O Tanoeiro da Ribeira

segunda-feira, agosto 28, 2006

MAS POETA CASTRADO, NÃO.

Ontem, fomos à revista. Era a última apresentação de " Linda Revista", no Teatro Sá da Bandeira, da Companhia do Maria Vitória de Lisboa, tendo como cabeças de cartaz o Octávio de Matos e o casal José Raposo e Maria João Abreu. A um elenco, variado e de qualidade, acrescia um belíssimo corpo de bailarinas graciosas e esculturais. Com que leveza esvoaçavam no palco, quase etéreas, a lembrar-me as coristas do Moulin Rouge de Toulouse Lautrec ( Não pude deixar de recordar que ele em criança ficara paraplégico por ter caído de um cavalo…). Diga-se em abono da verdade que, para o meu gosto, às pernas faltava um pouco de sensualidade. Eram daquelas que, na minha terra, se dizia: se passarem por Guimarães vão para cabos de facas…
Das diversas rábulas, para além de destacar aquela em que Octávio de Matos incarnava a personagem de Eugénio Salvador em homenagem a esse grande actor cómico do teatro português, mereceram a minha especial atenção as que evocavam cinco dos nossos grandes poetas: Fernando Pessoa, Barbosa du Bocage, Natália Correia, Florbela Espanca e Ary dos Santos. Mas… verdadeiramente notável foi a interpretação de José Raposo da figura de Ary dos Santos: como estava tão bem caracterizada a personagem tanto no aspecto da sua figura, da sua voz, da sua postura como da sua postura perante a vida. ( Quem o não conhecesse ficava com uma imagem muito aproximada do que ele era) E então o último poema!... Por isso escolhi a última estrofe para título deste texto:" Mas poeta castrado, não" A revista tem sido um género de teatro menosprezado, como popular e ligeiro. Neste caso, quem não tiver um informação mínima sobre a literatura portuguesa dificilmente compreenderia a mensagem destes números da revista. As dimensões recreativa e educativa podem combinar-se harmoniosamente.
No intervalo do espectáculo, foi prestada homenagem a Octávio de Matos pelos seus 50 anos de carreira artística, com a afixação de uma lápide no hall de entrada do teatro, lembrando que ele quase nascera neste teatro. Com efeito, a sua mãe viera de Lisboa para junto de seu pai, também chamado Octávio de Matos, que, à época, actuava no Sá da Bandeira. Estava a descansar no camarote, ontem ocupado pela Maria João Abreu, quando as águas se lhe rebentaram: foi só tempo de a levarem para uma casa ao lado do teatro, onde o pequeno Octávio nasceu em 1939 ( É da minha idade.)
No decurso da sessão, as minhas memórias vieram adensar a minha vivência.
E vi entrar, pela direita alta, o José Viana com aquele seu ar desengonçado, e, pela esquerda baixa, a Laura Alves no seu jeito de sempre menina. Que grandes actores! E que revistas! Cometeria um anacronismo histórico, se comparasse esses tempos com a actualidade. Parece-me que, nesses tempos, o texto tinha que ser mais cuidado pela necessária ambivalência para ludibriar a Censura. Mas era mais fácil pôr a plateia a rir/sorrir. Havia uma grande cumplicidade entre o público e os actores: estávamos sempre à espera da piada política com duplo sentido: o explícito ( permitido pela PIDE) e o subentendido ( que era o que passava e dava origem, mais do que a risos claros, a sorrisos coniventes e abafados ( nunca sabíamos quem se sentava perto de nós.). Hoje é mais difícil fazer rir sem se cair numa brejeirice desbocada.
E recordei aquela tarde de sábado, de 64 ou 65, quando eu conversava com os rapazes da Juventude Católica (O Dr. João Castro Neves, actual vice-presidente do Futebol Clube do Porto, era um dos mais novos.), sentados num banco de granito no adro da igreja de Santo Ildefonso. Pelo portão principal, subiu uma rapariga, uma estampa de mulher, e dirigiu-se-me, dizendo que pretendia falar comigo. (Vi os olhares dos jovens medirem-na (despirem?) de alto a baixo, cruzarem os olhares com sorrisos marotos, como que a dizer: se o Pe João precisar de ajuda, pode contar connosco…) É bem verdade que quem vê caras não vê corações… Naquele corpo de fazer parar o trânsito e cortar a respiração, abrigava-se uma alma de criança. Que delicadeza de sentimentos! Que fortaleza moral! Recebi-a no escritório. Começou por pedir desculpa por se apresenta vestida daquele modo ( de calças compridas), mas era corista da revista que estava em cena no Águia Douro e aproveitara o intervalo
entre as sessões da tarde e da noite para vir falar comigo. Falou-me do inferno em que vivia por causa da inveja e da detracção que minavam as relações entre colegas, de como era prejudicada profissionalmente por não estar disponível para conceder favores sexuais aos empresários. Disse-me que, enquanto estava no Norte, não podia ir à missa porque, de manhã, já tinha de vir vestida com calças para os ensaios e temia que os senhores padres não a deixassem entrar na igreja assim vestida. Convidei-a a vir participar na missa que eu celebrava às 9.00 horas de domingo. Perante a minha abertura, pediu para se confessar e, a partir dessa data, começou a frequentar a minha missa dominical, comungando. Compreendi, então, quanto sofrimento se poderia esconder debaixo das luzes e das lantejoulas de um palco e quanta grandeza de alma em pessoas mal consideradas. Agrada-me recordar que uma actriz de Lisboa (cujo nome retive durante muitos anos mas agora não recordo) ,que me conhecera em Santo Ildefonso, veio uns anos mais tarde baptizar a filha, de 6 anos, ao Cerco do Porto.
Terá sido no ano de 1966. Eu fora a Lisboa falar com o Director-Geral da Assistência por causa da Obra Diocesana de Promoção Social. No regresso, por razões que agora não recordo, o avião da tarde não fez a viagem para o Porto. Tivemos que recorrer ao comboio que partiu de Lisboa por volta das 20 horas. Sentou-se a meu lado, uma garotinha, miudinha, loura , discreta e bem bonita mas com ar de sofrimento. Era o tempo em que eu ainda usava cabeção. No decurso da viagem, levantei-me e, quando regressei ao lugar, as senhoras que iam do banco à minha frente, virado para mim , perguntaram-me: - O senhor Padre sabe quem é esta menina? Perante a minha hesitação, acrescentaram: - É a Florbela Queirós! Pedi desculpa por não a ter reconhecido por que, de facto, já a tinha visto na televisão. Entabulamos conversa. Ela disse que a vida de actor tinha muito de parecido com a de sacerdote. – Quantas vezes, o Senhor tem de ir celebrar missa, enfrentar uma assembleia mesmo que esteja doente? É como eu. Fui operada esta manhã, vou cheia de dores como notou e, se o avião tivesse subido, eu, a esta hora, estaria a fazer rir a plateia do Sá da Bandeira. Porque não subiu o espectáculo foi cancelado e o empresário, o Henrique Santana, estará à minha espera na estação das Devesas. Disse-me que estava hospedada na residencial do Escondidinho junto ao Coliseu do Porto. Convidou-me a visitá-la e a ir à revista. Nas Devesas, apresentou-me o Henrique Santana. Não mais falei com ela, mas, ao ver os actores em palco, não posso esquecer o que ela me disse e interrogo-me: como estarão a sentir-se, que problemas, que sofrimento poderá esconder aquele riso…
Recordar não é ser velho. Recordar é ter vivido.