O Tanoeiro da Ribeira

quinta-feira, outubro 05, 2006

A PROPÓSITO DE UM PRÉMIO

Ontem, dia 4 de Outubro, foi atribuído ao médico, Dr. Albino Aroso, o I Prémio Nacional de Saúde de 2006 pelos “contributos inequívocos, prestados no decurso do seu longo desempenho profissional”, e a quem, em Outubro de 2004, a Associação Médica Mundial colocou na restrita lista de 65 clínicos de todo o mundo “mais dedicados a causa públicas no campo da saúde”.
Quero aproveitar esta data para me associar a estas homenagens a um homem que foi meu apoio, e com o qual me identifiquei, num assunto muito delicado da minha actividade pastoral. Seguindo uma expressão em voga, direi: foi assim.

O início da minha actividade pastoral (década de sessenta) coincidiu com a divulgação da pílula como método anticoncepcional. Reinava uma enorme confusão sobre as incidências desse método na ética cristã e, por isso, debatíamo-nos com muitas incertezas e inseguranças. Alguns sacerdotes mais antigos não tinham grandes problemas em negar a absolvição às mulheres que usassem a pílula. Mas, eu…
Foi, por isso, com grande ansiedade e esperança, que me inscrevi numa quinzena pastoral que decorreu no Seminário da Sé. Para além de outros temas de ordem pastoral com muito interesse e acuidade, o problema da pílula foi desenvolvido pelo Dr. Albino Aroso que, com todo o entusiasmo, saber e sensibilidade humana e cristã, nos falou da necessidade do planeamento familiar. Explicou os diversos métodos de controlo de natalidade, desde o da temperatura até ao da pílula. Apontou vantagens e desvantagens de cada um dos diversos métodos, mas indicou claramente que o da pílula era o que apresentava maior eficácia, não contrariando a ética cristã e, por, isso, como médico, não tinha qualquer problema de consciência em o prescrever. No entanto, avisou que, como qualquer medicamento, não deveria ser tomado sem o conselho de um médico. No final da conferência e após muitos esclarecimentos, D. Florentino, Administrador Apostólico da Diocese do Porto, durante o exílio do Bispo Residencial, D. António Ferreira Gomes, disse, de modo muito claro: “ a pílula é um problema de ordem médica, os sacerdotes não têm que se meter nem dar conselhos sobre um assunto médico, mas devem orientar as pessoas para consultar um médico com boa consciência cristã”. Foi o que eu queria ouvir. A partir de aí, sempre que me aparecia uma senhora com o problema da pílula, eu aconselhava-a a dirigir-se ao Dr Albino Aroso e ao serviço de planeamento familiar do hospital de Santo António que este dirigia. Não tive mais problemas de consciência: se não era pecado não tinha que dar ou negar a absolvição.
Sempre pensei que a Igreja é, pela vontade do seu fundador, uma instituição colegial e não monárquica, e muito menos imperial, porque Cristo, ao dizer anunciai o evangelho a todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-os a observar tudo o que eu vos mandei, concedeu o poder sacerdotal a todo o colégio apostólico de que os bispos são sucessores. O Papa é o Bispo de Roma e, como tal, sucessor de Pedro a quem Cristo constituiu garante da unidade da Fé, vínculo da Caridade e o primeiro no Serviço, como “ servo dos servos de Deus”, dando-lhe o primado entre os apóstolos, um primado de poder, na medida em que na igreja poder é servir. O Sacramento da Ordem contém três graus: diaconado, presbiterado e episcopado. O papado não é sacramento. Cada Bispo é o responsável pela Palavra de Deus, pelos Sacramentos e pela Administração/Caridade, na sua Diocese, como parcela do Povo que Deus lhe confiou. Eu, como pároco, detinha um poder vicarial cuja fonte de legitimidade era o meu Bispo. Nunca entendi por que razão, sendo cada Bispo o único responsável pela ordenação de um sacerdote, sem qualquer interferência do Papa, só este tenha o poder de conceder a dispensa das obrigações inerentes ao estado sacerdotal quando um presbítero pretende deixar o exercício do sacerdócio. Tenho medo das instituições onde é mais fácil entrar do que sair…
Com o decorrer dos anos, comecei a ter algumas dúvidas porque as orientações do Papa começavam a divergir com o que nos dissera D. Florentino.
Mas, como este nem o D. António, nunca deram orientações contrárias ao que nos fora dito, eu mantive-me fiel a essas orientações, no domínio da consciência privada. As maiores interrogações advinham-me quando realizávamos cursos de noivos. Porém nunca contradisse o médico que tratava o tema “diálogo carnal”, onde o assunto do planeamento familiar e do uso da pílula era desenvolvido. “ Os jovens já têm tantos problemas… não vamos nós, cristãos, ainda criar-lhes mais problemas de consciência”, dizia-me o Dr. Ferronha. E eu tinha que concordar e lembrava-me de S. João que dizia Deus é Amor e de S. Paulo que afirmava a lei mata, o espírito vivifica. Mas, embora sabendo que em Moral não há Dogmas, embora a moral seja dogmática, não ficava totalmente descansado. Como cristão, não tinha dúvidas, mas como ministro da instituição eclesiástica…
Sentia-me numa situação paradoxal e interrogava-me se seria correcto continuar ministro de uma instituição com a qual não me identificava num tema tão importante para a vida das pessoas. Não estaria a atraiçoar uma instituição que confiava em mim, não defendendo todas as suas teses? Não estaria a atraiçoar as pessoas que confiavam em mim, apresentando-lhes uma face demasiadamente simpática e atraindo-as para uma instituição que não corresponderia totalmente aquela que lhes apresentava? Não estaria a atraiçoar-me a mim próprio que pusera ao serviço da igreja o meu sacerdócio mas não renunciara à minha humanidade? Perguntas, questões…