O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, novembro 03, 2006

"CAMPO DA EGUALDADE"

Nas nossas deambulações por terras de fronteira, chegámos a Salvaterra do Extremo, na Beira Baixa. Fomos simpaticamente recebidos pelo senhor Flores que, depois de nos mostrar as ruínas do velho castelo, lamentando a sua degradação, e nos indicar ao longe, na margem esquerda do rio Erges, o castelo de Penafiel que D. Dinis cedeu a Castela pelo Tratado de Alcanises (foi para mim uma grande surpresa porque, sem contar, descobri um castelo cuja localização procurava há muito tempo), nos levou até ao “campo santo” , fazendo realçar a inscrição em ferro forjado que encimava o portão: " CAMPO DA EGUALDADE” (sic) .
- Aqui, somos todos iguais, comentou.
Lembro este episódio neste dia de “Todos-os-Santos/Fiéis Defuntos" em que a ostentação e o luxo invadem os nossos cemitérios. Apreciei o que, a este propósito, disse D. Carlos Azevedo (para mim é sempre o Pe. Carlos Alberto, como lhe disse aquando do congresso do 1º centenário do nascimento do D. António: -desculpe mas ainda não me habituei a chamar-lhe D. Carlos. - Nem eu, parece-me título de rei … , sorriu.) : “ Mas a ostentação do triunfo das sepulturas ou a simplicidade da igualdade, reflecte, apenas, a projecção que as pessoas fazem da sua concepção de vida para além da morte. Se se guiarem por valores cristãos saberão encontrar uma atitude simplista e a de austeridade” (JN- 1/11/06). Não, amigo, os nossos cemitérios não são cristãos apesar da proliferação das cruzes, não são “campos de egualdade”. O que neles campeia não é a austeridade e simplicidade mas a vaidade. Vai longe o tempo em que as pessoas se limitavam a enfeitar as suas campas com flores campestres ou que criavam, de propósito, nos seus jardins. Uma oração era bem mais importante que uma flor. Agora são autênticos concursos florais com coroas e arranjos comprados nas floristas. Uma verdadeira ofensa para os pobres que não podem comprar as flores que atingem preços proibitivos: uma flor de crisântemo custa entre 1 e 2 euros. É uma feira de vaidades e de afrontamento onde as flores são bem mais abundantes que as orações e, mesmo, que as lágrimas de saudade. Que sociedade esta em que a morte, o grande sinal da fraqueza humana, serve para uma afirmação de orgulho e vanglória!...
O sentido cristão está ausente dos nossos cemitérios nestes dias, até porque o culto da morte não é cristão. O cristão acredita na vida. Nestes dias, a Igreja celebra a vida daqueles que já ressuscitaram. Não, não festeja a morte. A exploração do sofrimento nas cerimónias litúrgicas é também uma forma desumana de celebrar a vida. Sempre estive contra esta exploração do sentimento.
Recordo que, em 1970 - ano em que faleceu o meu pai – estive para me retirar , mesmo paramentado, do cemitério de Campanhã, quando um pregador usava toda a sua eloquência para fazer chorar. Avisei o pároco que nunca mais participaria na tradicional procissão ao cemitério se um padre explorasse o meu sofrimento. A procissão continuou a fazer-se mas não houve mais pregador convidado. Nós, os párocos da três paróquias (Santa Maria de Campanhã, S. Pedro de Azevedo e Nª Senhora do Calvário), passámos a fazer, rotativamente, a homilia na igreja; no cemitério, para além de uma oração, apenas era dita uma palavra de esperança.
Também,recordo o dia de Todos-os-Santos de 1963. Era eu um jovem sacerdote, ordenado em Agosto desse ano. Estava a coadjutor em Santo Ildefonso, no Porto, quando recebi o pároco da minha paróquia, o Pe. Nogueira, e o meu padrinho José Joaquim, irmão de minha mãe. Vinham convidar-me para fazer o sermão no dia de Todos-os-Santos que a casa da Ponte, donde era a minha mãe, mercê de um legado deixado pelos meus antepassados, tinha a obrigação de mandar pregar. Não pude dizer que não, embora isso me custasse porque sabia como, nesse dia, era difícil não fazer chorar.
E eu aprendera a não explorar os sentimentos. Preparei-me e, no dia, lá subi ao púlpito. Falei sobre a grande novidade cristã da comunhão dos santos e da ressurreição. Quando senti que algumas pessoas começavam a chorar, dei nova orientação às minhas palavras. Isso valeu-me, no final, uma repreensão do meu pai: - ó filho, tu andaste a aprender ou a desaprender? Então tu que, na missa nova do primo, fizeste chorar toda a gente, agora, quando as pessoas começavam a chorar, paraste e mudaste de assunto? – Tens razão, pai. E mais não disse. (Realmente, um grande pregador tem de fazer chorar toda a gente. Lá se foi a minha fama de grande pregador.)
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E interrogo-me:
- Porquê celebrar a memória de alguém num local com o qual nada nos identificamos?
- Porquê reviver momentos de partilha com alguém perante as pedras frias de um túmulo?
- Porquê celebrar a vida num espaço carregado de morte?
- Porquê expor ao controlo social a exposição dos nossos sentimentos pessoais?
- Porquê criar obrigações aqueles que amamos?