O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, agosto 25, 2006

MAS ERAM QUATRO

Foi num verão do início dos anos setenta. Não sei o ano mas sei o dia. Faz hoje anos porque aconteceu no dia a seguir ao São Bartolomeu (24 de Agosto) que era festejado com uma grande romaria na vila de Ponte da Barca.
Estava a passar umas férias, em Britelo, na casa dos amigos Cândido Gonçalves e a Celeste. A casa pequena, de telha vã, plantada na borda de um pinhal, abria-se para um pequeno quintal sombreado por videiras e macieiras. Ao fundo, corria o rio Lima cujas águas, nesse tempo ,ainda cantavam ao saltar nas cachoeiras. Os dias passavam bonançosos entre a leitura de livros que, há muito, esperavam a sua vez, e a visita ao velho “embalse” do Lindoso, ao velho castelo roqueiro ou ao santuário medieval de “São Bentinho” a que as populações locais recorriam em tempo de aflições.
No dia de S. Bartolomeu, ao regressarmos do arraial nocturno , o amigo Cândido abeirou-se de mim com ar preocupado e cara de quem me queria fazer um pedido incómodo. Falou-me, então, de um sobrinho, (de que me disse o nome e que eu, neste momento, já não recordo) filho da sua irmã cuja casa eu conhecia. Que ele tinha ido a salto para França quando tinha 18 anos; que, por isso, não tinha feito a tropa, que a vida lhe estava a correr muito bem. Contou-me ainda que a sua mãe encontrava-se muito doente, à porta da morte. E eu ouvia, ouvia, sem saber aonde ele queria chegar. Encorajado pela conversa e pela minha atenção, desabafou:
- Sabe, este meu sobrinho está cá de visita.
Perante a minha admiração, porque o rapaz corria o risco de ser preso e condenado como refractário por não ter feito a tropa (era o tempo de Guerra Colonial e este era um crime muito grave, considerado de lesa - pátria), explicou:
- Ele está metido em casa, há quinze dias, mas ninguém sabe, nem pode saber, a não ser os pais e os irmãos. Veio a salto, chegou a casa de noite. Basta uma informação à GNR e ele é imediatamente “engavetado”. Correu todo este risco porque queria ver a mãe ainda viva. Mas, agora, precisa de regressar. Necessita de alguém que o transporte até à fronteira. Não tem ninguém de confiança para o levar nem quer chamar um táxi porque teme ser denunciado.
Comecei a adivinhar a razão daquela conversa inesperada e ajudei-o no seu embaraço:
- Amigo, Cândido, desembuche! Quer que eu o leve à fronteira, não é?
- Era, mas eu não tenho coragem de lho pedir. Sei os riscos que corre.
E eu sabia que poderia ser acusado de patrocinar a emigração clandestina e, o que era bem pior, de ajudar os mancebos a fugirem à tropa o que me incluiria no número dos renegados que estavam contra a nossa presença em África, como desígnio sagrado de um povo. Respondi-lhe:
- Eu sei. Mas um filho que passa todos estes riscos só para ver a sua mãe viva merece todo o nosso apoio. Conte comigo.
No outro dia, por volta das 7 horas, lá fomos a casa do sobrinho. Entrámos em jeito de visita. Quando se viu que não havia ninguém nas redondezas, saímos, o mais discretamente possível. Ao meu lado, sentava-se o Cândido, nos bancos traseiros, do meu lado, o sobrinho, do outro, a Celeste. Esta disposição fora previamente combinada e obedecia a uma estratégia bem definida. Seguiríamos pela estrada que liga Ponte da Barca à fronteira da Madalena. Na última curva antes da fronteira, que não era visível do posto da Guarda Fiscal, eu encostaria o carro ao lado esquerdo da estrada, abrandava mas sem parar (para não dar nas vistas). E o rapaz, com o carro em andamento, abriria a porta e saltava, aproveitando, para amortecer a queda, a relva que crescera na borda da estrada.
O programa foi cumprido. E o jovem desapareceu, como um coelho, por entre o giestal que crescia no local. E tudo isto só porque quis dar um beijo de despedida à sua mãe moribunda. Não mais esquecerei esta imagem! Pobre Pátria que escorraçava e maltratava os seus filhos! Era um Portugal a chorar… ( - Como estava a nossa Mátria, Natália!)
Continuámos viagem até à fronteira onde parámos. Metemos conversa com os elementos da Guarda Fiscal que nos interrogaram. Disse-lhes que estava a passar férias em casa dos amigos e queria conhecer a fronteira que desconhecia pois vivia no Porto e nunca antes andara por aquelas paragens. Falei-lhes das minhas memórias de infância a respeito do Lindoso (a central eléctrica que alimentava a lâmpadas de minha casa). A conversa prolongou-se. Falei do bairro da P.S.P. que havia na minha paróquia. Eles conheciam alguns dos guardas aí residentes. Perguntei-lhes os nomes, que eu memorizei, ( premeditação? Premonição? Acaso? – não sei) para os referir quando estivesse com esses seus conhecidos
No regresso, desviámo-nos e fomos à serra Amarela visitar um primo dos meus amigos, que morava na casa florestal pois era guarda florestal. Como não estava ninguém em casa, regressámos à estrada principal para voltar a casa.
Quando já vínhamos nessa estrada, um agente da Guarda Fiscal ( Republicana?) mandou-me parar e, à queima roupa, pergunta:
- Onde está o outro?
Fiquei estarrecido. Mesmo assim, ainda tive o sangue-frio suficiente para apertar a perna do meu acompanhante, e este a da sua mulher, para que se calassem.
- Que outro?- perguntei.
- Passaram aqui, há um bocado, e iam quatro pessoas no carro. Agora são apenas três. Onde está o que falta?
Na passagem não tínhamos visto o guarda. Deveria estar escondido. Mas agora, havia que salvar a situação. Recorrendo a toda a minha capacidade de auto-controlo, expliquei:
- O senhor guarda está confundido. Passámos aqui realmente, mas íamos os três que vimos aqui. Pode perguntar aos seus colegas da fronteira. Estivemos lá a conversar com eles.
E contei-lhe a conversa que aí tivéramos e citei os nomes dos agentes com quem falámos. O guarda confirmou que eram, de facto, esses os que estavam de serviço.
- Mas eram quatro…- repetia e perguntou porque emoráramos tanto tempo a regressar.
Expliquei-lhe, com ar de brincadeira, que fôramos visitar o guarda florestal, primo do Cândido, cujo nome indiquei (e de agora não me lembro), para comer um presunto e beber um copo, mas, por azar, não estava ninguém em casa. Mais uma vez a minha informação estava correcta como o próprio agente confirmou:
- De facto, ele, de manhã, passou aqui de carro com a mulher. Mas… eram quatro…, insistia.
Pediu-me a identificação. Ao ver as fotografias do bilhete de identidade e da carta de condução, ficou espantado:
- Mas o senhor é padre…
- Pois sou. Se perguntar aos seus colegas da fronteira, eles confirmam até porque sou pároco de muitos colegas seus da P.S.P. do Porto, alguns dos quais eles conhecem. Estou vestido desta forma desportiva porque estou de férias em casa destes amigos com quem vim passear.
O guarda ficava cada vez mais confuso. Conversava, mas, no fim, lá vinha sempre: “ mas eram quatro”. Contei-lhe toda a minha história das férias. Depois de muita conversa, foi com um alívio enorme que o ouvi dizer:
- Está bem, Pode seguir. Mas eram quatro…
Despedi-me.(Não sabia que tinha tanto jeito para mentir, mas neste caso foi necessário: estava em causa o futuro de um jovem e a minha própria liberdade). Logo que arranquei com o carro, a Celeste entrou num choro convulsivo a descarregar toda a pressão a que estivera sujeita, sem dizer uma palavra, durante todo aquele tempo de incerteza. Foi um dia de preocupação pelo jovem e por nós. Havia sempre a possibilidade de se capturado antes da fronteira e, nesse caso, o guarda lembrar-se-ia de nós e da matrícula do nosso carro… Só descansámos, quando à noite, o rapaz telefonou de Orense a dizer que tudo tinha corrido bem. Uff…
Não tive mais contactos com este jovem. Só soube que organizou a sua vida por terras de França.

* * *

- Venha cá, senhor Guarda. Desculpe pela mentira que lhe preguei. O senhor estava certo: ”éramos quatro”. Mas agora está enganado: não somos ”apenas três”. Somos cinco! Porque temos mais uma menina e porque… Sabe, como há muitos anos atrás, ontem foi dia de S. Bartolomeu. E diz-se que nesse dia o “diabo anda à solta.”. Mas, não. O diabo é um anjo (mensageiro) mau. E ontem o que nos apareceu foi um mensageiro bom. Chama-se Dr. Silva Pinto. Sem nos conhecer, mas porque sabia da nossa angústia, veio, de propósito ao quarto 421 do IPO (que Deus lhe pague!) informar-nos de que os (as) TACs que o nosso Zé fizera de manhã estavam bons, não havia qualquer problema. Confirmavam os resultados negativos da Cintigrafia e das análises. Correram lágrimas de alegria misturadas com o abraço que nos uniu. Senhor Guarda, somos cinco porque o nosso Zé VAI VIVER!!!... Obrigado, meu Deus. Ajuda-nos.