. (…) Nesses limites, há e deve haver entre eles um acordo.”
Amigos Barrosãos, sois herdeiros de uma cultura que merece o respeito de todos os que vos conhecem. Deixem-se de conflitos para ver quem tem razão. Deixem-se disso e interroguem-se que Barroso querem deixar aos vossos vindouros? Um Barroso genuíno como aquele que os vosso pais vos legaram ou um Barroso descaracterizado e sem qualquer identidade cultural? Não maltratem um tesouro que levou séculos a amealhar… Quem querem que vos visite? Aqueles que sabem respeitar as vossas particularidades culturais, vos agradecem o testemunho de um comunitarismo em vias de extinção, vos pedem que os aceiteis na celebração dos vossos ritos, vos admiram pelo respeito que mostrais pelas vossas tradições ? Ou aqueles que vão, como alarves esfomeados, sem qualquer respeito pelas vossas tradições, sem qualquer sentido de partilha ou pertença, sem qualquer sensibilidade cultural, encher a barriga com os alimentos que tanto vos custam e, no fim, ainda se julgam no direito de se queixaremm de que “os feijões estão rijos”? Por amor de Deus, deixem-se de alimentar gratuitamente quem não precisa até porque andam centenas de quilómetros só para comerem à vossa custa. Isto não é cumprir a primeira das obras de misericórdia, “ dar de comer a quem tem fome!. Não, eles não têm fome.
“ Levantámo-nos às 5 horas, já lá vão 150 quilos de arroz, garantia uma mulher, limpando o rosto. Dá muito trabalho e não ganhamos nada! Mas a devoção ao santo também vale! Acrescenta outra “cozinheira”. A meio da tarde, além dos 150 quilos de arroz, já tinha sido cozido 3000 quilos de feijão (…) 300 broas de centeio, três mil carcaças, dois mil cantos de trigo e 600 litros de vinho”. Em Couto de Ornelas, a Visão fala em mil broas de milho, 250 quilos de arroz e 500 quilos de carne de porco.
“ O santo também vale”.Mas será que a maioria dessas pessoas que não respeitam os vossos ritos, que ignoram e até escarnecem dos vossos mitos, merecem tanta despesa, tanto trabalho, tanta canseira? Será que o santo se sentirá honrado? Não, assim, não.
Por favor, ponham-se acordo em pensamentos práticos sobre o modo de actuar que alimente os vossos valores, engrandeça as vossas tradições, respeite os vossos antepassados e nós, homens da cidade, que, mais do que de pão, temos fome de significações, agradeceremos e iremos partilhar convosco os vossos ritos, num respeito total pela verdadeira e autêntica cultura barrosã. Por favor, não matem nem deixem morrer o Barroso.
Anexo (1)
Era o dia 19 de Janeiro, sexta-feira.
O Inverno, que fizera transbordar os rios, geava agora os campos e os caminhos, tornando perigosa a viagem pelas estradas montanhosas do interior.
A noite caíra e o trabalho chegou ao fim. Foi só tempo de ir a casa, meter a mala no carro, aguardar a chegada dos filhos da natação e do karaté, e abalar em busca de um fim de semana diferente. Aldeão, radicado há muito na cidade, partia à procura da aldeia, não a minha, que essa fora absorvida pela grande cidade: as pessoas já não se tratam por “tios” e a vivência comunitária, corporizada nos moinhos e “engenhos” de “consortes” e na partilha do “crescente”, esvaiu-se na memória. Resta o mito.
Os relógios indicavam as 19,30, quando o carro arrancou rumo a Cabeceiras de basto.
- Pai, há festa em casa dos amigos de Cabeceiras? – perguntou o filho mais novo, nos seus dez anos curiosos e interrogativos. – Sim, vamos a uma Festa, expliquei, não em casa dos amigos, mas em terras do Barroso. Como peregrinos do passado, pernoitaremos durante a viagem, em Cabeceiras- - Festa em honra de quem? – quis saber o filho. – Uma festa no Couto de Ornelas, em Boticas, em honra de São Sebastião, que é advogado contra a peste, a fome e a guerra, esclareceu a mãe. – Por isso, confirmou o filho, eu li que no tempo da Peste Negra, as pessoas rezavam a S. Roque e a S. Sebastião.
E cantávamos um hino popular, aprendido nos meus tempos de adolescência:
“ Herói mulitar, Capitão valoroso,
Livrai-nos da péstia, Sebastião milagroso.
E auspois desta vida, levai-nos pró céu,
A gozar da internidade, bem juntinho de Deus…”
Os quilómetros passaram. Chegámos à Faia, em Cabeceiras de Basto, onde os amigos nos esperavam. Deu-se convívio ao redor da lareira. O fogo crepitava…crepitava… O fogo!... Que fascínio! Que magia! Quantos pensamentos! Quantas emoções! Quanta reminiscência da infância!
Depois fez-se silêncio. Um silêncio telúrico que vinha do coração da terra e nos transportava às profundidades do tempo.
Manhã cedo, foi o despertar. Com os amigos da casa e outros que se nos juntaram partimos, rumo ao Barroso. Atravessámos a povoação de Salto, onde já se festejava S. Sebastião, embora a mesinha ( pão e vinho) só fosse partilhada às quatro da tarde. Seguimos pela nova estrada que liga a Boticas (“é uma auto-estrada!”- dissera-me um amigo) Realmente a surpresa é grande: o panorama é de pasmar, o tapete da estrada causa inveja a muitas auto-estradas. Confortados com as delícias desta estrada, desviámos para o Couto: era um estradão onde os buracos aconselhavam prudência. Foi uma nova habituação. Um carro businava atrás de nós.
“Que passe! Vai com pressa! Pensa que ainda vem na estrada!...” Um apressado? O carro ultrapassa-nos. Dentro acenavam. Era um grupo de amigos de Braga. Ficámos radiantes. Parámos. Foi uma festa! Vinham de Cerdedo, onde participaram na festa de S. Sebastião. A missa fora às nove da manhã. A mesinha era pão, carne e vinho. O pão que traziam foi logo repartido por todos, ali em plena serra. Aconteceu rito, fez-se celebração.
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