O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, setembro 08, 2006

...NÃO OLHO PARA AS PERNAS DAS SENHORAS...

A segunda metade da década de sessenta do século passado foi marcada por profundas transformações na sociedade e na igreja. Na sociedade, apareceram novas formas de pensar e de agir que culminaram no Maio de 68 em Paris, a revolução dos três MMM ( Marx, Mao e Marcuse) com ressonâncias em toda a Europa como é exemplo, em Portugal , a crise académica de 69; foi o movimento hipie a entusiasmar a "juventude bem" da sociedade ocidental com novos ideais de vida (era só amor, flores, violas e marijuana) em ruptura total com as gerações anteriores; foram os beatles com um novo estilo de música e de vestir (os cabelos compridos passaram a ser sinal de contestação); é o movimento de emancipação das mulheres (com alguns exageros de algumas feministas) a dar os primeiros passos, com a pílula, a mini-saia, a “guerra aos soutiens”, o amor livre... e o planeamento familiar. Esta revolução dos costumes foi acompanhada por uma profunda transformação dentro da Igreja com o seu “agiornamento”, fruto do Concílio Vaticano II: as missas passaram a ser em língua vernácula; o sacerdote já celebrava de frente para o povo; os instrumentos musicais ditos profanos entram para dentro da igreja ( violas, baterias ); a música das liturgias recebem influências do rock, com um ritmo em que apetece bater o pé; as senhoras começam a entrar nas igrejas, de cabeça descoberta, sem o tradicional lenço ou a mantilha ( que lindas ficavam as raparigas com as mantilhas rendilhadas...); começam as concelebrações; os padres novos deixam de usar "coroa" e abandonam o cabeção, fala-se abertamente do celibato optativo e temporário. Era uma lufada de ar fresco e de esperança: no final de um Curso orientado pelo Dr. Albino Aroso, ainda hoje, o grande defensor da pílula no planeamento familiar, o D. Florentino disse-nos que a pílula era um problema médico e, por isso, se no confessionário aparecesse alguma senhora a pedir conselho, deveríamos aconselhá-la a procurar um médico com boa formação (Como, depois, se andou trás!...); o Pe. Vieira Pinto (actualmente Bispo Emérito de Nampula), do Movimento “Pelo Mundo Melhor” enchia o Palácio de Cristal de uma multidão ávida de palavras e ideias novas; o “Graal” impunha-se na intelectualidade por acção especial da Eng. Lurdes Pintasilgo e da Dra. Manuela Silva. Tempos controversos onde o confronto de ideias, as controvérsias e as diatribes eram “o pão nosso de cada dia”.
Ora acontece que, em 1967 ou 68, no dia da Senhora de Campanhã ( faz anos hoje), o Pároco, Pe. Albino Leite, cumprindo a tradição, convidou para a missa da festa os padres ligados de algum modo à freguesia de Campanhã: os capelães, os antigos coadjutores; os padres residentes na Paróquia, os párocos das paróquias vizinhas (também convidou o Dr. Armindo, actual Bispo do Porto, que era seu sobrinho) . Também cumprindo uma boa e apreciada tradição, após a missa, ofereceu um lauto almoço na casa paroquial
Quando entrávamos para a sala de jantar, o Pe. António, que vivia perto da Capela de S. Roque e era reitor da igreja do Carmo, disse: “o Senhor Abade, este ano, convidou poucos colegas para o almoço!” Eu ouvi e entendi aonde ele queria chegar: é que os padres novos, em cujo número me incluía, não tínhamos cabeção e vestíamos uma camisa de colarinho aberto (ainda não ousávamos pôr gravata: só comecei a usar gravata em 1969). Calei-me e aguardei a oportunidade. Esta chegou quando todos gabavam a qualidade do vinho que estava a ser servido. Então, perguntei: -“Senhor Abade, onde arranjou este vinho que está uma delícia?” E o Pe. Albino, todo orgulhoso, - “fui eu que o produzi no meu Passal.” - “E donde o trouxe agora?” – “Da pipa.” Então virei-me para o P.e António, sacerdote que gostava de picar-me mas por quem eu nutria simpatia desde criança porque fora pároco de Recarei, próximo da minha terra e adoptara um rapazinho austríaco, fugido da II Grande Guerra, que foi meu companheiro no Colégio de Ermesinde: -“ Senhor Pe. António, que tal está o vinho?” - “Muita bom! - “Reparou que veio da pipa do senhor Abade e as garrafas não trazem rótulo? Como vê, (e passei o dedo em volta do meu pescoço), não é o rótulo que torna o vinho bom é a sua qualidade…” Uns acharam piada, outros nem tanto, o Pe. António sorriu.
A conversa continuou. E o tema passou a ser o facto das senhoras se apresentarem de cabeça descoberta, nas missas. As opiniões contrapunham-se. O Pe. António, muito conservador, depois de afirmar que não dava a comunhão a quem assim se apresentasse, para me provocar, pergunta: - “E o Pe. João?” - “Eu dou.” – “Mas S. Paulo diz que as mulheres devem estar de cabeça coberta na igreja!” – “Ai diz?” – “Ai não sabe?” Perante o meu silêncio, foi buscar uma bíblia e leu o capítulo 11, do versículo 2 ao 16 da Primeira Carta de S. Paulo aos Coríntios e, no fim, releu: " Julgai vós mesmos: é decente que uma mulher reze a Deus sem estar coberta com véu?". Depois de fechar o Livro, pergunta-me: - “E então, agora que me diz?” Sorri-me e pedi-lhe para ler o início da carta de S. Paulo. A contragosto mas perante a minha insistência, lá leu: " Primeira Carta aos Coríntios". –“ Ah! Aos Coríntios,” disse eu. – “Que quer dizer com isso?” - “Quero dizer aquilo que o Pe. António leu , aos Coríntios”. – “Então a mensagem de S. Paulo não é para todos?” A minha paciência começava a esgotar-se e, então, o Pe Torres Maia, meu amigo e condiscípulo, veio em minha ajuda: - “Para além do texto há o contexto, para além do sentido literal, a Bíblia tem outros sentidos. Se lesse toda a carta, veria que S. Paulo está a reverberar a imoralidade que grassava na comunidade de Corinto. Nesta passagem, S. Paulo não está a dar lições de moda, mas a alertar para a necessidade de as mulheres cristãs não se deixarem prostituir, como as "etairas" (prostitutas de Corinto) cujo sinal distintivo era aparecerem na rua com a cabeça descoberta; deveriam apresentar-se diante do Senhor como mulheres honestas e de coração puro, por isso, de cabeça coberta. Entre nós, as prostitutas adoptam outras formas para serem identificadas…”. Agradeci a ajuda e o Pe. António ficou silencioso, esperando uma palavra do Dr. Armindo, nosso antigo professor de Teologia no Seminário Maior, mas ele permaneceu silencioso, esboçando apenas um sorriso de aprovação.
A conversa continuou. Passado algum tempo, o tema era a mini-saia. Eu sorria mas não me metia na conversa. E o Pe. António voltou novamente à carga: - “Eu cá não dou a comunhão às raparigas de mini-saia. E os padres novos dão?” Por delicadeza, resolvi responder: - “Eu dou.” – “Dá? Mas porquê?” Então, simulando muito seriedade, para rematar a conversa, respondi: -“Sabe, Pe. António, eu, dadas as tentações próprias da minha idade, por uma questão de defesa pessoal, não olho para as pernas das senhoras!..”. - Boa!, disse o Dr. Armindo, a meu lado. Foi uma gargalhada geral. Assim acabou a diatribe. E continuámos todos amigos. Bons tempos em que não se discutia apenas futebol ou telenovelas!...

Quantas recordações me assaltam no dia desta festa, antigamente a maior romaria da cidade do Porto a que os filhos de Campanhã nunca faltavam: era uma festa de jantar de família. “ Já no século XV, a festa e romaria da Senhora de Campanhã se apresentava como a maior dos subúrbios do Porto. Quando os frades Lóios habitavam no seu mosteiro, realizava-se uma procissão, em 8 de Setembro, da igreja matriz de Campanhã até ao Mosteiro de Santa Clara e dali para a Sé, onde era o sermão, seguindo depois a procissão por toda a cidade “ P. Fernando Milheiro, in VP. de 30 de Agosto de 2006). Festa rural por excelência (reminiscência de antigos cultos rurais?), a festa das melancias, marcava o ritmo dos trabalhos agrícolas pois que, nesse dia, acabava a sesta para os lavradores e a merenda deixava de ser levada aos campos (“Pela Senhora de Campanhã acabam as sestas e as merendas”, dizia-se na minha terra.) .
E tenho outras recordações mais prosaicas. Os tempos iam mudando e os costumes também. As noitadas eram famosas e não serviam só para rezar… O Pe. Manuel Vieira Pinto, de que já falei, e que tinha sido coadjutor de Campanhã, costumava dizer: a Senhora de Campanhã dá muito dinheiro ao pároco pelos baptizados que faz passados uns nove meses…
Quando vim para o Cerco estava, certa noite de Setembro, a falar com um grupo de rapazes e apareceu uma rapariga toda espevitada e disse: -“Senhor Padre, não fale com estes rapazes que eles são muito malcriados!” – “Ai são? Que é que eles fizeram?”- “ Apalparam-me o cu (sic), na Senhora de Campanhã!”– “ E tu deixaste?”- “ Deixei.” – “Então continua que eles não se importam e até te agradecem.”. A rapaziada deu uma gargalhada e lá continuámos a conversar.
Há, porém, uma recordação que se sobrepõe a todas as outras. E essa remete-me para o ano de 1974.
Hoje aconteceu festa na nossa casa. O Zé Carlos, depois de várias semanas, teve alta do IPO. Quis almoçar o “ bacalhau à Madureira”. A mãe encomendou pelo telefone e eu fui buscá-lo. Estávamos ainda a almoçar, já com os avós presentes, quando chegaram a Eli e o João que traziam consigo a Feni. A Eli vestia uma saia que lhe ficava muito bem e tinha um penteado novo que realçava uma cara muito bonita (mas a Feni não fica nada atrás: que linda carinha!). O João também tinha ido cortar o cabelo: que bem lhe fica este novo corte a fazer lembrar o dia do seu casamento! Foi a cereja no cimo bolo. Fizemos festa. E por pedido do Zé, com a cumplicidade da Eli, a mãe lá foi fazer um creme que eu, com aquela sabedoria que humildemente me atribuo, já que ninguém o faz, fui torrar. Um Murganheira ajudou a completar a celebração. Que a Senhora de Campanha seja louvada!
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