O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, dezembro 12, 2006

INFÂNCIA REVISITADA – PERIPÉCIAS I

Hoje, almocei um arroz de grelos ou, como eu gosto de dizer, grelos com arroz. Que delícia!... Por contraste, lembrei-me da minha infância: não gostava de grelos porque os achava azedos. E assim, recordei os nabais dos nossos campos das Lamas, das Vinhas. Não, grelos, não!... Foi por aqui que se iniciou esta minha visita aos tempos guardados nos escaninhos da memória.

O Primeiro acidente de carro
Nos meus primeiros meses, minha mãe sempre ficava em casa a olhar por mim. Quando tinha de ir levar a comida às cavadas e aos campos ou ia ajudar nos próprios trabalhos nos campos, era o meu irmão António – tinha 10 anos- que ficava a tomar conta de mim. Certo dia, teria eu uns 4 meses, minha mãe estava a sachar o campo do Traganhal, que ficava (e fica) ao lado da estrada nacional nº 15-Porto-Vila Real (que nós chamávamos estrada real) junto da loja da Tia Florinda, hoje o restaurante “Barbosa Leão”. À hora da mamada, o António veio trazer-me à minha mãe, num carro de madeira que empurrava. No entroncamento com a estrada nacional, O caminho (que mais tarde deu origem à estrada de macadame) que vinha da minha casa fazia uma pequena rampa. Para vencer esse obstáculo,meu irmão empurrou o carro com tanta força que este capotou e eu caí. (Esta história faz-me lembrar a anedota do velho que, sempre que queria montar o burro, apoiava o pé no estribo e dizia: - Deus me ajude. Um dia, fez tanta força que passou por cima do animal e, ao cair, resmungou: -Mas não tanto!...). O António começou a berrar e a minha mãe, o campo ficava próximo, lá veio toda aflita socorrer-me. Este foi o meu primeiro acidente de carro. Quando por lá passo sempre recordo. E o eu pensamento vai até junto deles…

Quando eu fui a apartar…
Ir a apartar era uma espécie de instituição familiar. Quando a mãe achava que era tempo do seu filho deixar de mamar, mandava-o para casa de um familiar, na maioria dos vezes, para a casa de uma das avós, para o filho se habituar a passar sem a mamada.
Foi o aconteceu comigo. Também eu fui a apartar para casa da minha avó paterna da casa da Quintã, (chamava-se Margarida como a minha avó materna da Casa da Ponte que já tinha falecido.). Não sei que idade teria, mas já não deveria ser muito bebé porque retenho na memória (talvez as minhas primeiras memórias) alguns factos ocorridos nessa época. Terá sido pela Primavera. Quem me levou para a casa da minha avó, foi o tio Américo Sapateira que, a mando do meu pai ( era o nosso criado nessa época), ia lá buscar umas telhas de que o meu pai precisava: ao para lá, levou-me a mim; ao para cá, trouxe as telhas.
Não sei quanto tempo precisei para me desabituar da mama.( ?...) No entanto, recordo-me de alguns factos que me poderão ajudar no cálculo.
Era o tempo das sachas, toda a família foi sachar para a “ Quelha de Agra de Cima”. A meio da tarde, deu-me a fome. Não sei se apanhei a minha avó desprevenida ou já tinha esgotado a provisão, o que sei é que me levaram a casa do Ti’Américo Peidão (o nome advinha-lhe da fama que ele não enjeitava: dizia que gostava de vir ao Porto porque aproveitava a passagem dos carros eléctricos para dar livre trânsito às suas flatulências; como tocava trombone na Banda de Campo, dizia que acompanhava o ritmo do instrumento com outros barulhos menos musicais), cuja esposa me deu de comer: não sei o quê o que sei é nunca esqueci que fiquei sem fome.
Na cortinha da casa, minha avó deu-me a comer um fruto, grande e muito vermelhinho que, ali mesmo, colheu de uma árvore. Como me soube bem esse fruto!... Não sabia o seu nome. Mais tarde, já adulto, falei à minha tia Maria Rosa sobre essa árvore. Perguntei-lhe se sabia o nome. E ela respondeu-me que a única árvore com frutos vermelhos que existira na cortinha era uma cerejeira. Ainda insisti, porque a imagem que eu tinha era de um fruto grande e não pequeno como uma cereja. Não, não havia outra árvore. Tudo é relativo: pequeno como era, a cereja pareceu-me um fruto enorme. O certo é que gostei e ainda hoje sou uma desgraça quando vejo cerejas à minha frente: sigo a teoria do velho Abade de santo Ildefonso – se têm buraco, é porque o bicho já saiu; se não têm, é porque o bicho ainda não entrou…
O meu regresso a casa, deu-se num domingo de manhã. Quem me trouxe foi o Zé Pequeno que era criado na Quintã. Chovia. Lembro-me, perfeitamente, de, quando passava num carreiro de ardósia que havia depois passar a Ponte dos Arcos, por cima dos moinhos da Casa da Ponte, donde era a minha mãe, o meu carregador, que me trazia “às carrapichas”, pôs-me no chão para abrir o guarda-sol (naquele tempo, não havia guarda-chuvas, por isso os homens que os consertam são os guarda-soleiros e não guarda-chuveiros). Regressei nesse domingo porque, em minha casa, era dia de sarrabulho. Como era uma festa, o menino tinha que estar presente. Era Inverno. A matança do porco só se podia realizar quando estava muito frio para que a carne não se estragar. De preferência, tempo frio e seco. Costumávamos matar dois ou três porcos por ano: entre Dezembro e Fevereiro. Eu terei regressado em Dezembro a tempo de passar o natal em minha casa.
Se as cerejas amadurecem em Maio, a sacha do milho se realiza em Junho e o sarrabulho foi em Dezembro, o tempo da minha apartação terá durado mais de meio ano. Mas…valeu a pena: a partir daí, não consta que tenha voltado a mamar…


Uma esmolinha…
Quando cresci mais um bocadinho, minha mãe passou deixar-me em casa da Ti’Albina, uma mulher, natural do Marco (foi a primeira vez que ouvi falar de um terra bendita que, mais tarde me deu um presente bem precioso…- recompensa? “ Deus escreve Direito por linhas tortas”?), pobre que vivia perto de nós. Sem minha mãe saber, ela pegava em mim e levava-me para o “Pinheiro Manso” (o local ainda lá está, no entroncamento da estrada nacional n.º15 e a estrada que vai para Recarei, perto da saída de Campo da A4). Aí, eu ao colo da Tia Albina ou agarrado à sua saia, passando por ser seu filho, estendia a mão à caridade, pedindo uma esmola às pessoas que passavam de carro. E dizem que tinha sorte porque, quando era criança, era muito bonito ( hoje, já não dizem o mesmo. É pena!...) . Minha mãe, quando soube ralhou com ela e retirou-me da sua custódia, mas eu nunca me queixei e continuei a gostar da Tia Albina. Eram tempos difíceis aqueles tempos porque, além do racionamento e carestia de vida motivados pela 2ª Guerra, houve uma grande crise nas pedreiras de ardósia, onde trabalhava muita gente, levando muitas pessoas para o desemprego. Quando já sacerdote precisava de pedir ajuda económica para qualquer obra da Paróquia , costumava contar na Missa esta história e terminava: - “Habituei-me cedo a pedir, mas, como vêem, não era nem é para mim. Só espero ter o jeito que dizem que eu tinha naqueles tempos de menino! “ As pessoas sorriam e… dava sempre resultado.
Luta de galos…
A partir daí, passei a acompanhar a minha mãe. Numa das vezes em que me levou quando foi lavar a roupa para o lavadouro que tínhamos junto da nossa mina do Moreira, um galo, enquanto eu brincava sozinho, saltou-me aos olhos e ia-me cegando não fora o socorro pronto e aflito da minha mãe e das vizinhas que a acompanhavam. Mesmo assim, ainda tenho um prega na pálpebra do olho direito que ficou como sinal dessa luta que travei contra o raio do galo. Mas não aprendi… Quando criança, gostava de me armar em galo, mas várias vezes apanhei na crista…

Os ponteiros do relógio
Em Recarei, celebrava-se anualmente a festa de Sant’Águeda com uma grande romaria cujo momento mais esperado era o concurso de gado bovino. Por aquelas redondezas não havia ninguém, especialmente lavradores, que faltasse a essa festa. As crianças que não podiam ir à festa por ser bastante afastada (mais de cinco quilómetros), juntavam-se, ao fim da tarde, num caminho ao cimo da nossa cavada da cruz ( que tinha na sua cabeceira uma grande pedra de granito com uma cruz desenhada para lembrar um homem que, em tempos recuados, ali fora assassinado por ladrões) para assistir ao regresso dos romeiros e, de um modo especial, admirar as juntas de bois que, garbosamente, ostentavam a sua corpulência, tocados pelos seus, não menos garbosos, donos, de vara na mão e chapéu na cabeça, que se orgulhavam da grandeza da sua casa de lavoura que aqueles animais simbolizavam (os bois do Manuel Catrino, de Vilarinho de Baixo, que depois morreu quase na miséria, eram os que mais nos entusiasmavam pela sua compleição física, pela galhardia dos cornos, pelo brilho lustroso do pêlo ). Havia um outro motivo (secreto) que atraía aí a criançada mais crescida: jogávamos um jogo , cujo nome já não recordo, em que ora os rapazes traziam as cachopas “às carrapichas”, ora eram elas que transportavam os rapazes – brincadeiras proibidas (os adultos estavam todos para a festa…) porque aquele roçar nas raparigas constituía para muitos a sua primeira experiência erótico-sexual…
As crianças mais pequenas ficavam em casa, com as mães à espera das rosquilhas que os pais, à noite, lhe traziam da festa (havia três romarias que davam direito a rosquilhas: a Sant’Águeda, no dia 5 de Fevereiro, o S. Simão em Urrô /Penafiel nos finais de Outubro e o S. Martinho de Penafiel em 11 de Novembro).
Foi num dia de Sant’Águeda que fiz uma asneira que poderia ter-me custado umas sapatadas.. O meu pai tinha um relógio de bolso que sempre estava pendurado na parede ao lado da sua cama para controlar as horas durante a noite. Nas minha brincadeiras, subi para a cama e peguei no relógio. O relógio estava sem vidro. Eu, movido pela curiosidade, quis ver se os ponteiros andavam. Mas forcei-os tanto que parti o ponteiro dos minutos. Minha mãe, quando deu por ela, foi a correr a casa do António da Lamosa, que era relojoeiro, para ele pôr um ponteiro novo. Como não tinha um igual, colocou um outro ponteiro e minha mãe lá pôs o relógio na parede. Quando o meu pai chegou com as rosquilhas ninguém abriu o bico e ele não deu por nada: só via as horas à noite e a lâmpada era fraquinha para não gastar electricidade… E a minha mãe lá me safou mais uma vez… Que Deus te recompense pela tua bondade, mãe.