O Tanoeiro da Ribeira

quinta-feira, dezembro 07, 2006

UM HOMEM DE “OLHAR SERENO E CALMO”

Os jornais noticiaram. O Professor Ribeiro da Silva jubilou-se da Faculdade de Letra do Porto. Em sua homenagem, realizou-se um colóquio cuja tema era “ Percursos de um historiador”.

Um investigador meticuloso, académico e homem de grande dimensão cultural. Foram as três facetas mais evidentes no decorrer do colóquio de homenagem a Francisco Ribeiro da Silva, autor de basta bibliografia historiográfica. A cidade de Garrett é uma das suas fontes de pesquisa e interesse. (…) É um homem de olhar sereno e calmo. A ele, fica a dever-se a introdução curricular da cadeira de História da Cidade do Porto, na FLUP, bem como a publicação de obras fundamentais para a compreensão do velho burgo e seus ideais de liberdade. Porém, é a sua tese de doutoramento, intitulada “ O Porto e o seu Termo (1580 – 1640). Os homens, as Instituições e o Poder” publicada em 1988, que mais vezes é referida pelos estudiosos.” ( JN. 9/11/06)”

F. Ribeiro da Silva foi um professor de corpo inteiro e de alma plena (…) foi Presidente do Conselho Directivo da Faculdade, vice-Reitor da Universidade em dois mandatos (…) tendo publicado mais de uma centena de trabalhos de investigação.
(…) O perfil humano e académico de Francisco Ribeiro da Silva foi definido pela “ intuión femenina” da professora da Universidade de Málaga, Aurora Gámez, que salientou a aliança entre o investigador e Professor de referência que é, e a simplicidade, disponibilidade e afabilidade humana que sempre revela no seu relacionamento
”, assim escreveu o nosso comum amigo e condiscípulo, Correia Fernandes, na Voz Portucalense de 15 de Novembro de 2006.

É deste homem de “ olhar sereno e calmo”, da sua “ simplicidade, disponibilidade e afabilidade humana” que eu quero falar ao abrigo de uma velha amizade como ele próprio referiu na dedicatória que escreveu na sua tese de doutoramento que teve a amabilidade de me oferecer: “ Ao João Alves Dias, à amizade dos bons velhos tempos. 1.5.990- do Francisco”. São esses “ bons velhos tempos” que quero recordar. E, porque foram longos e variados os caminhos que juntamente percorremos, apenas referirei uma peripécia em cada seminário em que vivemos.

COLÉGIO DE ERMESINDE
1º ANO

Meninos, cedo apartados do carinho e do aconchego da família, encontrámo-nos no colégio de Ermesinde como alunos do primeiro ano do seminário. Éramos passarinhos fora do ninho. Companheiros de sofrimento, partilhávamos o mesmo ideal: queríamos ser padres. Nas aulas, éramos quase colegas de carteira pois entre nós apenas havia o Inácio. Com a reprovação deste logo nos primeiros anos, passámos a ser colegas de carteira; só deixámos de o ser no primeiro ano de teologia, com a chegada do Idalino que, por razões de doença, perdeu um ano, integrando-se no nosso curso.
A nossa amizade começou a forjar-se quando, no colégio de Ermesinde, jogávamos à bugalha por entre as raízes dos carvalhos e das tílias que bordejavam o campo de futebol, tendo por companheiros o Inácio e o Amadeu que eram de Seixezelo, freguesia vizinha de Argoncilhe ,onde o Xico vivia, embora fosse natural de Nogueira da Regedoura. Eram momentos únicos em que nós brincávamos como no recreio da escola primária ou no adro da igreja da nossa terra. Esquecíamos a ausência e, por momentos, regressávamos às nossas terras. Maravilhosos momentos que ainda recordo com um sabor de nostalgia.

SEMINÁRIO DE TRANCOSO/GAIA
2º e 3º ANOS

Em Gaia, no seminário de Trancoso, partilhámos um momento de ansiedade mas fui eu quem acabou por apanhar uma valente bofetada do Pe. Delfim, na aula de Geografia. Eu conto. Na fase final do ano, o Pe Delfim, depois de terminar o programa, ocupava as aulas a fazer chamadas orais sobre a matéria leccionada ao longo do ano. O aluno chamado ia para junto do mapa e, daí, respondia às perguntas. Os outros alunos mantinham os livros fechados e colocados na prateleira debaixo da sua carteira, porque, podiam ser chamados a responder sempre que o colega não soubesse. Um dia quem foi chamado foi o Joaquim Queirós Alves, natural de Soalhães (Muitos anos depois, casei - compensação pela bofetada que apanhei?- Se foi, bendita bofetada! - com uma rapariga de Soalhães e soube que ele era da “Casa das Coriscadas”). Ora o Queirós Alves era um bom aluno em quase todas as disciplinas, mas de Geografia não percebia nada, e então de localizações no mapa era uma perfeita nulidade. Nas cadeiras mais próximas do mapa, estava o Xico, eu e o Freitas Soares. Éramos nós que, à vez, lhe soprávamos as respostas. Assim, o Pe. Delfim perguntava e ele respondia. O Pe. Delfim começou a desconfiar. Então, fez-lhe uma nova pergunta e fixou-se próximo de nós e do Joaquim a olhar para ele. Não podíamos ajudá-lo e assim ele não respondia… Intencionalmente, o professor virou as costas e começou a afastar-se. Logo eu lhe inspirei a resposta ( dizíamos que era “espírito santo de orelha”) e ele, sem qualquer gaguejo ou hesitação, logo respondeu. O Pe. Delfim começou a esfregar as mãos na batina (este era o gesto que ele sempre fazia quando se preparava para mandar uma bofetada.) e aproximando-se do Joaquim, pergunta: - Quem lhe disse? – Não foi ninguém, eu é que soube. – Seu “pedaço de asno” (este o nome que gostava de chamar a um aluno quando ele não sabia responder), ainda está a mentir por cima! E dirige-se ao Xico que estava colocado do meu lado esquerdo: - Foi o Francisco? – Não, não fui, respondeu, meio amedrontado. Depois, vira-se para o Freitas Soares que se sentava ao meu lado direito: - Foste tu? – Não, balbuciou o Freitas Soares, temendo a bofetada que já se adivinhava e parecia sobrevoar as nossas cabeças. – Então, foste tu, ò Dias! (Foi o único professor que me tratou por Dias porque, para todos os outros, sempre fui o João.) – Fui, respondi, serenamente. E uma bofetada voou e descarregou estrepitosa na minha cara. Que grande e sonora bofetada… E o Xico e o Freitas Soares estremeceram. O Queirós Alves apanhou duas. Nunca mais a esqueci até porque era a primeira bofetada que apanhava na escola e só voltei a apanhar outra também no seminário de Trancoso. Na escola primária nunca recebi qualquer castigo: nem bofetadas, nem reguadas, nem palmatoadas. Por isso e por outras razões que, um dia, poderei explicitar, é que o Seminário de Trancoso me marcou tão negativamente. Ainda hoje não gosto de ir a Gaia e, muito menos, passar junto desse seminário que é agora o Colégio de Gaia. Mas quanto ao Pe. Delfim… Era um cara lavada e eu perdoei-lhe porque era “pão-pão¸queijo, queijo”, não fazia acepções de pessoas. Para ele os alunos eram todos iguais o que não acontecia com outros padres. Mais tarde, lembrei-lhe essa bofetada de que ele já não se recordava. Disse-lhe que ele premiou a sinceridade com um grande “estaladão”… mas que estava perdoado.
SEMINÁRIO DE VILAR
4º, 5º, 6º e 7º ANOS
Das muitas recordações que me povoam a memória , gostaria de evocar o que aconteceu numa aula de Filosofia no 6º ou 7º ano. Como disse, éramos colegas de carteira. Numa carteira atrás de nós ficava o Loureiro, bom rapaz com uma alma grande, tão grande como eram compridas as suas pernas. Quando se sentia mais descontraído, enfiava as suas pernas por debaixo das nossas cadeiras. Nós nunca sabíamos se ele metia as pernas debaixo da minha cadeira ou da do Xico. Pelo sim ou pelo não, eu sempre dava uns “coices” ( salvo seja…) a ver se lhe pregava uma canelada. Umas vezes acertava, outras, não. Mas fazia isso mantendo o corpo direito para que o professor não se apercebesse. Quando dava, ouvia o Loureiro a resmungar…” lá fora, tu vais pagar…” Promessas…
O Xico fazia como eu, mas, para não mandar uns “calcanhares” em vão, antes de dar, inclinava-se para ver se as pernas do Loureiro estavam a jeito sob a sua cadeira. Um dia, quando procedia a esse ritual preparatório, deu nas vistas e o Dr. Marques, professor de Filosofia, interrompeu-o perguntando: - Senhor Francisco, o que é que se passa? E o Xico, muito atrapalhado porque, como era bem comportado não estava preparado para aquela interpelação, ficou muito vermelho e quase a gaguejar, respondeu: - “É que eu senti umas coisas a rabear entre as minhas pernas…” E os malandros dos colegas abafaram a gargalhada e sorriram baixinho, interrogando-se sobre o que seriam essas coisas que o Xico sentiu a rabear entre as pernas… nunca pensando que ele se queria referir às pernas do Loureiro… E o Dr. Marques? Por fora, manteve-se sereno, simulando nada ter percebido. Por dentro…” quem vê caras não vê corações…”, deve ter dado uma grande gargalhada…

SEMINÁRIO DA SÉ
8º ANO e 1, 2, 3 e 4º ANOS DE TEOLOGIA
Da Sé, apenas quero recordar aquela nossa ida a minha casa, num dia de passeio. Nos seminários menores, nós, no nosso passeio semanal, que era à 5ª feira, íamos sempre todos juntos e em fila ( em Vilar já íamos mais à vontade), acompanhados por um padre-prefeito. Ele é que definia o destino que poucas variações tinha. No seminário da Sé, podíamos sair, à 4ª feira à tarde, em grupos de três (“Raro uno, nunquam duo; semper tres vel plures”…- raramente um, nunca dois, sempre três ou mais - era a regra de ouro da convivência...). O passeio era à nossa escolha mas não podia ultrapassar o território abrangido pelos transportes colectivos do Porto. A minha casa situava-se fora do perímetro permitido, mas, na ocasião do meu aniversário, eu infringia a lei, convidava dois colegas mais amigos que estavam dispostos a correr os riscos da transgressão, pedia ao senhor Joaquim “Capadeira”/Barbosa que nos viesse buscar na sua carrinha e lá íamos nós comer um salpicão a minha casa. Numa das vezes, lembro-me, o Xico foi o escolhido.
No final do Curso, fomos ordenados presbíteros no dia 4 de Agosto de 1963. Participei na festa da sua Missa Nova em Argoncilhe e, dada a nossa amizade, fui o escolhido pelos condiscípulos, para, no momento dos discursos no final do almoço, falar em nome de todos os seus colegas. Já não me lembro do que disse. Só sei que fui sincero e o Xico e os seus pais gostaram porque no fim me vieram agradecer e dar uma palavra de parabéns.
SACERDÓCIO
No primeiro ano de sacerdócio convivemos bastante porque ele fora nomeado coadjutor das Antas e eu era coadjutor em Santo Ildefonso, ambas as paróquias da cidade do Porto. Com a minha ida para o Cerco do Porto e a sua nomeação para professor de Moral no Alexandre Herculano, a nossa amizade fortaleceu a nossa colaboração pastoral. O Francisco, além das aulas de Moral de que os alunos da minha paróquia muito gostavam, fazia da casa onde vivia com o Armindo e o Pimentel, na rua de Barão de Nova Sintra, um local de encontro e animação de jovens. Esta actividade de animação era complementada com cursos, tipo curso de cristandade para jovens que vários alunos da minha paróquia frequentaram: quando eu tinha um jovem que sabia ser humanamente rico embora não praticante, eu convencia-os a ir a esses cursos. Lembro-me do Zé Eduardo Caramalho (hoje o administrador da Empresa de camionagem VALPI – era neto do fundador da empresa Alberto Pinto) que nunca mais escondeu a admiração que ganhara pelo meu amigo Francisco. Sempre que, na minha actividade pastoral, precisava da sua ajuda sempre estava disponível.
DEPOIS…
Partilhou comigo os seus anseios no início de duas etapas que marcariam toda a sua vida futura: a Família e a Universidade. Quando concorreu para assistente da Faculdade de Letras, já estava a leccionar história em Espinho, se a memória não me atraiçoa, desabafou comigo a sua ansiedade. Com que emoção me falou da Maria Elvira, no início do seu encontro. Foi um homem com sorte este meu amigo: encontrou uma companheira maravilhosa, mulher de fina delicadeza e educação esmerada que, para além do amor, nutre por ele uma grande admiração. Ainda parece que a estou a ouvir a falar das conferências do marido: que enlevo!... É recíproca esta admiração. Na dedicatória da sua tese de doutoramento, consta apenas: “ Á Maria
Elvira
E à Cláudia” - as suas duas grandes paixões, a esposa e a filha.

Para realçar a simplicidade deste grande homem da cultura, quero apresentar apenas quatro situações.

* Quando eu lhe dava um abraço de parabéns por causa da sua tese de doutoramento, ele disse: - ó João, isto do doutoramento não é para “foras de série”. O que é preciso é muito trabalho. Se eu fiz, tu, por maioria de razão, poderias fazer. Sendo casado, é preciso ter uma esposa que colabore, se não é o divórcio. Mas eu tenho sorte e tu também. Temos esposas companheiras e solidárias.

* Em 2001, no dia 6 de Outubro, festejámos o quinquagésimo aniversário da nossa entra da Colégio de Ermesinde. Na reunião de curso do ano anterior organizada pelo Quintas, em Castelo de Paiva, eu fiquei encarregado de organizar o encontro comemorativo. Logo ali, agreguei a mim o José Felismino, o Justiniano e o Correia Fernandes. Quando pensei em quem faria o discurso da praxe, uma vez que iríamos convidar os nossos antigos professores, incluindo o D. Armindo, Bispo do Porto, que foi nosso professor de Dogmática, o nome que me surgiu foi o do Brito. Com a concordância dos colegas, falei com ele que logo aceitou. Entretanto, o Brito começou a sofrer da “Doença de Parkinson” que dificultava a sua expressão oral embora não afectasse a sua capacidade intelectual. Temendo não estar capaz de pronunciar o discurso no dia do encontro, o Brito pediu-me que arranjasse quem o substituísse. Disse-lhe que iria estar bom, mas para que ficasse descansado iria convidar o Xico para o caso de ele não poder. Porém, ele, Brito, continuava a ser o orador oficial do encontro. Depois, falei com o Xico, expliquei-lhe a situação e ele, com toda a simplicidade que sempre o caracterizou disse-me: -“ João. Está bem, podes ficar descansado, se o Brito não puder, eu farei o discurso, mas, entretanto, eu próprio irei insistir com o Brito para ser ele a falar.” Poderia ter-se escusado por, sendo professor catedrático e vice-reitor da Universidade do Porto, não ter sido a minha primeira escolha. Mas, não. Falou com o Brito. O Brito melhorou e, no dia, lá apresentou o seu discurso que é uma verdadeira peça de literatura. Brilhante! Começava assim: “ Vínhamos dos quatros cantos da Diocese. Com um magro enxoval e um número gravado a vermelho em cada peça. ( Agora me lembro que eu era o 536) Cabia tudo num baú de madeira de pinho ou numa mala mais vistosa. Todos trajando de negro, em geral com botas de pneu multiuso ensebadas para aguentarem longas temporadas. Um traço de ingénua ruralidade enformava a quase totalidade dos nossos rostos e das nossas atitudes.” De tal maneira gostei desse discurso que o integrei num opúsculo que o José Felismino se encarregara de fazer com fotografias dos velhos tempos do seminário a que deu o título “ FIGURAS DA(S) MEMÓRIA(S).

* Nas várias dedicatórias que escreveu nas obras que me ofereceu ( “Tremores do homem portuense do Primeiro Quartel do Século XVII”, “ Os Motins do Porto de 1757”, , A Participação do Porto nas Cortes de Lisboa de 1619”, “ Os Deputados pelo Distrito de Aveiro Às Constituintes de 1911”, “ Pirataria e Corso sobre o Porto”) sempre está presente a sua simplicidade e amizade, destacando-se a da última obra citada “ Ao João com um abraço de muita amizade do Xico”

* No passado dia 24 de Novembro, quando com ele me encontrei na Fundação Eng. António José de Almeida, na apresentação do livro do Brito “Por entre as Brumas da Memória”, e lhe dava os meus parabéns pelas homenagens que a faculdade de Letras lhe tinha prestado, recordando-lhe a frase do “Público” que serve de título a este post, logo atalhou: -“ Sereno e calmo… muitas vezes… sabe Deus!" E um sorriso de cumplicidade nos irmanou mais uma vez.

* Propus aos meus colegas do Coro Gregoriano que, para além do CD dedicado à Virgem “ Civitas Virginis”, editássemos um DVD sobre as imagens e altares dedicados a Nª Senhora na Cidade do Porto. E sugeri pedir ao Xico um texto para acompanhar esse DVD/CD. Todos estiveram de acordo. E agora só me falta falar com o Xico, certo de que me irá dizer que sim a não ser que as suas ocupações não lho permitam. Ele ainda desconhece o que lhe está reservado...
Vale a pena viver para ter amigos assim!...