O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, dezembro 08, 2006

O Ti’Adão – um coração de criança

Ontem, fez 14 anos que faleceu o Ti´Adão. No seu funeral, o Pe. Torres Maia, pároco da minha terra, proferiu uma homilia que mereceu a minha admiração e que, em memória/honra dos dois, aqui transcrevo.

1. Costuma o povo dizer que “quem vê caras não vê corações”… Ao rosto, duro, marcado pelo trabalho, à figura apequenada e franzina deste homem do campo, correspondia um coração de criança, a simplicidade evangélica de um pobre, o calor fagueiro e carinhoso de uma amizade muito dedicada.
. Estes homens do campo passaram uma vida em contacto com a natureza, magoando os pés na fraga e tisnando o rosto ao sol, no calor da eira, escorrendo suor na hora da canícula ou tiritando e sacudindo as mãos geladas, a cortar mato, pela solidão dos montes e no silêncio das cavadas.
. Homens que tiveram uma alma de poeta para apreciar a beleza rústica de uma flor campestre, para se debruçar na bica da fonte rumorejante e tirar o chapéu pelo cair das trindades.
Como foram dignos ao comer o seu pão, tantas vezes amargo na incompreensão injusta da sociedade, na falta de carinho de tantos que tratam o homem do campo como cidadão de segunda.
No meio dos campos, regando o milho, sachando e mondando, estendendo o estrume ou conduzindo o arado ou a charrua, afagando os animais ou assistindo-os nas suas doenças e crises, os homens do campo têm as suas raízes na profundidade telúrica do planeta e no mistério cósmico, mas o seu coração está pertinho do Criador, Senhor que fez as coisas mas precisou do homem para renovar a face da terra, pondo ao serviço do mesmo homem todos os meios que para todos foram criados e a todos devem servir.
2. Vivendo ao ritmo da natureza, sempre esperançado em amanhãs mais fagueiras, espreitando o sol e a chuva da vidraça da janela, o trabalhador agrícola está na dependência do tempo atmosférico e sereno para aceitar a intempérie; animado pela abundância da colheita e conformado com o contratempo que lhe aniquila as esperanças. Ele é, sobretudo, o homem que põe a sua vida nas mãos de Deus, num trabalho de sol a sol, na arte de empobrecer alegremente, ou de trabalhar sempre sem nunca ter nada.
Felizes aqueles que conservarem pela vida fora um coração simples e uma fé robusta e temperada como a alma do homem da lavoura e que foram capazes de resistir à devassidão do mundo e não se deixaram engolfar pela vaidade, o orgulho, a ambição!


3. Há dezenas de anos a viver numa família, foi este homem a prova de que ser família não é só viver debaixo do mesmo tecto nem tão pouco ser do mesmo sangue. Cultivar a amizade, dar-se e aceitar os outros, servir sem subserviências e acompanhar o ritmo familiar nas horas melhores e nas mais dificultosas, eis um ideal, que este nosso irmão projectou e viu conseguido.
Mais que o abrigo das mesmas telhas, o caldo da mesma panela, o pão da mesma fornada e a mesma jorna dura de cada dia, emparceirou ele com gente que o sentiu seu e o associou aos momentos de festa e oração, com os quais sofreu e enxugou as lágrimas.
4. Víamos no senhor Adão a simplicidade da criança e as limitações de um velho. Apertávamos as suas mãos rugosas e ásperas com a veneração de quem agradece ao Senhor o ter permitido ao homem que se santifique e salve trabalhando. Admirávamos nele aquela singeleza nobre daqueles que, nada tendo a perder nem de que se envergonhar, passaram uma vida sem outra consolação que não fosse a estima dos que se lhe afeiçoaram e o reconhecimento justo d’Aquele que escolheu os pobres para se revelar a eles e por eles. Louvamos o Senhor que dos pequeninos fez grandes e olhou para muitos “humildes servos” para os chamar lá para a frente, na mesa do Reino. 25.11.82 .

Gostei tanto desta homilia que, no final, fui agradecer ao P. Torres Maia e pedir-lhe uma fotocópia. Ele ofereceu-me o original que conservo, com muito gosto.

Quem era este sacerdote que tanto admirava o homem do campo e foi capaz de produzir uma homilia tão humana, esteticamente tão bela e, simultaneamente, tão profunda quer como análise social quer como reflexão teológica? Quem foi este homem que, no seu funeral, mereceu estas palavras tão sinceras que ainda hoje me comovem até às lágrimas? Do primeiro, falarei numa outra ocasião. Hoje recordarei o segundo, porque este texto começou a ser escrito em 25 de Novembro, como evocação da sua memória.

Andava eu na 2ª classe, quando o “Carriço” foi contratado como criado de lavoura para a nossa casa. Eu assisti ao renascer deste homem que, ao longo dos anos, foi conquistando um novo nome e construindo uma nova personalidade.
Quando veio para nossa casa, era um pobre desgraçado a quem todos tratavam depreciativamente por “carriço” (era um nome que lhe vinha de criança por ser o mais pequeno e enfezado dos irmãos), com fama de bêbado e a quem a rapaziada gostava de pregar partidas que o inferiorizavam. Lembro-me de, logo nos primeiros tempos, um grupo de rapazes o terem atirado, vestido, à “presa do espinheiro”, ficando a rir-se à gargalhada enquanto ele, meio ébrio, se debatia com a profundidade das águas. Começou aí a sua regeneração. O meu pai, homem respeitador e respeitável, chamou os autores da façanha e avisou-os de que, agora, o tio Adão era da nossa família e ofendê-lo a ele era ofender-nos a nós. Chamou também o tio Adão e disse-lhe que em nossa casa não permitia tais coisas. Daí nasceu um acordo. Não andaria mais com dinheiro no bolso. Ficava com uma conta corrente na “loja do Cosme” para os cigarros, que ele deveria administrar ao longo do mês; iriam comprar no Peixoto, em Valongo, um fato novo e sapatos novos e, sempre que precisasse de comprar roupa ou sapatos, dar-lhe-ia o dinheiro. Poderia beber vinho em nossa casa às refeições, à vontade, mas, fora de casa, não aceitaria qualquer oferta de vinho ou aguardente. Todos os meses o meu pai depositaria o seu ordenado numa conta no banco. E assim aconteceu. Não me lembro de mais bebedeiras. Ao domingo, quando ia à missa com roupa nova, já era gente e gente estimada. E o “ carriço” pouco a pouco começou a ser o “Ti’Adão Carriço” e, depois, apenas o Ti’Adão ou o Senhor Adão (em minha casa nunca foi tratado por “carriço” e nunca aceitávamos tal tratamento. O meu primo Manel Joaquim, a brincar, tratava-o por “Senhor Homem” – em hebraico, adão significa homem). Por tudo isso, muito me sensibilizou, no seu funeral, ouvir o meu pároco afirmar: - "Víamos no senhor Adão a simplicidade da criança e as limitações de um velho. Apertávamos as suas mãos rugosas e ásperas com a veneração de quem agradece ao Senhor o ter permitido ao homem que se santifique e salve trabalhando. Admirávamos nele aquela singeleza nobre daqueles que, nada tendo a perder nem de que se envergonhar, passaram uma vida sem outra consolação que não fosse a estima dos que se lhe afeiçoaram e o reconhecimento justo d’Aquele que escolheu os pobres para se revelar a eles e por eles. "

Foi este homem novo que eu me habituei a respeitar. A regra era a seguinte: se o pai estivesse presente, quem mandava era ele; se estivesse presente o meu padrinho ou o meu irmão António, era a eles que eu obedecia; se apenas estivesse o Ti’Adão, era ele que mandava e eu obedecia. Criança é criança, adulto é adulto. (Como as coisas mudaram!...) E nunca nos zangámos mesmo quando ele carregava mais a minha giga de erva ou punha mais farinha na minha taleiga quando íamos ao moinho de Cardoso. Eu não resmungava, quem ralhava com ele era a minha mãe. E não foi por isso que eu fiquei traumatizado e muito menos anafado.

Ele, antes de ser criado de servir na casa do Ti’Alberto da Chã, donde veio, trabalhara nas “pedreiras” (minas de ardósia) da minha terra e tinha andado no volfrâmio em Rio de Frades, em Arouca. Como eu adorava, nas noites longas de Inverno, à volta da lareira, ouvi-lo contar histórias de lobos que vagueavam por aquelas serranias e que, em tempos de fome, desciam ao povoado para assaltar alguma corte de ovelhas. Nessas horas, o Ti’Adão agigantava-se e convertia-se para mim num herói que nem dos lobos tinha medo!...
Havia, porém, uma circunstância em que eu mais me alegrava com a sua chegada. Eu conto.

O “engenho da Varge” era de consortes (isto é, pertencia a várias donos - vestígio de um antigo comunitarismo que os novos tempos iam apagando) e, no verão, funcionava em três turnos: do nascer-do-sol até à uma da tarde; da uma da tarde até ao pôr-do-sol; do pôr-do-sol até ao nascer-do-sol. Cada consorte podia usar o engenho para tirar água para regar os seus campos no turno que lhe calhasse, que se ia alterando ao longo das semanas. Os meus irmãos iam regar nos campos do Traganhal, Areal ou de Godas, o meu pai vigiava o rego para que não se perdesse a água no caminho do engenho até aos campos que ficavam distantes; eu e o Ti’ Adão éramos os encarregados de tocar os bois no engenho (o meu pai gostava mais quando era porque a água no campo corria mais abundante; os bois é que não deveriam de gostar porque, como criança, fazia-os andar mais depressa à roda do engenho… os anos já iam retardando as pernas do Ti’Adão). De dia, cabia-me sempre a mim enquanto o Ti’Adão ia apanhar erva ou talhar mato, excepto quando eu tinha aulas na escola (pois este meu trabalho acabou quando eu vim estudar para o Colégio de Ermesinde); de noite, era o Ti’Adão. Porém, quando pegávamos ao pôr-do-sol era eu que ia para o engenho; o Ti’Adão só aparecia quando anoitecia. Ora o “engenho da Varge” ficava num fundo, junto do rio Ferreira, rodeado de árvores e, por isso, lá anoitecia mais cedo: nos campos ainda havia claridade e lá já era noite cerrada. Sempre tive muito medo da noite por causa das “coisas roins”(sic). Quando o ti’Adão estava atrasado era o meu pai que me ia fazer companhia. Mas, às vezes, também se demorava. Muito sofri. Que medos passei! Quando pegava ao sol-posto, já ia a chorar. A minha mãe bem avisava e ralhava: - não se esqueçam de ir cedo porque o menino tem medo…ó Zé, ó Adão não façam como da última vez…(Era a minha defensora, a minha mãe.). Nunca me custou tocar os bois, eram horas e horas (uma vez fiz treze horas seguidas: mudaram os bois, mas o tocador continuou o mesmo…). E não foi por causa disso que fui mau aluno, bem pelo contrário, e não é para me gabar, até fiquei distinto no exame de 4ª classe. Mas à noite… as sombras pareciam-me “avantesmas”, os ruídos nocturnos faziam-me estremecer e temer o aparecimento do diabo ou de alguma alma doutro mundo… Ah!... Quando o Ti’Adão chegava!... Que alívio! Que alegria!...

Quando eu vim para o seminário, ele despediu-se a chorar. Quando voltava para férias, era uma alegria. E lá estava o Ti’Adão para me abraçar. Ao regressava para o seminário, especialmente nas férias do Natal, as saudades eram muitas e as lágrimas saltavam-me, silenciosas, dos olhos. E o Ti’Adão, para me descontrair, repetia o que ouvira aos “robertos” na feira de Paredes: “ Quem é que vai comer na tua tigela?”

Em dia de festa, havia duas coisas de que muito gostava, era a sua suprema felicidade: deitar foguetes e ir, de opa, pegar a uma bandeira na procissão.
Numa "Festa do Menino”, no dia 1 de Janeiro, a romaria mais importante da minha terra quando toda a gente procurava vestir uma roupa nova, ele já estava na sacristia com a opa vestida, pronto a pegar numa bandeira, quando o pároco, recém-chegado à paróquia, ao ver o “ rosto, duro, marcado pelo trabalho, (e a) figura apequenada e franzina deste homem do campo”, retirou-lhe a opa e deu-a a uma pessoa de bens ( de bem?) lá da terra. Dizem que o Ti’Adão chorou… mas, humildemente, lá foi na cauda da procissão. O meu pai e nós nunca esquecemos a ofensa. Esta foi uma das razões porque a homilia do Pe. Torres Maia, que substituiu esse pároco, tanto me comoveu: não, a Igreja não tem culpa…Os homens que a servem (ou dela se servem) é que nem sempre são dignos da sua missão, por malvadez e/ou estupidez…
Quanto aos foguetes, era ele sempre o encarregado de os lançar quando em minha casa havia foguetes. Por isso, e por outra razões, ele ficou felicíssimo na minha Missa Nova: encarreguei-o de lançar todos os foguetes, e foram muitos… Foi uma alegria! O Ti’Adão rejuvenesceu e nunca mais esqueceu.

Quando pensei abandonar o exercício do sacerdócio para casar, tive o cuidado de lhe comunicar pessoalmente. Andava ele,” pela solidão dos montes e no silêncio das cavadas”, a cortar mato na “cavada do Moreira” em Negral, quando lhe apareci. Ia comigo a Ana que ele já conhecia. Metemos conversa. E quando lhe disse que ia casar, ele fez uma exclamação que nunca lhe tinha ouvido: “Está maluco!...” Expliquei-lhe que não e que a minha esposa ia ser a Anita. Olhou para ela, sorriu e disse: - só desejo que sejam muito felizes! E como ele era simpático com a Nitas, como gostava de meter-se com ela! E os meus filhos… como gostava deles! Era mais um avozinho.

Penso não ter maneira melhor de terminar esta minha homenagem ao Ti’Adão do que transcrever as palavras do P. Torres Maia:
Há dezenas de anos a viver numa família, foi este homem a prova de que ser família não é só viver debaixo do mesmo tecto nem tão pouco ser do mesmo sangue. Cultivar a amizade, dar-se e aceitar os outros, servir sem subserviências e acompanhar o ritmo familiar nas horas melhores e nas mais dificultosas, eis um ideal, que este nosso irmão projectou e viu conseguido.
Mais que o abrigo das mesmas telhas, o caldo da mesma panela, o pão da mesma fornada e a mesma jorna dura de cada dia, emparceirou ele com gente que o sentiu seu e o associou aos momentos de festa e oração, com os quais sofreu e enxugou as lágrimas.

Deus tenha na sua Paz o Ti’Adão, que respeitei e amei como se fora um irmão mais velho, e o P.Torres Maia que admirei e amei como um companheiro de muitos e alongados caminhos.