ARQUITECTO TÁVORA - UM HOMEM DE BEM
UM PROTESTO E UMA HOMENAGEM
Está anunciada para hoje à noite, às 00h45, a exibição na RTP2 de um documentário biográfico acerca do arquitecto portuense Fernando Távora com o título “ Fernando Távora, um Homem de Cultura” (este texto começou a ser escrito no dia 18 de Outubro).
Se fiquei contente com a apresentação do documentário, senti-me incomodado com o horário em que vai ser exibido. Perguntei-me: que pretende a TV2 ao colocá-lo a uma hora tão tardia? Será que as preocupações culturais atingem apenas aqueles que, de manhã, não tem horas para se levantarem? A Cultura é apenas apanágio dos noctívagos? O arquitecto Távora, professor durante 50 anos na Escola de Arquitectura do Porto, a quem “ se deve grande parte das transformações que levaram a escola a ser uma das mais importantes do país, onde se formaram, por exemplo, Siza Vieira e Souto Moura” ( Público – 18 de Outubro de 2006), não mereceria uma hora mais acessível aos comuns dos mortais? Quais os critérios de programação da TV2? Não entendo, mas, como sou daqueles que se levantam cedo para trabalharem, não posso dar-me ao luxo de ver o documentário, apesar do interesse que ele me despertou. Essa também uma das razões do meu protesto. Mas protesto também em nome de muitos que conheceram o Arquitecto Távora como homem empenhado em causas sociais junto de comunidades carenciadas, como agora “é bem” dizer. É que Fernando Távora não esgotou a sua actividade como arquitecto, professor, homem de cultura. O seu humanismo transbordou pelas comunidades mais pobres do Porto como o Barredo e os Bairros Sociais. É desse homem de bem, de um riso franco, de um humor desconcertante, de uma emoção à flor da pele, de um humanismo encantador, que eu quero falar.
Quando, em 1969, D. António Ferreira Gomes, recém-regressado do seu exílio político de 10 anos, quis renovar a Direcção da Obra Diocesana de Promoção Social do Porto, já o Arquitecto Távora, como sempre foi conhecido, afirmara a sua componente de homem do povo e com o povo no Centro Social do Barredo que se construiu no largo sob o tabuleiro inferior da Ponte de D. Luís, onde agora se localiza o mercado.
Por isso, D. António temia que ele não pudesse aceitar mais um compromisso de voluntariado social, uma vez que, à data, já era, ou estava para ser, o director da Escola de Belas Artes do Porto . No entanto, encarregou-me, como sacerdote responsável pela Obra, de o abordar. Assim fiz. Telefonei-lhe, solicitando uma audiência, não explicitando o que pretendia e apresentando-me apenas como P.e João e representante do senhor Bispo. No dia e à hora combinada, compareci no seu atelier. Como sempre, lá me apresentei, de camisa sem gravata e sem o tradicional cabeção clerical, com um capacete enfiado no braço dado que, na cidade, sempre me deslocava numa Sachs- Minor de duas velocidades. Recebeu-me cordialmente e, após um longa conversa, acabou por aceitar pertencer à nova Direcção da Obra.
Mais tarde, no meio de um almoço que o D. António oferecera aos elementos da Direcção, na Casa Episcopal, o Arquitecto Távora, com aquele ar descontraído e divertido que todos lhe admirávamos, perguntou:
- O Senhor D. António sabe por que é que eu aceitei pertencer à Obra? Perante o ar interrogativo de todos os presentes, respondeu: - deve-se a esse homem que se senta ao seu lado. E contou: “ quando, certo dia, recebi, com surpresa, um telefonema de um sacerdote a pedir-me uma audiência, que se apresentou, como vosso representante, eu interroguei-me: que é que me quererá o Senhor Bispo? Se for para me pedir mais alguma colaboração, vou dizer que não, ele compreenderá que eu não queira abandonar o Barredo, e isso já me chega. No dia marcado, vesti-me com maior cuidado e dispus-me a receber com a maior dignidade possível tão ilustre representante. Imaginei logo, um sacerdote de idade, vestido de fato preto e de chapéu alto. Qual não foi o meu espanto quando vi entrar um jovem, todo descontraído, camisa à sport , capacete no braço e logo pensei: “ não, a este gajo eu não posso dizer que não”. Até o D. António se riu…
Da convivência que mantivemos semanalmente nas reuniões da Direcção a que sempre comparecia, realçarei apenas alguns momentos.
* Na época em que ele pertenceu à Direcção da Obra, o Director dos Serviços de Habitação da Câmara do Porto era o Senhor Engenheiro D. Luís de Távora com quem nem sempre as relações da Obra foram fáceis, atravessando mesmo certos momentos de conflito aberto. Quando, nós, em tom de brincadeira, dizíamos “ aqui o Arquitecto é que podia resolver a situação, falava com o primo Engenheiro e tudo se resolvia”, ele logo atalhava ”não, não somos primos, eu não tenho títulos e o único brasão que possuo é o do meu trabalho. (E eu nunca soube se pertencia ou não à família dos Távoras).
* Num momento de grande tensão entre o Ministério da Assistência e a Obra Diocesana, quando procurávamos encontrar caminhos para resolver/atenuar o conflito, o Arquitecto, com aquele seu ar de quem parecia ausente diz “ estamos aqui tão preocupados com o Marcelo, e daqui a algum tempo quem vai mandar nisto vai ser aqui o Chico.” Rimo-nos, incluindo o Francisco Sá Carneiro. E foi… Grande profecia!… (Já referi este caso no texto "Conversando com um amigo...)
* Houve um acontecimento que me obrigou a uma tomada de posição que muito incomodou a Câmara do Porto, para quem eu passei a ser o “padre comunista da Obra Diocesana”. Eu conto. De acordo com os regulamentos dos bairros camarários, um homem que iniciasse uma mancebia (agora diz-se “união de facto”), vivendo já num bairro, era expulso de qualquer bairro da Câmara. Aconteceu que, no Bairro da Pasteleira, uma mulher abandonou a casa, deixando o marido com três filhas, todas com menos de quatro anos, tendo, a mais nova, menos de um ano. Depois disso, o marido/pai trouxe para sua casa uma colega da fábrica onde trabalhava. Passaram-se três anos e, quando as crianças já chamavam mãe a esta senhora (a mais nova nunca conheceu outra mãe), alguém os denunciou à Câmara e esta pôs o seu inquilino perante a seguinte dilema: ou mandava a mulher embora ou era expulso do bairro não podendo, nunca mais, viver num bairro camarário. Soubemos do caso e, em reunião de Direcção, já tínhamos decidido intervir a favor daquela família junto da Câmara, quando o Dr. Abel Monteiro, chefe da divisão dos bairros camarários, me telefonou para saber a minha opinião como sacerdote da Obra Diocesana, convencido de que eu iria apadrinhar a atitude da Câmara, dando-lhes a cobertura moral de que muito precisavam. Foi uma conversa longa e dura. Comecei por lhe dizer que, como sacerdote e como representante da Obra, estava em total desacordo com a Câmara. Ataca o Dr. Abel: - Então, o senhor como sacerdote é a favor das mancebias.” Retorqui: “não sei do que sou a favor, só sei, como sacerdote e homem, que o que vocês estão a fazer é uma violência desumana porque querem retirar a três crianças a mulher a quem elas chamam mãe.” – “Mas é uma imoralidade!”- protestou o Dr. Abel. “Imoralidade?” Perguntei. “Diga-me a que título querem actuar junto deste casal, como senhorio ou como instituição pública?” – “Como instituição pública que deve velar pela moralidade e pelos bons costumes”, respondeu o meu interlocutor. “Foi esperto, senhor Doutor porque se dissesse que era como senhorio eu dizia que, como tal, não tinham esse direito (e exemplifiquei com uma hipótese: eu sou padre e se metesse uma mulher em minha casa o meu senhorio não tinha nada com isso.) Mas já que é como instituição pública preocupada com a sanidade moral da cidade, pergunto-lhe: sabe que há grupos de casais que, ao sábado à noite, se reúnem na Foz e, no fim, colocam as chaves de casa em cima da mesa e cada homem tira à sorte a chave da casa da mulher com quem vai dormir nessa noite. Que tem feito a Câmara perante esta pouca vergonha que escandaliza toda a cidade?” – “Bem, isso é outra coisa”, responde o Dr. Abel. – “Pois é, Dr. Abel, esses não dependem de vós, mas aos desgraçados que precisam duma casa para albergar os seus filhos vocês escorraçam-nos, preocupados com a moralidade. Coitados, esses nem dinheiro têm para fazerem asneiras!... É contra isso que nós somos. Deixem-se de hipocrisias! O Dr. Abel não quis ouvir mais e desligou, não sem antes se despedir.
Quando, na reunião semanal da Direcção, narrei o sucedido recebi um abraço do Arquitecto Távora e o apoio de todos. Terminada a reunião, permaneci a conversar com O Arquitecto e o Dr. Sá Carneiro sobre a imoralidade que grassava na cidade e eles comentaram: pois é, Padre João, quanto mais se sobe, maior é a podridão! Nunca mais esqueci esta frase.
* Quando, em 1975, decidi pedir dispensa do exercício do ministério sacerdotal, o D. António impôs-me que eu saísse sem dizer nada e sem me despedir de ninguém quer na Paróquia quer na Obra Diocesana. Na paróquia não obedeci. Mas na Obra, sim. Na última reunião em que participei, nada informei, mas, no final, já fora da Casa Episcopal, sede da Obra, retive o Arquitecto Távora e disse: Senhor Arquitecto queria despedir-me de si. Pensou que se tratava de uma habitual despedida até à semana seguinte. Quando lhe expliquei que ia deixar a Obra e o exercício do sacerdócio, ficou pensativo e perguntou-me por que não dissera na reunião. Contei-lhe da exigência feita pelo D. António e que eu, pela última vez, cumpriria o voto de obediência ao Bispo que fizera no dia da minha ordenação (É interessante dizer que o único voto que os padres diocesanos fazem é o voto de obediência porque, contrariamente aos religiosos, não fazem voto de castidade nem de pobreza). Ficou desgostoso com a atitude do D. António mas não fez qualquer comentário depreciativo, nem eu. Pedi-lhe, então, que apresentasse as minhas despedidas e as minhas desculpas aos restantes membros da Direcção. Deu-me um forte abraço e disse: conte comigo sempre que precisar e muitas felicidades para si e para a sua futura esposa. Para mim, será sempre o Pe João da Obra Diocesana.
* Depois disso, só voltámos a encontrar-nos duas vezes: uma foi nas vésperas da morte do Dr. Sá Carneiro, quando ele, como Primeiro-Ministro, veio inaugurar o novo centro social do bairro de S. Roque, como já recordei no texto “Conversando com um amigo…” ; a outra foi no dia em que ele proferiu a sua última lição como professor da Faculdade de Arquitectura. A sua magistral lição foi pronunciada no salão nobre da reitoria da Universidade. Estava repleto e só fora aberto a convidados. Foi brilhante. Mais uma vez soube aliar a competência científica e o seu sentido de humor a uma visão humanista da arte. No final, fui cumprimentá-lo e estreitámo-nos num abraço longo. Nunca mais nos vimos.
* Das suas muitas obras de arte, espalhadas pelo país e pelo estrangeiro, quero realçar duas, na cidade do Porto, que considero emblemáticas não tanto pelo seu valor artístico mas sim pelo que simbolizam do seu carácter democrático e humanista: a recuperação do Palácio do Freixo e a reconstrução da antiga Câmara Municipal do Porto.
O Palácio do Freixo, jóia do barroco, “ o mais notável edifício civil produzido por Nazoni” (F.Távora) para o seu mecenas, o Deão da Sé do Porto, D. Jerónimo de Távora, senhor de grandes propriedades na província do Entre Douro e Minho, cuja residência habitual se situava em Vandoma, junto da Sé Catedral. Quando se sentia cansado do bulício da cidade e das actividades do Cabido, descia das alturas da Pena Ventosa até à Ribeira onde tomava o seu barco que o conduzia, rio acima, até à sua casa de campo, o seu faustoso palácio, construído num morro sobranceiro a um largo meandro do rio Douro, junto ao esteiro de Campanhã. Por essa razão, a frente principal do palácio está virada ao rio com uma majestosa e elegante escadaria. As traseiras, viradas à terra, passavam despercebidas a quem circulava pela estrada que lhe corria rente. Eu próprio passei muitas vezes por essa estrada e, quando quis conhecer o palácio, senti dificuldades para o encontrar. Era um palácio de costas viradas para o povo, próprio de um rico senhor eclesiástico que vivia no seu mundo fechado e exclusivo. O que fez Fernando Távora deste edifício que, depois de ter passado por mais dois donos, actualmente é propriedade da Câmara Municipal do Porto? Adaptou-o à sua prevista nova função como sede da Junta Metropolitana do Porto (era para servir a vasta região do Grande Porto) e abriu-o à comunidade. Como? Mantendo o edifício original, integrou-o no morro que lhe é sobranceiro e que passou a fazer parte da cerca do palácio. Para isso, deslocou a estrada que lhe passava junto e aproveitou o arvoredo que coroava o morro para projectar um edifício, tipo casa de chá, com uma belíssima paisagem semi-circular sobre o palácio, um extenso trecho do rio, a ponte do Freixo e as quintas da outra margem. Os jardins, a cerca e a casa de chá seriam abertos ao público que deles usufruiria, enquanto o palácio ficaria reservado para os serviços da Junta. Assim, o Arquitecto Távora transformou um palácio fechado, exclusivo de um senhor/tipo feudal, virado ao rio, num local aberto à comunidade e ao serviço da causa pública. Mas…Arquitecto já não viu que o seu projecto foi totalmente desvirtuado: já não será a sede da Junta Metropolitana, a casa de chá não foi construída, os jardins e a cerca mantêm-se agressivamente fechados. O Palácio vai servir para uma Pousada. E o morro? Não se sabe…
A Casa da Câmara- O Porto viveu e cresceu numa dialéctica de confronto: territorialmente, foi a oposição entre os montes e os vales; socialmente, foi o conflito entre o Bispo e a Burguesia. Esta foi a teoria que o Arquitecto Távora defendeu numa conferência a que assisti sobre a cidade do Porto.
Como símbolo do poder eclesiástico, lá está a velha Sé fortificada (Castelo?), construída no século XII (nunca entendi o porquê daquela fortaleza medieval: de quem se defendia o Bispo? Não era de Leão porque, à data da sua construção, Portugal já era independente e o Porto não se situava numa linha de fronteira; dos Mouros, também não, porque a fronteira-sul já se afastara definitivamente para Além-Mondego e já chegava ao Tejo. Penso que os Bispos defendiam-se do povo do seu Couto, especialmente dos Burgueses, e do Rei com quem estiveram em litígio durante toda a Primeira Dinastia. Como símbolo da afirmação do poder civil face ao poder eclesiástico, os vizinhos/burgueses do Porto, no século XV, ergueram uma casa-torre, com 22 metros de altura, onde se reuniu a Câmara do Porto até 1539. Esta casa, entretanto, caiu em total ruína: restavam apenas os alicerces.
Decidida a sua reconstrução pela edilidade, foi o Arquitecto Távora o escolhido para a projectar. E a torre ergueu-se por entre muitos protestos que chegaram a acusá-lo como se fosse um laico que queria afrontar o Bispo. E porquê? Porque a torre, vinda lá do fundo da rua de S. Sebastião, levanta-se bem próxima do flanco-poente da Sé, quebrando o seu isolamento e afrontando a sua imponência. Três faces do prisma são quase completamente fechadas, com especial incidência para a que está virada para a Sé. Já a face voltada para o Porto-Burguês que desce até ao rio, está completamente aberta. Deste modo, o Arquitecto quis fornecer uma vista única sobre o Porto e, simultaneamente, realçar o poder burguês no seu confronto com o poder episcopal. É uma lição de história aquela casa e uma homenagem ao labor das gentes do Porto. Mais uma vez, é o homem do povo e com o povo que está subjacente ao arquitecto: o cristão que afirma a sua cidadania. As minhas homenagens, Arquitecto Távora.
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