INFÂNCIA REVISITADA – PERIPÉCIAS II
Natal e Festa do Menino
Como era diferente do de agora o Natal da minha infância!...
Não havia árvore de natal e, muito menos, o pai natal. Havia, sim, o lindo presépio da igreja com o Menino Jesus, deitado numas palhinhas; a vaca e o burro a aquecê-lo com o seu bafo; Nossa Senhora, de joelhos, a olhar o filho e S. José, de pé, com uma vara florida na mão, a guardar o Menino; em frente da choupana, pastorinhos com ovelhas às costas e baldes de leite ao ombro, mulheres com regueifas enfiadas no braço, mais atrás, os Três Reis Magos (um era preto) com as suas ofertas valiosas de ouro, incenso e mirra; espalhados pelos montes feitos de musgo, com flocos de neve, muitas ovelhas a pastar, guardadas por pastores vestidos com peles de carneiro por causa do frio e acompanhados por enormes cães de guarda, várias mulheres, umas com açafates à cabeça, outras com bilhas debaixo do braço, desciam a caminho da cabana com ofertas para o Menino; pelas quebradas dos montes, viam-se mulheres a lavar no rio (Jordão), homens a pescar, um moleiro a caminho do moinho com o seu jumento carregado de taleigas e crianças a brincar com rodas e ganchetas; num poço, mulheres, com um balde, tiravam água para os seus canecos; homens de capote e cajado na mão guardavam os bois que pastavam nas encostas menos inclinadas; uma banda de música, toda aprumada e orgulhosa das suas fardas, enchia a estrada que, lá do alto, descia até ao largo onde estava a gruta; mais ao fundo, erguia-se, terrível, Jerusalém, rodeada de muralhas e repleta de palácios onde vivia o Herodes “mau” que queria matar o Menino Jesus e mandou matar “os Santos Inocentes”. Por cima de tudo, uma linda e grande estrela e muitas luzinhas.
No Natal, acendia-se um grande lustre no meio da igreja com lâmpadas coloridas. Que festa!... Era como no céu, dizia-me minha mãe.
E não estávamos à espera de receber prendas. Queríamos, como os pastorinhos e os Reis Magos, levar prendas ao Menino. Para isso, os pais davam-nos uma prenda, grande ou pequena conforme as suas posses, e nós lá íamos levar ao presépio, na missa do dia de Natal (quando era criança, não se celebrava a Missa do Galo na minha terra) quando íamos beijar o Menino. Com que entusiasmo o fazíamos!... E o Menino Jesus parecia sorrir-nos a agradecer!... O nosso prazer, a nossa alegria não estava no receber mas no dar. Era o Menino que nascia, era ele que merecia prendas. As nossas ofertas eram leiloadas no dia da grande festa que fazíamos ao Menino, no primeiro dia de Janeiro. Que enlevo sentíamos quando víamos a nossa prenda na mão do leiloeiro! Os pais, que podiam, ofereciam aos filhos uma camisola nova, umas calças, umas chancas, não por ser Natal, mas para estrearem na Festa do Menino. Assim, o Natal e a Festa do Menino formavam um todo indissociável na sua significação: a consoada de Natal era complementada com a ceia da Festa do Menino. A ceia do dia 31 de Dezembro não celebrava a passagem de ano, mas, sim, a Festa do Menino. O ritual das duas ceias era o mesmo: eu até gostava mais da do dia 31 porque, à meia-noite, víamos, da janela da cozinha, o fogo de artifício que era lançado no adro da igreja que nos ficava de fronte. Como eram bonitas aquelas estrelinhas a colorir a noite de muitas e variegadas cores!...
As travessas com batatas, bacalhau e couves fumegavam no meio da mesa. Nessa noite, comia-se bacalhau à discrição e cada um servia-se à vontade do azeite. Este era do novo que, propositadamente, era feito antes do Natal, no lagar de azeite do Mondega. Em minha casa, havia o costume de fazer-se um molho em que se misturava vinho tinto com azeite que era fervido: todos gostavam, mas eu, muito pequenino enjoei-o e, por, isso, minha mãe sempre punha na mesa uma almotolia de azeite para quem se quisesse servir. Os doces tradicionais não eram muitos, mas eram bons. Limitavam-se, que me lembre, à aletria, às rabanadas e à sopa-seca. As rabanadas eram de vinho tinto e de ovos. Meu pai só gostava das de vinho enquanto eu gostava mais das de ovos. O que dava mais trabalho a fazer era a sopa-seca porque exigia que se aquecesse o forno. Por isso, minha mãe só a fazia uma vez: num ano, no Natal, noutro, no Menino. Só depois de eu casar é que começou a fazer sopa-seca nas duas vezes. (Era um miminho que gostava de fazer à minha Anita que gostava muito deste doce dos pobres que, antes, desconhecia: é só pão, água, açúcar e canela.). Depois da ceia, entretínhamo-nos a jogar o “rapa” aos pinhões cujas pinhas dos pinheiros mansos eram trazidas das cavadas nos dias anteriores: toda a família participava. Os vizinhos mais amigos, depois da ceia, vinham até minha casa para passar um bocado da noite connosco ou para assistir ao fogo de artifício na festa do Menino. E, depois, minha mãe servia sempre um chá a toda a gente.
A Festa do Menino, ponto culminante das celebrações natalícias, ganhava ao Natal em importância social: as raparigas que eram “criadas de servir” no Porto, iam à terra no dia da Festa do Menino e não no Natal. Como era bonito ver aquelas crianças e aqueles jovens passear no adro ,ufanos da sua roupa nova! Que vaidade!... Quantos namoros se iniciavam nessa festa. Era a grande festa da freguesia que atraia à terra todos os que tinham saído para outras paragens e congregava as populações das freguesias vizinhas. De tarde, antes do leilão, saía a procissão que ia dar a volta ao cruzeiro dos Moirais que, nesse dia, estava recoberto de flores: era aí, num púlpito improvisado, que o pregador fazia o “sermão do Menino”. À saída da igreja e junto do cruzeiro, as raparigas esmeravam-se com belíssimos tapetes de flores.
Os mordomos da festa eram os rapazes da terra. Ser mordomo correspondia a um rito de passagem. Era a apresentação à sociedade que correspondia ao baile de debutantes dos "fidalgos" da cidade…Mas importante, importante era ser o juiz. Esse só podia ser o filho de uma pessoa com posses para se responsabilizar pelas despesas da festa. Por isso, numa casa em que houvesse vários filhos, só o mais velho é que tinha que cumprir essa obrigação. Em minha casa, foi o meu padrinho. Ainda me lembro desse dia. E não me esquecerei porque estava com uma tremenda dor de dentes por causa de um dente do leite. Quando, na véspera, a Banda de Música da minha terra veio a nossa casa tocar em homenagem ao juiz e várias dúzias de foguetes estoiraram no céu, eu, agarrado à saia da mãe chorava… Mas, mesmo assim, ainda vim à porta para ver os músicos todos perfilados, com o Mestre Teixeira a dirigi-los. Boas memórias, mesmo com dores de dentes!...
Esta festa só terminou no tempo do Pe. Torres Maia, meu velho amigo e que eu muito admirava como sacerdote, mas que não compreendeu o significado sociológico daquela festa. É nitidamente a situação de alguém que veio de fora e não compreendeu um rito porque desconhecia toda a dimensão do mito que lhe estava subjacente: viu apenas a ostentação e o gasto supérfluo numa paróquia pobre, o que contrariava o espírito do evangelho. Fez tantas coisas boas este meu amigo, mas… “Não há homens perfeitos.”
Os serões nas longas noites de Inverno
A minha casa era, se não a única, uma das poucas casas que possuía electricidade. Meu pai meteu a luz para trazer a electricidade para o lugar. O contador tinha escrito:J.M.D-1936 e o meu pai, a brincar, perguntava o que queriam dizer aquelas letras? E respondia:”Já Morreu o Dono” (Sim, meu pai, agora é a sério. Mas não, para mim tu não morreste. Para além da vida eterna em que acredito, tu vives na minha memória e na daqueles que mais amo - e lembrei-te neste tempo de Natal.). Por isso, nas noites de Inverno, os homens da aldeia vinham a minha casa para jogar a sueca ou a bisca dos nove; reuniam-se à volta da masseira onde minha mãe amassava a farinha que ficava no centro da cozinha. E eu assistia. Meu pai formava sempre par com o Ti Zé Branco, seu velho amigo dos tempos de infância. Eu era sempre pelo meu pai. Mas quando ele jogava contra o meu padrinho, já era pelo meu padrinho e o meu pai queixava-se: então agora já não és por mim? Porém, os momentos de que eu mais gostava e de guardo recordação inesquecível, era quando o meu pai cantava o fado. O meu pai tocava guitarra e o Ti Zé Branco acompanhava-o ao violão. Nessas ocasiões, reuníamo-nos à volta da lareira onde crepitava a fogueira, por baixo da chaminé com salpicões e presuntos a defumarem. Que coisa maravilhosa!... Que bem meu pai cantava!...
Estrada de Santiago
Nas noites muito quentes de verão, quando dentro das casas não se podia aguentar o calor, reuníamo-nos fora da porta da casa. Deitávamo-nos de costas sobre uma pesada pedra de lousa que cobria o poço e que mantinha o calor do sol. Em noites de céu límpido, especialmente, em tempo de lua-nova em que o luar não ofuscava o brilho das estrelas, estas pareciam candeias a iluminar a noite, eram as “ candeias de Nossa Senhora”. Meu pai, sem apontar directamente para as estrelas ( não se deve apontar para as estrelas porque faz nascer cravos nas mãos), falava-me da “Estrela da Tarde”/Estrela da Manhã” do “Sete Estrelo”, das “Três Marias”. Indicava-me a “Estrela Polar” e dizia-me que era por ela que as pessoas se guiavam de noite quando se perdiam. Minha mãe explicava-me que Nossa Senhora era a”Estrela da Manhã” como se rezava na ladainha. E fazia-me reparar naquela mancha esbranquiçada que corria o céu de sul para norte e explicava-me que era a “Estrada de Santiago”. Quem não fosse a Santiago em vida, iria lá depois da morte através daquela estrada que o levava a Santiago. Assim, desde pequenino, Santiago de Compostela entrou no meu imaginário com o desejo de lá ir em vida para não ter de passar por aquela estrada que me parecia tão lá no alto. ... Por isso, logo que tive carro, Santiago, depois de Tui, foi a primeira cidade da Galiza que eu visitei. E ainda hoje Santiago desperta em mim ressonâncias nostálgicas dessa infância, já longínqua no tempo mas tão próxima na memória.
Fogo!... Fogo!... Fogo!...
Gritos de "aquederrei" rasgaram a noite e fizeram estremecer a escuridão: Fogo!...Fogo!...Fogo!... Os sinos da igreja repicaram. Acordámos “assarapantados”. Saltámos da cama e corremos para as janelas para ver onde era. As vozes entrechocaram-se, gritámos em uníssono: é na casa do Gaio!... Ali mesmo perto de nós, ao fundo da nossa cortinha, alterosas línguas de fogo engoliam a noite, os barrotes do telhado rangiam com o fogo, as telhas caíam com estrondo. Meus irmãos, com machados e alviões, correram pela cortinha abaixo, meu pai foi abrir a nossa mina para que a água chegasse perto do fogo, minha mãe, com baldes na mão, saiu na pegado dos filhos. Só eu fiquei em casa, à janela da sala melhor, amedrontado com medo das “coisas roims”, os olhos fixos naquela enorme labareda que se erguia no escuro e ouvindo os gritos de aflição que enchiam o silêncio da noite. Que imagens!... Que medo!...Ardeu todo o telhado. Fiquei impressionado e, por isso, sempre que ia à igreja rezava ao S. Marçal, que tinha ao seu lado um torre em chamas, para nos salvar dos incêndios.
Como era diferente do de agora o Natal da minha infância!...
Não havia árvore de natal e, muito menos, o pai natal. Havia, sim, o lindo presépio da igreja com o Menino Jesus, deitado numas palhinhas; a vaca e o burro a aquecê-lo com o seu bafo; Nossa Senhora, de joelhos, a olhar o filho e S. José, de pé, com uma vara florida na mão, a guardar o Menino; em frente da choupana, pastorinhos com ovelhas às costas e baldes de leite ao ombro, mulheres com regueifas enfiadas no braço, mais atrás, os Três Reis Magos (um era preto) com as suas ofertas valiosas de ouro, incenso e mirra; espalhados pelos montes feitos de musgo, com flocos de neve, muitas ovelhas a pastar, guardadas por pastores vestidos com peles de carneiro por causa do frio e acompanhados por enormes cães de guarda, várias mulheres, umas com açafates à cabeça, outras com bilhas debaixo do braço, desciam a caminho da cabana com ofertas para o Menino; pelas quebradas dos montes, viam-se mulheres a lavar no rio (Jordão), homens a pescar, um moleiro a caminho do moinho com o seu jumento carregado de taleigas e crianças a brincar com rodas e ganchetas; num poço, mulheres, com um balde, tiravam água para os seus canecos; homens de capote e cajado na mão guardavam os bois que pastavam nas encostas menos inclinadas; uma banda de música, toda aprumada e orgulhosa das suas fardas, enchia a estrada que, lá do alto, descia até ao largo onde estava a gruta; mais ao fundo, erguia-se, terrível, Jerusalém, rodeada de muralhas e repleta de palácios onde vivia o Herodes “mau” que queria matar o Menino Jesus e mandou matar “os Santos Inocentes”. Por cima de tudo, uma linda e grande estrela e muitas luzinhas.
No Natal, acendia-se um grande lustre no meio da igreja com lâmpadas coloridas. Que festa!... Era como no céu, dizia-me minha mãe.
E não estávamos à espera de receber prendas. Queríamos, como os pastorinhos e os Reis Magos, levar prendas ao Menino. Para isso, os pais davam-nos uma prenda, grande ou pequena conforme as suas posses, e nós lá íamos levar ao presépio, na missa do dia de Natal (quando era criança, não se celebrava a Missa do Galo na minha terra) quando íamos beijar o Menino. Com que entusiasmo o fazíamos!... E o Menino Jesus parecia sorrir-nos a agradecer!... O nosso prazer, a nossa alegria não estava no receber mas no dar. Era o Menino que nascia, era ele que merecia prendas. As nossas ofertas eram leiloadas no dia da grande festa que fazíamos ao Menino, no primeiro dia de Janeiro. Que enlevo sentíamos quando víamos a nossa prenda na mão do leiloeiro! Os pais, que podiam, ofereciam aos filhos uma camisola nova, umas calças, umas chancas, não por ser Natal, mas para estrearem na Festa do Menino. Assim, o Natal e a Festa do Menino formavam um todo indissociável na sua significação: a consoada de Natal era complementada com a ceia da Festa do Menino. A ceia do dia 31 de Dezembro não celebrava a passagem de ano, mas, sim, a Festa do Menino. O ritual das duas ceias era o mesmo: eu até gostava mais da do dia 31 porque, à meia-noite, víamos, da janela da cozinha, o fogo de artifício que era lançado no adro da igreja que nos ficava de fronte. Como eram bonitas aquelas estrelinhas a colorir a noite de muitas e variegadas cores!...
As travessas com batatas, bacalhau e couves fumegavam no meio da mesa. Nessa noite, comia-se bacalhau à discrição e cada um servia-se à vontade do azeite. Este era do novo que, propositadamente, era feito antes do Natal, no lagar de azeite do Mondega. Em minha casa, havia o costume de fazer-se um molho em que se misturava vinho tinto com azeite que era fervido: todos gostavam, mas eu, muito pequenino enjoei-o e, por, isso, minha mãe sempre punha na mesa uma almotolia de azeite para quem se quisesse servir. Os doces tradicionais não eram muitos, mas eram bons. Limitavam-se, que me lembre, à aletria, às rabanadas e à sopa-seca. As rabanadas eram de vinho tinto e de ovos. Meu pai só gostava das de vinho enquanto eu gostava mais das de ovos. O que dava mais trabalho a fazer era a sopa-seca porque exigia que se aquecesse o forno. Por isso, minha mãe só a fazia uma vez: num ano, no Natal, noutro, no Menino. Só depois de eu casar é que começou a fazer sopa-seca nas duas vezes. (Era um miminho que gostava de fazer à minha Anita que gostava muito deste doce dos pobres que, antes, desconhecia: é só pão, água, açúcar e canela.). Depois da ceia, entretínhamo-nos a jogar o “rapa” aos pinhões cujas pinhas dos pinheiros mansos eram trazidas das cavadas nos dias anteriores: toda a família participava. Os vizinhos mais amigos, depois da ceia, vinham até minha casa para passar um bocado da noite connosco ou para assistir ao fogo de artifício na festa do Menino. E, depois, minha mãe servia sempre um chá a toda a gente.
A Festa do Menino, ponto culminante das celebrações natalícias, ganhava ao Natal em importância social: as raparigas que eram “criadas de servir” no Porto, iam à terra no dia da Festa do Menino e não no Natal. Como era bonito ver aquelas crianças e aqueles jovens passear no adro ,ufanos da sua roupa nova! Que vaidade!... Quantos namoros se iniciavam nessa festa. Era a grande festa da freguesia que atraia à terra todos os que tinham saído para outras paragens e congregava as populações das freguesias vizinhas. De tarde, antes do leilão, saía a procissão que ia dar a volta ao cruzeiro dos Moirais que, nesse dia, estava recoberto de flores: era aí, num púlpito improvisado, que o pregador fazia o “sermão do Menino”. À saída da igreja e junto do cruzeiro, as raparigas esmeravam-se com belíssimos tapetes de flores.
Os mordomos da festa eram os rapazes da terra. Ser mordomo correspondia a um rito de passagem. Era a apresentação à sociedade que correspondia ao baile de debutantes dos "fidalgos" da cidade…Mas importante, importante era ser o juiz. Esse só podia ser o filho de uma pessoa com posses para se responsabilizar pelas despesas da festa. Por isso, numa casa em que houvesse vários filhos, só o mais velho é que tinha que cumprir essa obrigação. Em minha casa, foi o meu padrinho. Ainda me lembro desse dia. E não me esquecerei porque estava com uma tremenda dor de dentes por causa de um dente do leite. Quando, na véspera, a Banda de Música da minha terra veio a nossa casa tocar em homenagem ao juiz e várias dúzias de foguetes estoiraram no céu, eu, agarrado à saia da mãe chorava… Mas, mesmo assim, ainda vim à porta para ver os músicos todos perfilados, com o Mestre Teixeira a dirigi-los. Boas memórias, mesmo com dores de dentes!...
Esta festa só terminou no tempo do Pe. Torres Maia, meu velho amigo e que eu muito admirava como sacerdote, mas que não compreendeu o significado sociológico daquela festa. É nitidamente a situação de alguém que veio de fora e não compreendeu um rito porque desconhecia toda a dimensão do mito que lhe estava subjacente: viu apenas a ostentação e o gasto supérfluo numa paróquia pobre, o que contrariava o espírito do evangelho. Fez tantas coisas boas este meu amigo, mas… “Não há homens perfeitos.”
Os serões nas longas noites de Inverno
A minha casa era, se não a única, uma das poucas casas que possuía electricidade. Meu pai meteu a luz para trazer a electricidade para o lugar. O contador tinha escrito:J.M.D-1936 e o meu pai, a brincar, perguntava o que queriam dizer aquelas letras? E respondia:”Já Morreu o Dono” (Sim, meu pai, agora é a sério. Mas não, para mim tu não morreste. Para além da vida eterna em que acredito, tu vives na minha memória e na daqueles que mais amo - e lembrei-te neste tempo de Natal.). Por isso, nas noites de Inverno, os homens da aldeia vinham a minha casa para jogar a sueca ou a bisca dos nove; reuniam-se à volta da masseira onde minha mãe amassava a farinha que ficava no centro da cozinha. E eu assistia. Meu pai formava sempre par com o Ti Zé Branco, seu velho amigo dos tempos de infância. Eu era sempre pelo meu pai. Mas quando ele jogava contra o meu padrinho, já era pelo meu padrinho e o meu pai queixava-se: então agora já não és por mim? Porém, os momentos de que eu mais gostava e de guardo recordação inesquecível, era quando o meu pai cantava o fado. O meu pai tocava guitarra e o Ti Zé Branco acompanhava-o ao violão. Nessas ocasiões, reuníamo-nos à volta da lareira onde crepitava a fogueira, por baixo da chaminé com salpicões e presuntos a defumarem. Que coisa maravilhosa!... Que bem meu pai cantava!...
Estrada de Santiago
Nas noites muito quentes de verão, quando dentro das casas não se podia aguentar o calor, reuníamo-nos fora da porta da casa. Deitávamo-nos de costas sobre uma pesada pedra de lousa que cobria o poço e que mantinha o calor do sol. Em noites de céu límpido, especialmente, em tempo de lua-nova em que o luar não ofuscava o brilho das estrelas, estas pareciam candeias a iluminar a noite, eram as “ candeias de Nossa Senhora”. Meu pai, sem apontar directamente para as estrelas ( não se deve apontar para as estrelas porque faz nascer cravos nas mãos), falava-me da “Estrela da Tarde”/Estrela da Manhã” do “Sete Estrelo”, das “Três Marias”. Indicava-me a “Estrela Polar” e dizia-me que era por ela que as pessoas se guiavam de noite quando se perdiam. Minha mãe explicava-me que Nossa Senhora era a”Estrela da Manhã” como se rezava na ladainha. E fazia-me reparar naquela mancha esbranquiçada que corria o céu de sul para norte e explicava-me que era a “Estrada de Santiago”. Quem não fosse a Santiago em vida, iria lá depois da morte através daquela estrada que o levava a Santiago. Assim, desde pequenino, Santiago de Compostela entrou no meu imaginário com o desejo de lá ir em vida para não ter de passar por aquela estrada que me parecia tão lá no alto. ... Por isso, logo que tive carro, Santiago, depois de Tui, foi a primeira cidade da Galiza que eu visitei. E ainda hoje Santiago desperta em mim ressonâncias nostálgicas dessa infância, já longínqua no tempo mas tão próxima na memória.
Fogo!... Fogo!... Fogo!...
Gritos de "aquederrei" rasgaram a noite e fizeram estremecer a escuridão: Fogo!...Fogo!...Fogo!... Os sinos da igreja repicaram. Acordámos “assarapantados”. Saltámos da cama e corremos para as janelas para ver onde era. As vozes entrechocaram-se, gritámos em uníssono: é na casa do Gaio!... Ali mesmo perto de nós, ao fundo da nossa cortinha, alterosas línguas de fogo engoliam a noite, os barrotes do telhado rangiam com o fogo, as telhas caíam com estrondo. Meus irmãos, com machados e alviões, correram pela cortinha abaixo, meu pai foi abrir a nossa mina para que a água chegasse perto do fogo, minha mãe, com baldes na mão, saiu na pegado dos filhos. Só eu fiquei em casa, à janela da sala melhor, amedrontado com medo das “coisas roims”, os olhos fixos naquela enorme labareda que se erguia no escuro e ouvindo os gritos de aflição que enchiam o silêncio da noite. Que imagens!... Que medo!...Ardeu todo o telhado. Fiquei impressionado e, por isso, sempre que ia à igreja rezava ao S. Marçal, que tinha ao seu lado um torre em chamas, para nos salvar dos incêndios.
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