O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, dezembro 26, 2006

EM BUSCA DA PAZ DE ESPÍTITO

Hoje, de manhã, na minha “sala de leitura matinal”, veio-me à mão a revista Noticias Magazine publicada pelo JN, na véspera de Natal. Comecei a ler com alguma curiosidade porque, logo no editorial, se afirmava: “ Este ano partimos em busca do Natal mais português distante dos centros comerciais e das árvores cheias de enfeites”.
Depois de ler o artigo “ Os burros mostram a sua raça” que fala longamente sobre a “preservação dos burros mirandeses”, dei de caras com uma entrevista em que o articulista escrevia: “ Paz de espírito é tudo o que procuramos na vida. O melhor presente de Natal que podíamos receber. Mas onde encontrá-la, em que gene ou prateleira de hipermercado? Nem num nem noutro lugar, mas talvez nas palavras do padre e biólogo Luís Archer, oitenta anos dedicados a Deus e à ciência”

A Entrevista – Paz de espírito

Li com a máxima atenção, não só porque também eu busco a “Paz de espírito” mas também porque este padre, sem o saber, marcou profundamente a minha vida. Assim nasceu este texto.
Achei curiosa a forma como a jornalista Isabel Stilwell inicia a entrevista: “ Sabe quantas entradas encontrei na Internet quando escrevi no Google as palavras “paz de espírito”? Nove milhões trezentas e quarenta mil. Pelos vistos há muitos à procura do mesmo…”
Não vou transcrever toda a entrevista, embora ela o merecesse, mas limitar-me-ei a algumas das falas do entrevistado que mais me tocaram.
. A alegria e a tranquilidade moram na paz de espírito, são sintomas de quem se sente inteiramente bem consigo mesmo e com os outros. Em que tudo está certo.
. A paz de espírito pode discutir-se de muitos pontos de vista: o filosófico, o médico, o biológico, o psicológico. Sobretudo o religioso. Todas as religiões dão uma importância enorme à paz interior. Para algumas, como o hinduísmo e o budismo, é uma preocupação central. Aliás, também o é na religião cristã, ao contrário do que muitas vezes se pensa. Isaías profetizou, muitas vezes, a vinda do “Príncipe da Paz”. E quando Cristo nasceu os anjos cantaram “Paz aos homens por Ele amados”. Ou seja, a todos. A paz de espírito para o cristão está na consciência muito enraizada de ser amado por Deus. Mas isto não acontece de um dia para o outro, é um processo de maturação. E a paz verdadeira e completa é um dom de Deus.
. Sim, um presente de Deus. Não é qualquer coisa que resulte de truques nossos. Ele é que nos traz a paz, se nós deixarmos. Mas é um dom oferecido a todos.
. Pode e deve-se. Sem perder a paz de espírito, reconhecer a injustiça e fazer tudo para a combater. Mas esse combate é uma actividade, mas não uma inquietação; aí é que está a diferença. Não me afasta de mim mesmo nem de Deus, nem me faz perder a cabeça. A irritação é o contrário da paz, é um conflito entre aquilo que acho que devia acontecer e aquilo que vejo que acontece. Mas numa posição cristã a pessoa olha para os injustos não com raiva mas com amor.
. (…) devo fazer tudo o que está nas minhas mãos (como se tudo dependesse só de mim) mas em paz de espírito, e depois confiar que Deus me dará o que é melhor para mim e não necessariamente aquilo que queremos.
. (…) Formei-me em Biologia e depois entrei para a Companhia de Jesus e fui ordenado padre. Em seguida fui trabalhar para o mundo da ciência porque os jesuítas acharam que era importante ter gente nessa área.
. A paz de espírito só se consegue quando superamos o ódio, a inveja e todos esses sentimentos que nos impedem de amar os outros como a nós mesmos.
. ( Quando olhava pelo microscópio e descobria qualquer coisa nova) é uma sensação extraordinária de ser cocriador com Deus. Mais do que descobrir, fazem-se organismos novos, continua-se a criação… E acima de tudo isso louva-se a Deus.
. É obvio que essas ideias ( Deus castigador e vingativo; pecado e culpa) tiram a paz de espírito e são contra a mensagem de Cristo e dos Apóstolos. Essa mensagem é de salvação, de esperança e fé no amor de Deus e na Sua misericórdia, no Seu perdão para todos os homens de boa vontade.
. Ter paz de espírito não significa que se está isento de passar, ou ter passado, pela noite escura, por provações. Cristo diz, a certa altura, “Pai, porque me abandonaste?”, mas consegue sempre dizer” que seja feita a Tua vontade”. Morreu de forma violenta, mas em paz, sem revolta, entregando voluntariamente ao Pai o seu espírito. E nota-se quem vive essa paz! Vê-se na cara…
. Nota-se na cara, nas pequenas reacções, não passa despercebido. Lembro-me, de repente, do dia em que no Instituto Gulbenkian da Ciência ficou tudo inundado e perdemos todos o nosso trabalho. Aí distinguem-se logo as pessoas para quem o seu deus é o trabalho e as pessoas para quem Deus está acima. Estas ficam tristes, claro, mas pensam: “ O importante é que a Ti, Senhor, não te perdi.” Vê-se a paz profunda a léguas, mesmo se à superfície houver uma turbulência horrível.
. ( A ideia da morte, do envelhecer e do sofrimento) Não complicam, porque o meu Deus não envelhece nem morre. Identifico-me com o que Teilhard de Chardin escreveu na sua obra Le Milieu Divin: “ Quando o meu corpo começa a mostrar os sinais do desgaste dos anos, no momento doloroso em que eu reconheço que estou doente ou que estou a ficar velho, especialmente no momento final quando quiser sair de mim próprio, absolutamente sem controlo das grandes forças desconhecidas que me formaram, nessas horas de escuridão, dá-me , meu Deus, a compreensão de que Tu separas dolorosamente as fibras do meu ser para que possas penetrar na medula da minha substância e levar-me para junto de Ti”.

O Pe. Archer na minha vida

Que me leva a afirmar que este Jesuíta, doutorado em Biologia e licenciado em Filosofia e em Teologia, especialista em questões de Bio-Ética, marcou a minha vida?
Eu conto.
Andaria eu no 2º ou 3º ano de Teologia, quando, certa tarde, me apareceu, no Seminário Maior do Porto, um sacerdote de Lisboa, chamado Pe. Fernando Maurício, que desejava falar comigo. Surpreendido, porque ignorava os motivos para essa conversa e nunca ouvira falar em tal sacerdote, recebi-o no meu quarto. Disse-me quem era e ao que vinha.
Era sacerdote da Diocese de Lisboa e acabava de fazer um ano de retiro nos Jesuítas em Braga. O seu objectivo era fundar um Instituto Religioso (“Regnum Dei” ) para evangelização do Alentejo. Já falara com o senhor Arcebispo de Évora que ficara muito satisfeito e disponibilizara, para sede do Instituto, um Convento em Alcácer do Sal. Andava, agora, pelos seminários de todas as dioceses do País a contactar com os seminaristas. Conversava com os padres e convidava dois seminaristas dos que lhe fossem aconselhados: queria que Portugal inteiro estivesse presente nessa acção evangelizadora. Era a vocação missionária portuguesa a concretizar-se dentro do próprio território nacional. O meu nome tinha sido apontado como um dos escolhidos e, logo, me indicou o nome do outro, que seria o Elisário (é curioso que o Elisário, na véspera deste Natal, telefonou-me a desejar um Santo Natal). Fiquei contente com a escolha do colega porque éramos amigos desde o primeiro ano do seminário. Faríamos um ano de noviciado/retiro. Depois, iríamos para Roma completar o curso de Teologia e fazer uma especialização (no meu caso, faria Direito Canónico para tratar da criação jurídica do Instituto). Depois de ordenados, ficaríamos a residir em Alcácer e, de carro, percorreríamos o Alentejo em missão evangelizadora. O projecto pareceu-me interessante até porque correspondia ao meu ideal de um sacerdócio ao serviço da missionação e da pobreza.
Depois de aprofundar a minha reflexão, com longas conversas com o Director Espiritual do Seminário, Peº Agostinho Cunha, acabei por aderir ao projecto. Pedi ao Reitor do Seminário, Monsenhor Miguel Sampaio, para soliciatr autorização ao Senhor Bispo D. Florentino, Administrador Apostólico da Diocese, durante o exílio do Bispo Residencial, D. António Ferreira Gomes. D. Florentino mandou-me dizer que não se opunha à minha vontade mas que, se era meu desejo trabalhar com os pobres, também o poderia fazer na nossa Diocese. Expus aos meus pais os meus planos. Também estes não se opuseram à minha vontade, embora minha mãe tivesse vertido algumas lágrimas. Ficou tudo decidido. Ainda me lembro de num retiro, quando o conferencista falava do cuidado que os padres deveriam ter com as empregadas que contratassem para suas casas, eu e o Elisário trocarmos olhares como que a dizer: “ isto não nos diz respeito.”
Estava já tudo decidido, já me considerava membro do novo Instituto e já me via por terras alentejanas a falar de Cristo a comunidades descristianizadas. Mas eis que, certa tarde, aparece-me o Pe. Fernando e diz-me: Não vamos para Alcácer. Vamos para o Alfeite (?) trabalhar com os operários. Vou alugar uma casa onde passaremos a viver. Fiquei como que atordoado com o inesperado da notícia e a forma tão autoritária como me foi comunicada. O que justificaria tão abrupta mudança de objectivos? Ainda fiz algumas perguntas, muito objectivas: quanto vamos pagar de aluguer e com que dinheiro o vamos pagar? Falou-me em oito contos mensais e que ele ganhava o suficiente para o pagar. – Mas de que vamos viver? As respostas começaram a ser pouco satisfatórias… E as dúvidas surgiram no meu espírito: serei capaz de viver uma vida em comunidade com quem altera de projectos tão facilmente e sem qualquer consulta aos outros membros? Expus as minhas interrogações ao P. Agostinho que me aconselhou a consultar o P. Tobias Ferrás, jesuíta, que vinha semanalmente confessar ao Seminário. Assim o fiz. Perante a minha pergunta se teria espírito para aguentar a vida em comunidade, ficou hesitante e disse-me para ir falar com o outro sacerdote Jesuíta que, nos últimos tempos, o acompanhava nas vindas ao Seminário, o Pe. Luís Archer: era mais novo, tinha uma experiência diferente. E lá fui eu expor as minhas dúvidas. O Pe. Luís ouviu-me, tranquilamente, até ao final sem interrupções e, no fim, sem qualquer hesitação diz: - Não vás. Não vais aguentar a vida em comunidade. Foi a machadada final. Ficou decidido.
Durante as férias grandes, o P.e Fernando encontrou-se comigo em casa dos meus familiares em Rebordosa onde eu passava uns dias de férias. No final da conversa, disse-lhe com toda a clareza que me desligava do seu projecto. Não expliquei os motivos para o não magoar. Afirmei que chegara à conclusão que não tinha espírito comunitário. E invoquei a opinião do Pe. Luís Archer. Ficou magoado com a minha atitude. E eu senti que fui marginalizado…pois nunca mais falou comigo, embora continuasse a vir ao Seminário, falar com o Elisário que aderiu ao projecto…e convidar outros possíveis aderentes… O que é facto é que o Instituto foi criado e, não sei porquê, teve como sede o convento de Alcácer de que o Pe. Fernando me falara no nosso primeiro contacto, embora os seus membros, pelo menos alguns, tenham abraçado a vida de “Padres Operários”.
Este episódio foi muito importante e teve reflexos na minha vida futura. Ressalto dois momentos. Primeiro – No meu primeiro ano de sacerdócio, era eu coadjutor de Santo Ildefonso, o D. Florentino chamou-me e disse-me: - Vamos iniciar um trabalho social e pastoral junto dos bairros camarários. A primeira experiência vai realizar-se no bairro do Cerco do Porto. Como sei, quando pensou ir para o “Regnum Dei”, que gosta de exercer o seu apostolado junto dos pobres, lembrei-me de si. Por isso, ficará a ser o responsável pela Obra dos Bairros. Deste modo, fui parar ao Bairro do Cerco do Porto.
Segundo- Quando iniciei a minha actividade no Bairro, assumi claramente que estava em terra de missão (não era o Alentejo, mas…). Este foi o vector que norteou toda a minha actividade pastoral.: pobre no meio de pobres. Fui viver para o bloco 15. Comecei a celebrar na escola primária no Cerco; no bairro de S. Roque, adaptei a capela as antigas instalações dos serviços de limpeza do bairro. Procurei inculcar nos praticantes a ideia de que “ o dinheiro tem feito muito mal à Igreja, mas o dinheiro é necessário na Igreja”. Aderiram ao projecto. Inscreveram-se como ofertantes. Havia uma Comissão Administrativa que recolhia e geria todo o dinheiro da paróquia e pagava-me uma mensalidade para me sustentar. E os meus serviços eram gratuitos para todos: baptizados, casamentos, funerais, missas de corpo presente, 7º e 30º dias.
Deste modo, a minha presença junto das pessoas não se revestia de qualquer interesse económico. Era um vizinho entre vizinho, um pobre entre pobres, um amigo entre amigos…
E foi no Cerco que conheci a Olga Castro que tinha uma amiga que se chamava Anita. E essa Anita é minha esposa há 31 anos… Obrigado, Pe. Archer!... Que a "Paz de espírito" habite em mim!