O Tanoeiro da Ribeira

domingo, outubro 01, 2006

CONVERSANDO COM UM AMIGO...

Anteontem, foi lançado um livro cujo título - “O Último Papa”- fora objecto de uma muito bem orquestrada campanha publicitária. Ao ler uma recensão no jornal “Público” de hoje, fiquei muito espantado porque “o livro defende uma teoria da conspiração que mistura o assassinato, em 1978, de Albino Luciano, que foi Papa, João Paulo I, com a morte de Francisco Sá Carneiro num desastre de avião em 1980”.
Não tinha intenção de ler esse livro porque estou cansado de “trillers” históricos que, com uma intriga policial, exploram o tema religioso porque este vende bem quando se envereda por caminhos imaginativos e apócrifos. Mas, e nisso mostram que foram espertos, irei lê-lo para me inteirar do modo como o autor aborda uma tese que, à primeira vista, me parece absurda. Irei lê-lo, especialmente, porque fala de um Papa que, nos seus 33 dias de papado, me pareceu um homem simples, humilde e pouco identificado com a magnificência da Cúria Romana, cuja morte ficou sempre envolta em mistério e fala de si por quem, além da amizade, nutro muita estima e a quem me ligam muitas e boas recordações.
Foi, por isso, que resolvi fazer uma romagem à memória e vivenciar alguns momentos belos que partilhámos.

CONVITE PARA A DIRECÇÃO DA OBRA DIOCESANA DE PROÇÃO SOCIAL DA CIDADE DO PORTO
O nosso primeiro contacto foi em 1969, quando, como representante do senhor Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, lhe telefonei solicitando uma audiência. Recebeu-me no seu escritório na rua da Picaria.
Comecei por me apresentar como sacerdote responsável pela Obra Diocesana, criada pelo D. Florentino, em 1964. Expliquei-lhe que o D. António estava muito interessado em promover a Obra, desejando nomear nova Direcção. Essa a razão da minha presença: queria convidá-lo para Presidente da Obra Diocesana. Explicou-me que não estava “ muito enfronhado” nesses assuntos, e, razão principal, estava a preparar um projecto-lei para, como deputado, apresentar à Assembleia Nacional que iria causar muita fricção junto da hierarquia católica e do catolicismo tradicional: iria propor uma alteração à Concordata que possibilitasse aos casais casados catolicamente poderem pedir divórcio civil, como acontecia aos que casavam só pelo civil. Confessei-lhe que essa lei me causava angústia sempre presidia à celebração de um casamento porque “acorrentava” os católicos perante a lei civil e garanti que isso não seria impedimento para a sua participação na Direcção. Compreendia, no entanto, as suas reticências por causa das suas deslocações a Lisboa e, por isso, convidava-o para fazer parte da Direcção Disse-lhe, ainda que iria convidar para a Direcção duas pessoas que talvez conhecesse: o Arquitecto Fernando Távora e a Assistente Social D. Elisa Acceioli Barbosa que assumiria, possivelmente, o cargo de presidente. Então, afirmou-me que aceitava o convite e teria muito gosto em trabalhar connosco.

NA DIRECÇÃO DA OBRA
Depois da posse, começámos a encontrar-nos às 4ªs feiras na reunião de Direcção, nas instalações da Obra, na Casa Episcopal.
Para além da seriedade que punha em todas as discussões, habituei-me a admirar a clareza das suas ideias e a lógica do seu raciocínio. Relembro apenas alguns pormenores…
Quando íamos reunir com a Câmara Municipal do Porto, com quem as relações não eram as melhores após a morte do Dr. Nuno Pinheiro Torrres, sempre nos lembrava: “ se a mãe estiver, eu não falo” (a mãe era a D. Maria Francisca Lumbrales Sá Carneiro que, à época, era a vereadora da Assistência Social). De facto, quando a D. Maria Francisca estava presente, era vê-lo em silêncio do princípio ao fim do encontro: a conversa ficava a cargo dos outros elementos presentes. Admirei sempre essa preocupação de nunca entrar em conflito com a mãe.
Lembra-se da profecia do Arquitecto Fernando Távora. Já não recordo o ano (talvez 1972, 1973). Foi numa época em que as relações da Obra com o Governo viviam momentos difíceis. E quando, preocupados, nos interrogávamos sobre os caminhos a trilhar, o Arquitecto diz calmamente: “estamos para aqui tão preocupados com o Governo quando daqui a algum tempo tudo será resolvido.” Todos olhámos surpreendidos para ele: como? E com a serenidade que lhe conhecíamos, afirma: “porque, daqui a algum tempo, quem vai mandar nisto (no Governo) é aqui o Chico.” Rimo-nos. E o Arquitecto, muito sério, reafirmou:” não tenham dúvidas!”
Retenho, ainda, dois episódios que relembro muitas vezes. Uma vez, disse-me: “ Isto está a mudar por dentro. Um afilhado do Marcelo Caetano começa a estar do nosso lado. É um rapaz muito esperto”.(Mais tarde, apercebi-me de que estava a falar do Marcelo Rebelo de Sousa). Num outro dia, disse-me: “ Hoje fui entrevistado por um jornalista do “República” que me deu muito trabalho para me desviar das suas intenções. É um rapaz novo, açoriano, muito inteligente e muito perspicaz.” (Penso que esse rapaz era o Jaime Gama.)

DEPOIS DO 25 DE ABRIL
Os nossos caminhos separaram-se.
Como sabe, alguns padres novos do Porto, unidos no essencial, divergíamos quanto aos nossos patronos jurídicos: havia um grupo que se aproximava mais do Mário Brochado Coelho, que depois foi um dos líderes da UDP, e eu era dos que tínhamos a si como nosso patrono jurídico/político. Sabe que partilhávamos as mesmas ideias sobre um Estado de Direito (Ainda guardo o livro “VALE A PENA SER DEPUTADO” que me ofereceu com a sua dedicatória, em 9 de Janeiro de 1974, quando eu lhe entreguei um exemplar da homilia que um grupo de 17 padres do Porto fez no dia da Paz desse ano – 1 de Janeiro - e que nos valeu a suspensão do passaporte).
Fiquei atento e esperançado quando fundou o Partido Popular Democrático. Inicialmente, fui leitor atento do “Povo Livre”. Mas depois verifiquei que algumas das pessoas que, na minha paróquia, apareciam ligadas ao partido eram daquelas que, antes, alinhavam com o regime, não aceitavam as suas intervenções na Assembleia Nacional e me acusavam de fazer política contra o Governo. Fiquei desiludido. Por isso, me desviei , pensando que, assim, estaria a ser mais coerente com aquilo que partilháramos.

O ÚLTIMO ENCONTRO
Foi em Novembro (?) de 1980, na inauguração das novas instalações do Centro Social de S. Roque da Obra Diocesana de Promoção Social do Porto. A direcção da Obra Diocesana, de então, resolveu fazer-lhe uma surpresa a si que, como Primeiro-Ministro, vinha presidir a essa inauguração. Para isso, convidaram os elementos da Direcção da Obra a que você pertencera. Recordo-me como se fora hoje. Quando saiu do carro e nos viu, ficou com ar de espanto mas muito feliz. Foi a Elisa Barbosa que primeiro o cumprimentou, seguindo-se um abraço ao Arquitecto Távora. Quando chegou a mim, que me fazia acompanhar pelo meu filhito João Miguel, de três anos, ficou um pouco hesitante. (Desde que foi para Lisboa, nunca mais nos víramos. Eu, entretanto, deixara o exercício do sacerdócio, o meu bigode crescera preto e farfalhudo, casara e já tinha dois filhos.)
O Arquitecto, com aquele ar brincalhão que lhe conhecíamos, diz-lhe: -“ Não está a reconhecer”. – “ Lembro-me da voz, mas…” - “ E se eu lhe disser que é o nosso Padre João?”- “Pois é! Mas que se passou?” (e deu-me um apertado abraço). Então, eu sorri-me e disse: - Agora já não sou o Padre João, mas sim o Pai João (e apresentei-lhe o meu filho João que segurava pela mão). Esqueceu-se da comitiva, meteu-me o braço, e, enquanto nos dirigíamos para o Centro Social, quis saber tudo o que me tinha acontecido. Mesmo depois da inauguração e enquanto visitávamos a instalações inauguradas, continuámos a conversar e o João Miguel, baixinho, ia-me dizendo “ quero fazer uma pergunta”. Perante tanta insistência, interrompi a nossa conversa e informei-o do desejo do meu filho. Inclinou-se e, afagando-lhe a cabeça, perguntou: -“Então diz-me cá o que queres saber?” E o João Miguel não perde tempo e dispara: “ Ontem, eu vi-o na minha televisão. Como é que saiu de lá?” Demos uma enorme gargalhada, pegou nele ao colo o que muito espantou toda a comitiva que nos seguia. Não sei se a sua explicação o convenceu, o que lhe posso garantir é que ganhou um amigo. Nos dias seguintes, sempre que o via na televisão, não se cansava de repetir “olha o meu amigo!” .Foi com grande estupefacção e enorme mágoa que soubemos da sua morte, mas, para não traumatizar o menino, foi assunto de que não se falou durante vários dias. Mudávamos de canal sempre que se falava da sua morte.
Amigo, esta é uma das grandes vantagens da memória: se ” não há machado que corte a raiz ao pensamento… não há morte” para uma amizade que se cimentou no respeito, na estima, no trabalho e na cumplicidade.