O Tanoeiro da Ribeira

domingo, outubro 15, 2006

CONTRADIÇÕES ? OU TALVEZ NÃO…

Hoje, ao arrumar os livros que possuo com dedicatória de autor, veio-me à mão o “ Rumo” (1975) de Dário Bastos, com a seguinte dedicatória:
João
Muito obrigado pela “Lição de História” que, hoje, deste ao pessoal da Escola.
Que tu e todos os teus continuem norteados pela: Justiça!... Paz!... e Amor!
Com muita amizade
“Pelo autor” Lígia
(filha do autor) 25–Abril-99”

Abri o livro e li: “ Agosto de 1914. (…). Na estação dos Caminhos de Ferro, em Braga, entrei para o comboio que me havia de levar ao Porto e daqui para Leixões, para embarcar com destino à Baía (…)
À minha volta tudo era tristeza e mais tristeza. Vejo a minha mãe dizendo-me adeus e a chorar convulsivamente. Quis suster as lágrimas, não consegui, chorei também. Nessa data eu estava a desabrochar para a vida, pois tinha apenas onze anos de idade”
(…)
Foi em 1926 que (…) cheguei a Portugal. (…) Aconselharam-me a que voltasse para o Brasil. (…) Entendi que não devia ir-me embora (…) Aqui era o nosso lugar e embora viéssemos a sofrer perseguições, era nosso dever lutar contra a feroz ditadura. (…) e lutei sempre, sem desânimo, contra a opressão
fascista”

Do livro “Um homem na Rua”(1996) de que possuo um exemplar com dedicatória do próprio autor, que, no momento, não posso citar porque o tenho na Póvoa de Varzim, transcrevo uma passagem que eu e a Maria de Fátima Silva, amiga e companheira de alongados caminhos, inserimos no livro de História do 6º ano de Escolaridade -“A Grande Viagem”, da Santillana -, de que somos autores.

Ao romper do dia, o mesmo polícia que me havia prendido foi-me buscar e nessa tarde dei entrada na Informação (PVDE/PIDE), situada na rua do Heroísmo, no Porto, mesmo ao lado do cemitério.
O movimento de presos a serem interrogados e espancados era intenso. Fui metido num cubículo, a que chamavam “segredo”, que era por debaixo de umas escadas. Mal me podia mexer, de tão acanhado que era. Não havia luz, nem natural nem artificial (...). Para as necessidades fisiológicas existia um balde...
Pela madrugada, foram-me buscar. (...) Levaram-me para uma casota, a que chamavam “ Casa del Campo”, situada junto a um muro que circundava o cemitério. Eram oito polícias e um deles apontou para o cemitério e disse-me:
- A tua cova já está aberta e não temos mais trabalho: mesmo por cima do muro lá vais cair.
Cada qual empunhava um bastão de borracha e, após ter dado entrada na tal casa de torturas, principiaram a desabar sobre mim fortes doses de pancadaria.
Depois de descansarem uns escassos minutos, voltaram a interrogar-me, mas como não lhes respondesse conforme queriam, as pancadas recaíram sobre mim, tanto nas costas, como nas pernas e fortes bofetadas na cara.
Houve um momento em que caí, mas um deles levantou-me e ao mesmo tempo disse-me:
-Assim suja a roupa, vamos tirar-lhe o pó.
Mais pancadaria!... Sentia-me exausto e julguei que iam cumprir o que me disseram: atirarem comigo para o cemitério.
Surge à porta o director daquela sinistra polícia e com modos bruscos perguntou:
- Então esse bicho já falou?
-Só tem dito mentiras...
- Levem-no novamente para o “segredo” e amanhã continuem o interrogatório, mas que seja mais severo... Espremam-no bem, pois tem muito que dar”

Esta evocação levou-me a escrever esta pequena homenagem a Dário Bastos. Conheci-o já na fase final da sua vida, quando a sua filha Lígia, amiga e colega , mo apresentou. Mas ainda foi a tempo de conhecer este homem, de carácter inquebrantável num corpo franzino, que bem cedo partiu de Póvoa de Lanhoso, creio que de Fonte Arcada, “rumo” ao Brasil, no caminho duro da emigração (e lembrei-me de outro escritor, emigrante de tenra idade em terras brasileiras, que muito admiro, Ferreira de Castro).
Foi preso muitas vezes, sofreu as atrocidades da tortura nas prisões da PIDE. E resistiu e não quebrou e não vergou. Nunca atraiçoou os amigos mesmo nas horas mais dramáticas nem nunca esqueceu a família que sempre o acompanhou, sofrendo e lutando, irmanada no mesmo ideal.
No final desta minha evocação, apresento um texto dramático escrito pela Lígia onde ela narra, creio, a primeira vez em que o seu pai foi preso e que aconteceu numa véspera de natal, quando ela era ainda criança -“25 de Abril, meu Poema de Natal”. É um testemunho impressionante de partilha e de coragem.
Fiz parte do elenco que o levou à cena, nas comemorações do 25 de Abril, na escola de Rio Tinto (em vários anos seguidos: a primeira vez que foi representado terá sido, se a memória me não atraiçoa, na comemoração dos “20 Anos de Abril – ou foi nos 25 Anos? Já não tenho a certeza) e numa escola em S. Pedro da Cova. Eu encarnava a personagem do Pai que era o próprio Dário Bastos. Nas primeiras representações, tive a alegria, a emoção e a responsabilidade de o ter a assistir, sentado na primeira fila do polivalente.
Desde o tempo de estudante do 6º ano do curso complementar, foram muitas as peças em que entrei: “ a Bandeira Roubada”, “Auto do Natal”, “ A Muralha” , “ Natal na Rua”, “ Deus escreve direito…” e muitas outras. De todas, esta era a representação em que eu menos falava e, no entanto, foi aquela em que mais me emocionei e que muito me marcou.
Da conversa entre o actor e a pessoa representada, nasceu-me uma profunda admiração e mesmo uma amizade. Unia-nos a mesma visão humanista de solidariedade/fraternidade. No entanto, nunca abordámos o binómio cristianismo/marxismo.
Quando faleceu, não teve “funeral religioso”. Sobre o esquife, literalmente coberto de cravos vermelhos, foi estendida a bandeira do Partido Comunista.
Antes de entrarmos no cemitério de Paranhos onde foi sepultado, a Lígia veio ter comigo e disse-me: João, eu muito te agradecia se, antes do caixão descer à sepultura, tu dissesses umas palavras em honra do meu pai. As lágrimas afluíram-me aos olhos e ela continuou: embora te custe, acho que o meu pai to merece. Serás o único a falar. E assim foi, apesar de estarem presentes muitos dirigentes do Partido. Já não sei o que disse, mas sei que as palavras foram profundamente sentidas: fixei-me no homem, no humanista, no lutador pela causa da liberdade e dos oprimidos, sem qualquer alusão ao partido e à religião.
Fiquei feliz com este meu acto de homenagem, e interroguei-me: contradições ou talvez não? Este homem que, por convicções pessoais, não quis ter a presidir ao seu funeral um sacerdote, representante da instituição eclesial que, no tempo da Ditadura, salvo honrosas excepções, não assumiu claramente a luta pela liberdade e não se bateu pelos seus defensores, teve um presbítero da Igreja, “desactivado”, como diz o meu colega José Miguel, a prestar-lhe a última homenagem com palavras singelas mas autênticas. Não, não há contradições quando nos deixamos guiar por sentimentos universais de humanidade. Estes não são propriedade de nenhum partido nem exclusivos de nenhuma religião. Por sobre os partidos e as religiões o que une os “ homens de boa vontade” é o humanismo e a solidariedade/fraternidade. Apesar de todas diferenças nos caminhos e na estratégias, os homens estão irmanados na mesma humanidade quando são “norteados pela: Justiça!...Paz!...e Amor!”
Obrigado, amigo Dário e que o Deus verdadeiro, o Deus dos meus pais em que acredito, te recompense pelo muito que sofreste em favor dos oprimidos e na luta pela liberdade. Eu continuo a pensar que o ateísmo de Marx foi conjuntural, fruto da análise feita a uma sociedade marcada pela mais desabrida exploração humana da revolução industrial e em que a religião aparecia como “ópio do povo”. Por isso, assim como um psicanalista não tem que ser ateu porque Freud, o pai da Psicanálise, o foi, também um marxista não tem que ser necessariamente ateu embora o seu fundador o tenha sido. Se a psicanálise pode ser assumida como uma concepção do homem, uma técnica para desvendar os mistérios psíquicos e um processo de cura das doenças psico-somáticas; o marxismo pode ser encarado como uma concepção da sociedade, uma técnica de análise social e uma estratégia de luta contra as desigualdades sociais. (Não será que Cristo e Marx, ambos judeus, não queriam o mesmo, fraternidade humana, embora pregassem estratégias opostos: a do amor/paz entre os homens e a da luta/ódio de classes?). O Marxismo não poderá integrar-se na corrente do “como se…” - ( “luta pelos teus direitos, pela tua dignidade, pela igualdade social, como se tudo dependesse de ti , com se Deus não existisse…” o que se aproximaria da sentença popular “fia-te na virgem… e não corras!”). A este propósito, lembro o que Fidel Castro disse ao brasileiro Frei Leonardo Boff: “ Fui interno dos jesuítas por vários anos; eles deram-me disciplina, mas não me ensinaram a pensar. Na prisão, lendo Marx, aprendi a pensar. Por causa da pressão norte-americana, tive que me aproximar da União Soviética. Mas se tivesse na época uma teologia da libertação, eu seguramente tê-la-ia abraçado e aplicado em Cuba” –Fraternizar, nº 163-Outubro/Dezembro
Amiga Lígia, talvez nunca leias este texto mas ele é também uma homenagem à tua coragem, à tua alegria, à tua energia de “antes quebrar que torcer”, ao teu amor filial, e mesmo à tua dedicação aos animais: uma vez disseste, e eu nunca mais esqueci, que “quem gosta de animais não pode ser má pessoa”. Sabes uma coisa, o meu filho João e a minha filha Eliana – sabias que eu agora também tenho uma filha? – levaram daqui uma gatinha para a sua casa em Genebra? Puseram-lhe o nome de Aia (divina/santa) que era o nome da mesquita que hoje é a basílica de Santa Sofia em Istambul. Terá sido uma forma de recordar a sua viagem de núpcias, homenagear um povo de que muito gostaram e repudiarem a guerra entre culturas. (É interessante que, na semana em que estou a escrever este texto, o Prémio Nobel da Literatura foi atribuído a Orham Pamuk, natural de Istambul que “ em busca da alma melancólica da sua cidade natal, descobriu novos símbolos para o choque e o cruzamento de culturas” e que é uma figura polémica no seu país pelas intervenções sobre a liberdade de expressão e direitos humanos). Coincidências... Caminhos…

" 25 de Abril, meu Poema de Natal”

Narrador

A peça que vos vamos apresentar é verdadeira.
A sua autora, aqui representada na figura da criança, viveu-a e sofreu-a com tal intensidade que, ainda hoje, passados tantos anos, a recorda de lágrimas nos olhos e com o coração a sangrar.

Apresenta-se em três momentos distintos, sendo dois no tempo do fascismo e o último após o 25 de Abril

Cena 1 – Ano de 1935 – Véspera de Natal/Noite de Consoada ( no centro da cena, um pinheiro com uma bola grande, colorida e uma mesa posta para a “Ceia de Natal”)

Criança- Estás triste, mãe?
Mãe ( suspirando)- Não, minha filha. Estou um pouco preocupada. Brinca, que o pai não tarda.
Criança – O pinheiro não se importa se eu lhe tirar a bola, pois não?
Mãe – Não. Ele não vê. Não sente.
Criança – Tadinho!... Os homens tiraram-lhe a vida...
O pai demora-se tanto... Porquê?
Mãe- Não sei, minha filha...
Criança – Se calhar, foi comprar-me alguma prendinha, mas não era preciso. Ele já me deu esta bola e é tão linda. Nunca vi bola tão linda!....
Mãe – Tens fome? É melhor jantares.
Criança – É noite de Natal. Não como sem o pai...

( Batem à porta. A mãe abre a porta e a filha corre para o pai)

Narrador
E o pai esperado vem com duas feras, de dentes afiados, garras aduncas, qual mancha de horror num quadro de amor e paz.

Mãe.- Quem são os senhores?
Pide 1 – Vamos levar o seu marido. Vai preso.
M. – Mas porquê? Que fez ele?
Pide 2 – Porquê? Então não sabe que ele é um criminoso? Luta contra o fascismo. Luta pela liberdade do pensamento. Por uma igualdade de direitos.
Mãe- Desde quando lutar pela liberdade é crime? Ele é um bom marido, um bom pai...
P 1. - Cale-se que não temos tempo para explicações. Viemos aqui para revistar a casa. (Enquanto os pides revistam a casa, pai, mãe e filha abraçam-se em silêncio)
Pai – Deixem-me passar a consoada. Venham amanhã...
P2. – Cala-te. Nem devias ter direito a respirar, quanto mais a comer. (Dá-lhe um encontrão)
Criança – (Desata aos pontapés). Homens feios... maus...
Não levam o meu pai. Não levam... Quem são eles, pai?
Pai- São pides, minha filha... São pides. Não chores...
P1. – Despachemo-nos. Temos a família à espera.
Vamos cear tardíssimo.
C. – Senhores pides... deixem ficar o meu paizinho...
P2. – Cala-te, catraia mal educada. Tens uma bola tão linda... Dá cá. (arranca-a da mão e pisa-a quebrando a bola com estrondo)

Narrador- E a bola linda, linda, desfez-se em mil bocados e a criança chora. Não sabe se chora os dedos pisados, se a ceia que não come, se o pai que parte.

Cena 2 – Mãe e filha frente à sede da PIDE, no Porto

Criança - É naquela casa grande e feia, que está o pai?
Mãe – Não sei, mas creio que sim.
(Aparece uma senhora a chorar contidamente)

Mãe - Que tem a senhora?
Senhora - O meu marido acaba de partir com aquele amontoado de farrapos humanos . Não sei para onde o levam, talvez para o Forte de Peniche, talvez para o Tarrafal, para Cabo Verde...
Mãe- Cabo Verde?
Senhora -. Sim. Na ilha de Santiago. É terrível. Lá, colocam-nos na frigideira. É um espaço pequeno, rodeado de paredes altas, por onde entra o sol
Quando entrou o seu marido?
Mãe- Na véspera de natal. Não mo deixam ver. Nem dizem onde está.
Senhora – Deve estar na Enxovia; chamam-lhe “ segredo”.
É uma cave escura, por onde escorre água. O chão está coberto de lama. Veja se consegue chamá-lo, ali, nas grades.
Criança- ( Chama junto das grades, rentes ao chão) Pai! Estás aí?! Dá um sinal!
Mãe! Acendeu-se uma luzinha...
S.- Sim, está ali o seu marido. Acendeu um fósforo.
C. – Pai! Anda para casa. A mãe chora muito!

Narrador – O fósforo fazia sinais e na sua luz minúscula dizia: estou vivo. Estou aqui.
Mãe- A sua cara não me é estranha. Quem é a senhora, que tem tanta prática destas coisas?
Senhora- Sou a Virgínia Moura. O meu marido esteve cá muito tempo... Assistiu e foi vítima de brutais espancamentos. Levam-no tão doente... Mas hei-de continuar a sua obra: lutar pela liberdade e por todos os direitos da humanidade.
M.- E não teme que a prendam?
S. Minha amiga, quando se luta com as armas da justiça e da razão, nada se receia. E se o medo nos amarrar, seremos eternamente vassalos deste fascismo. Havemos de vencer!
Criança- Mãe! Também quero ajudar. Vamos à luta, que nada havemos de temer. Vem, mãe! Parece que há muito que fazer.
Havemos de vencer e eu sentirei orgulho de ser filha dum prisioneiro da Pide.


Narrador
E o pai regressou a casa. E o pai voltou a ser prisioneiro várias vezes e o pai regressava a casa. À casa sempre rodeada de figuras sinistras, que roubavam a paz, invadiam a intimidade, amordaçavam a boca, controlavam o escrever e empurravam os jovens para matar os seus irmãos de cor...


Cena 3 – 25 de Abril de 1974

(Ouve-se, em fundo, a “ Grândola, Vila Morena” )

Filha (já adulta- de mãos dadas com a mãe e com o pai, exclama excitada): – Minha mãe! Meu pai! Li-ber-da-de ! Vamos para a rua, festejar com toda a gente!
Valeu a pena lutar. Chegou a vitória merecida!
Mãe- Oh! Madrugada de 25 de Abril!
Valorosos capitães, arautos das lutas de muitos pais, muitas mães e crianças!...
Pai- Bem hajam! Devolveram-me a vida! Soltaram esta pena que escreve! Acabaram as mordaças e as grades... do meu pensamento!...
Filha- E trouxeram os jovens inteiros... ou partidos como a minha bola de cristal

Pai- 25 de Abril, minha liberdade! Minha luta de 40 anos!

Filha- 25 de Abril, meu poema de Natal!


(No fundo da cena, “ manifestação” de jovens com slogans de Abril).
A terminar:
Todos: “ O Povo unido jamais será vencido!”; “ 25 de Abril Sempre, Fascismo nunca mais”; 25 de Abril Sempre” ( Ao dizerem avançam para a boca da cena, empunhando cartazes com os slogans mais vulgares da revolução de Abril)