O Tanoeiro da Ribeira

quinta-feira, agosto 31, 2006

EU TAMBÉM ACREDITEI...

Era Setembro. Com o casal Luz e Dino, estava a jantar no restaurante Barrelo, na minha terra, quando foi interrompida a emissão da RTP e anunciada uma comunicação ao País de sua Excia o Senhor Presidente da República, o Almirante Américo Tomás. Fez-se silêncio na sala. Desde que Salazar caira da cadeira, estávamos à espera desta comunicação para anunciar o nome do seu substituto. Foi com satisfação que ouvimos indicar o nome do Professor Marcelo Caetano porque, antigo delfim de Salazar, fora por este marginalizado,na sua fase final e porque tinha tomado posição a favor da Universidade/Estudantes na crise académica de 1962. Acreditámos numa liberalização/ (democratização do regime?).
De facto, ele inaugurou um estilo de governação mais próxima do povo do que no tempo do " Esteves"(Salazar era assim conhecido porque nunca comparecia à inauguração de uma grande obra do regime, (como foi o caso da Ponte da Arrábida, no Porto, em 1963), mas,, nas vésperas vinha ver a obra de forma inesperada: no outro dia, os jornais noticiavam: ontem, sua Excelência o Senhor Presidente do Conselho, Prof. Doutor Oliveira Salazar, esteve...).Começou a aparecer regularmente na televisão com as "Conversas em Família"; alterou o nome da polícia mais detestada de Portugal, passando a PIDE a chamar-se DGS ( Direcção Geral de Segurança); à Censura chamou Exame Prévio ( E eu acreditei que estas mudanças de nome corresponderiam a nova orientação política). No entanto,três acontecimentos me tocaram de sobremaneira: a autorização do regresso de D. António ao Porto, a inclusão de pessoas mais arejadas nas listas da União Nacional nas eleiçoes para a Assembleia Nacional e a visita à minha capela do Cerco do Porto.
O regresso de D. António- O Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, esteve exilado desde 1958 porque Salazar não autorizava a sua entrada em Portugal.( Esta proibição teve como causa próxima a chamada " Carta do Bispo do Porto" que D. António mandara a Salazar, contendo os pontos sobre os quais gostaria de conversar na audiência que Salazar lhe tinha concedido). Mais do que isso, o seu nome foi banido de todos os meios de comunicação do País. Qualquer alusão ao Bispo do Porto era logo riscada pela Censura e o seu autor chamado à PIDE. Este "assassinato/morte" de D. António chocou-me fortemente quando a sua mãe morreu. A notícia da morte não pôde ser anunciado nos jornais. Fomos nós que andámos a bater à porta dos padres da diocese a avisá-los e a informar a data do funeral: foi bonito ver tanta gente no funeral- o D. António não foi autorizado a vir ao funeral da mãe. Logo que Marcelo Caetano passou a presidir ao Governo, gerou-se um movimento enorme no clero do Porto, sob a liderança do Dr. Martins, abade de Cedofeita (hoje Bispo Emérito de Setúbal). Os documentos enviados eram sempre assinados por doze padres do Porto ( por vontade do Dr. Martins, eu representava o clero jovem. Dizia o Dr. Martins: como nos doze apóstolos, o João é o mais novo). Esta minha participação acarretou-me a má vontade do D. Florentino, Administrador Apostólico da Diocese: na última reunião do Conselho Presbiteral do Porto a que eu pertencia sua por escolha pessoal, este virou-me as costas quando eu ia cumprimentá-lo ( fraquezas humanas...de quem me merecia/merece muita consideração). Enquanto o processo decorria, o D. António aproximou-se de Portugal: veio viver para um mosteiro em Vilalba de Tormes, perto de Salamanca ( aí o fui visitar com o primo Manuel Joaquim). Logo que foi autorizada a sua entrada, instalou-se em Fátima onde o fui ver na companhia do Abade das Antas. Por tudo isto, o regresso à diocese do Porto foi um momento de grande ALEGRIA e, sem dúvida, deveu-se a Marcelo Caetano. Com Salazar era impossível, nem sequer era pensável...
A Ala Liberal - Nas eleições de 1969, por vontade de Marcelo Caetano, a lista da União Nacional foi renovada com um conjunto de jovens com ideias novas: Magalhães Mota, Mota Amaral, Pinto Balsemão, Miller Guerra, Pinto Leite, Pinto Machado. .Limito-me a realçar aqueles que mais próximos estavam de mim por serem cristãos comprometidos e do Porto: Dr. José da Silva, advogado, antigo seminarista e visita frequente do Seminário; Francisco Sá Carneiro, do movimento dos casais e cursilhista. O D. António, além da amizade pessoal com o Zé da Silva tinha particular estima pelo Sá Carneiro, pertencente a uma importante família de advogados do Porto ( Por isso é que o escolheu para a Direcção da Obra Diocesana de Promoção Social do Porto).
Visita à capela da Senhora do Calvário no Cerco do Porto - Terá sido em 1968/69 ( só sei que foi no dia da inauguração do Centro de Formação Profissional do Cerco do Porto). No final da cerimónia, a que assisti pois foi eu quem, como pároco, procedi à sua benção, a população do Cerco esperou que Marcelo Cetano saísse do recinto do Centro, rompeu a barreira da segurança, e convidou-o, com muita insistência, a visitar a capela do Bairro " que era muito bonita" e tinha sido benzida há pouco tempo. O Professor mandou-me chamar e disse-me: -estão a convidar-me a visitar a sua capela. O senhor Padre autoriza-me? Face à minha resposta, pediu-me que o acompanhasse para lhe indicar onde mandar parar o carro. E assim foi. Mas gerou-se a confusão enorme. Ninguém sabia, para além de mim, o que ia acontecer. Os condutores dos outros carros ficaram aflitos quando viram parar o carro presidencial; os seguranças ficaram em pânico. Toda a gente corria: corria o Presidente da Câmara, Eng. Vasconcelos Porto, para acompanhar o senhor Presidente; corriam os seguranças para rodearem o Presidente; corriam as pessoas para falarem com ele, e, então para as crianças, era uma festa, eram as que mais corriam... Ele saíu do carro, sendo imediatamente rodeado pelos seguranças e pela multidão que o esperava. Caminhou comigo até à capela, mandou os seguranças esperarem à porta, e entrou sozinho comigo e com umas crianças que corriam atrás de nós o Eng. Vasconcelos Porto, com a careca a reluzir de suor, lá se aproximou. Percorremos a capela toda. Admirou especialmente a imagem da Senhora do Calvário, cuja significação eu lhe expliquei: -" mas que linda imagem!" (Há fotografias dessa presença, tiradas pelo senhor Magalhães - quando foi inaugurada a nova igreja, o pároco dessa época, Pe Carlos Pinto, pediu-me fotografias para uma exposição e ficou muito admirado: não queria acreditar no que os seus olhos viam " mas este é Marcelo Caetano! Ele já esteve na capela do Calvário?" E eu subi uns degraus na sua consideração por mim.., afinal não era tão esquerdista como ele pensava...);
Depois da visita, organizei um album com as fotografias oferecidas pelo senhor Magalhães e mandei-lho com um cartão meu que dizia simplesmente: " Que Vossa Excelência consiga realizar as aspirações que o Povo Português deposita em si, neste momento". Passados uns dias, recebi um cartão da Presidência do Conselho, escrito por ele, agradecendo o acolhimento de que foi alvo e o album que lhe enviara. Esse cartão passou a andar sempre no meu bolso. Era o meu bilhete de apresentação ( arma de defesa), caso a PIDE se metesse comigo...
Por tudo isto, eu acreditei na " Primavera Marcelista". Mas, com o andar do tempo, essa esperança foi-se desvanecendo perante o que se passava na Assembleia Nacional, de acordo com os relatos de 4ª feira feitos pelo "Chico" ( a primeira parte da reunião da direcção da Obra Diocesana era preenchida com as suas informações que o Sá Carneiro nos trazia de Lisboa), confirmados com as actas da Assembleia Nacional publicadas pelo Jornal República. A machada final foi dada quando o Sá Carneiro pediu a demissão de deputado e me apercebi que à mudança de nome das antigas instituições repressoras do Estado Novo não correspondia uma consequente mudança de métodos e objectivos. Razão tinham os latinos: "corruptio optimi pessima". O fracasso da esperança é a pior das dessilusões.
Porquê esta incapacidade de Marcelo para alterar o regime político. Foi a ala conservadora, liderada por Américo Tomás, que não permitiu? Ou foi o próprio Marcelo que não quis porque viu que uma liberalização levaria a uma democratização e esta era impossível porque a Guerra Colonial não resistiria a uma democratização dado o cortejo de deficientes, mortos que ela arrastava atrás de si. O Povo estava cansado/ farto de sofrer. Foi a Guerra Colonial que tolheu os movimentos a Marcelo que não estaria disposto a abandonar " as províncias ultramarinas". Em síntese: a liberalização levaria à democratização; a democratização levaria ao fim da guerra colonial; o fim da guerra colonial levaria ao fim do império colonial. E não sei se Marcelo quereria chegar tão longe. Só uma profunda mudança da sua ideologia, interiorizada nos tempos da Mocidade Portuguesa, poderia aguentar tão profundo acto de coragem. Se tivesse tido essa coragem, a transição para a democracia far-se-ia de modo tranquilo sem ser necessário revoluções e o “25 de Abril” não teria sido necessário.
Porquê este blog? Porque amanhã retomo o trabalho no Colégio e não queria deixar passar as comemorações dos 100 anos do seu nascimento (17 de Agosto - em 27 de Setembro , fará 38 anos da sua tomada de posse como Presidente do Conselho), sem fazer memória de um homem, culto, inteligente e de fino trato, que poderia ter marcado muito positivamente a História de Portugal e, assim, ficará esquecido, ou será lembrado como um filho menor da ditadura salazarista, um salazar de segunda categoria. Contradições da história.



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